Avaliação do Processamento Auditivo Central em adolescentes expostos ao mercúrio metálico Palavras-Chaves: percepção auditiva, intoxicação por mercúrio, adolescente. Introdução A exposição, os efeitos e as medidas de prevenção e controle relacionados com a utilização do mercúrio são temas relevantes para a Saúde Coletiva e para a Fonoaudiologia, pois o mercúrio é um metal altamente tóxico para a saúde em geral, podendo afetar também a saúde auditiva. Entre os principais efeitos crônicos do mercúrio metálico no organismo destacam-se danos no sistema nervoso central 1. Embora a exposição a níveis tóxicos de metais como mercúrio resulte em efeitos adversos a saúde dos adultos, esses efeitos são mais devastadores para o sistema nervoso central e para o sistema fisiológico geral das crianças 2. Considerando a neurotoxicidade do mercúrio, indivíduos expostos a essa substância podem apresentar não só danos periféricos como também centrais ao sistema auditivo. Assim, para a seleção do método de avaliação audiológica desses indivíduos, deve-se considerar a audiometria como ponto de partida, sendo necessária a aplicação de testes que avaliem toda a extensão do sistema auditivo, como testes eletrofisiológicos e testes do processamento auditivo central (PAC) 3. O PAC constitui uma série de processos envolvidos na detecção e interpretação de eventos sonoros e é caracterizado por um conjunto de habilidades auditivas específicas, incluindo atenção, memória, detecção do som, localização, figura-fundo, entre outras 4,5. A principal manifestação comportamental de indivíduos com desordem de processamento auditivo central é a dificuldade em escutar e compreender em ambiente ruidoso 6, podendo apresentar ainda, atenção ao som prejudicada, problemas de linguagem expressiva, de leitura e escrita e alterações de comportamento. O conhecimento aprofundado do problema poderá contribuir para o direcionamento da terapia e para a elaboração de estratégias preventivas 4. Dessa forma, o objetivo desse estudo foi avaliar o desempenho nos testes de processamento auditivo central dos adolescentes expostos ao mercúrio metálico matriculados em escolas Municipais e Estaduais no Município de Poconé/MT. Métodos Foi realizado um estudo seccional descritivo em 52 adolescentes, cujo projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IESC/UFRJ sob o parecer 88/2007. Os procedimentos realizados incluíram questionário, audiometria tonal liminar e avaliação do PAC. Os grupos foram constituídos com base na exposição referida, sendo considerado para o grupo de estudo () aqueles que relataram trabalhar na queima dos amálgamas de ouromercúrio; re-queimar ouro em lojas que comercializam este metal e residir próximos às áreas de
garimpos e às lojas que comercializam ouro, e grupo de comparação () os que não apresentaram história de exposição ao mercúrio. Como critérios de inclusão neste estudo, os indivíduos deveriam apresentar idade maior ou igual a 12 anos, pois o desenvolvimento do processamento auditivo ocorre até essa idade, e a partir daí é similar ao dos adultos 7. E idade máxima de 17 anos para evitar interferência de outros fatores não relacionados à exposição tais como questões envolvendo riscos ocupacionais. Os adolescentes e seus responsáveis foram submetidos a um questionário com perguntas relativas ao desenvolvimento de fala, audição e linguagem, histórico escolar, características comportamentais e questões específicas sobre a exposição a mercúrio e atividades laborais. Para a realização das avaliações auditivas foi utilizado o audiômetro da marca Interacoustic, modelo AC 33, com fone TDH - 39 e coxim MX-41, acoplado a um CD player. Com o objetivo de determinar os limiares auditivos e descartar enfermidades otológicas, foi realizada audiometria tonal liminar por via aérea nas freqüências de 250 a 8000Hz e detecção do limiar de reconhecimento de fala (SRT). Para avaliar o PAC os indivíduos foram submetidos a um conjunto de testes especiais comportamentais. O teste de localização sonora (LS) avaliou a capacidade do indivíduo em localizar a fonte sonora. Os testes de memória seqüencial para som verbal (MSV) e não verbal (MSNV) visaram avaliar a capacidade do indivíduo em ordenar temporalmente os sons. No teste de fala com ruído branco (FR) a habilidade auditiva testada foi a de fechamento e avaliou-se a discriminação de sons verbais fisicamente distorcidos. Foi pesquisado também o índice percentual de reconhecimento de fala (IPRF) com gravação. Os testes de padrões temporais de freqüência (TPF) e de duração (TPD), foram utilizados para avaliar a habilidade auditiva de ordenação temporal 8. O mecanismo fisiológico auditivo avaliado foi o de processamento temporal. Trata-se de uma tarefa complexa em que estão envolvidas as capacidades de discriminação de sons quanto à freqüência, duração e ordenação de sons. E o teste SSW em português avalia as habilidades auditivas de figura-fundo, memória, associação som-símbolo e ordenação temporal complexa de sons verbais. Nesse teste foi realizada análise quantitativa e qualitativa dos resultados. Para a análise estatística dos dados, foi utilizado o "SPSS versão 14". A estatística descritiva foi realizada para caracterizar o perfil da amostra segundo as diversas variáveis em estudo. Para o teste estatístico foi adotado o nível de significância de p<0,05 e assinalou-se com asterisco o valor estatisticamente significativo. Resultados Após avaliação dos critérios de inclusão, o foi composto por 21 adolescentes e o por 31 adolescentes. A idade média dos dois grupos foi de 14 anos com um desvio padrão de 0,66
anos, o que demonstra a homogeneidade da amostra. Todos os adolescentes apresentaram limiares auditivos dentro dos padrões de normalidade (tabela 1). Tabela 1. Caracterização dos adolescentes dos grupos de estudo () e de comparação (), segundo idade, sexo e média em db dos limiares das freqüências de 500, 1000 e 2000Hz na audiometria tonal liminar (ATL). Poconé, Brasil, 2007. ATL (média 500Hz, 1kHz e 2kHz) Grupo Nº Idade sexo OD [db] OE [db] (n=21) (n=31) (n=52) Média 14,29 17,38 16,59 11 F Desvio Padrão 0,78 2,39 2,33 10 M Mínimo Máximo 13 16 13,3 20,0 13,3 20,0 Média 14,13 16,99 15,75 17 F Desvio Padrão 0,56 2,63 2,72 14 M Mínimo Máximo 13 16 11,7 21,7 8,3 20,0 Média 14,19 17,15 16,09 28 F Desvio Padrão 0,66 2,52 2,58 24 M Mínimo Máximo 13 16 11,67 21,67 8,33 20,00 Nos testes de memória para sons verbais em seqüência e de localização sonora não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos, quanto ao teste de memória para sons não verbais em seqüência o apresentou desempenho significativamente inferior ao (tabela 2). Tabela 2. Média, desvio padrão, valores mínimo e máximo e p-valor, observados nos testes de memória seqüencial verbal (MSV) e não verbal (MSNV) e de localização sonora (LS) para os grupos de estudo () e de comparação (). Poconé, Brasil, 2007. Grupo Nº MSV MSNV LS (n=21) (n=31) (n=52) Média 2,57 2,19 4,62 Desvio Padrão 0,60 0,68 0,67 Mínimo Máximo 1 3 1 3 3 5 Média 2,77 2,81 4,94 Desvio Padrão 0,43 0,40 0,25 Mínimo Máximo 2 3 2 3 4 5 Média 2,69 2,56 4,81 Desvio Padrão 0,51 0,61 0,49 Mínimo Máximo 1 3 1 3 3 5 p-valor 0,296 0,001* 0,067 Não foi observada diferença estatisticamente entre os grupos quanto ao desempenho nos testes de índice percentual de reconhecimento de fala e teste de fala com ruído. Nos testes de padrão de freqüência e duração e no teste SSW em português foram encontradas diferenças significativas, sendo o desempenho do inferior ao do (tabela 3). Tabela 3. Média, desvio padrão (DP), valores mínimo e máximo e p-valor para os testes especiais comportamentais, por orelha direita (D) e esquerda (E) para o grupo de estudo () e para o grupo de comparação (). Poconé, Brasil, 2007. Teste Grupo N Média DP Mínimo Máximo p-valor IPRF_D 21 94,10 3,49 88 100 31 95,10 3,22 92 100 0,609 IPRF_E 21 93,33 3,18 88 100 31 95,48 3,22 92 100 0,191 FR_D 21 87,24 4,12 80 92 31 90,45 3,95 84 100 0,228 FR_E 21 88,19 3,89 84 96 31 89,81 4,48 84 100 0,613 TPF_D 21 52,14 9,37 40 80 31 74,94 8,14 50 87 TPF_E 21 49,05 9,70 33 74 31 75,42 9,76 50 94 TPD_D 21 49,38 9,15 39 65
31 77,55 8,71 56 91 TPD_E 21 50,38 11,44 27 76 31 76,87 8,48 56 91 SSW_D 21 88,57 8,82 70,0 100,0 31 95,25 4,34 77,5 100,0 0,006* SSW_E 21 88,93 7,77 72,5 100,0 31 95,07 5,26 75,0 100,0 0,005* Inversões 21 2,90 3,51 0 11 31 0,26 0,51 0 2 Discussão Todos os adolescentes apresentaram limiares auditivos dentro dos padrões de normalidade, o que corrobora com o encontrado em estudo sobre o efeito de metilmercúrio no sistema auditivo, que observou limiares auditivos dentro dos padrões de normalidade e alteração no potencial auditivo evocado, com aumento de latência entre os picos das ondas III e V, indicando que o efeito neurotóxico do mercúrio no sistema nervoso auditivo central é mais significativo que no nível periférico 9. No entanto, observou-se limiares auditivos melhores no quando comparado ao. Resultado semelhante foi observado em estudo sobre o efeito da exposição a solvente no PAC, onde encontraram limiares auditivos dentro dos padrões de normalidade nos dois grupos estudados, mas os resultados foram piores do grupo exposto 10. A análise dos dados referente à comparação do e quanto ao desempenho nos testes do PAC revelou tendência de desempenho inferior no em relação ao em todos os testes realizados, no entanto, não foram observadas diferenças estatisticamente significantes nos resultados obtidos para os testes MSV, LS (tabela 2), no IPRF e no teste FR (tabela 3). No teste de memória seqüencial para som verbal (MSV), com exceção de um indivíduo, todos os adolescentes avaliados nessa pesquisa apresentaram dois ou três acertos (tabela 2). Os valores obtidos pelos dois grupos corroboram com a classificação de resposta correta esperada apresentada na literatura 11. Para o teste MSNV foram observadas diferenças estatisticamente significantes entre os dois grupos, o que indica que o desempenho na habilidade auditiva de ordenação temporal no foi pior que no (tabela 2). Não foram encontrados na literatura estudos que avaliassem essa habilidade em indivíduos expostos a mercúrio metálico, mas resultado semelhante foi encontrado em indivíduos expostos a chumbo 12. No que diz respeito aos testes de padrão de freqüência e duração, em estudo sobre o efeito da maturação no comportamento nesses testes, foi encontrado percentuais de acertos para 14 anos maiores que 76% no teste de padrão de freqüência e 72% no teste de padrão de duração 7. Esses valores são próximos as médias encontradas no presente estudo para o grupo de comparação. Quando comparamos os valores encontrados no grupo de estudo com os observados no estudo acima e com os obtidos no grupo de comparação, observa-se que o desempenho foi significativamente pior no grupo de estudo (tabela 3). Resultado semelhante foi
observado por diversos autores ao avaliarem a habilidade auditiva de ordenação temporal em indivíduos expostos a outras substâncias químicas 10,12,13. No que diz respeito aos resultados do SSW, os indivíduos do apresentaram desempenho inferior ao do (tabela 3). Esse teste avalia a habilidade de figura-fundo. Outros autores 10 observaram alteração nessa habilidade em indivíduos expostos a solventes. Analisando os aspectos qualitativos do SSW, observou-se diferença estatisticamente significante entre número de inversões apresentadas pelo e pelo (tabela 3). Apesar de não ter sido encontrado nenhum texto na literatura que descrevesse os resultados dessa análise, é importante ressaltar que a habilidade auditiva que envolve essa tarefa é a de ordenação temporal, e outros testes que avaliam essa habilidade realizados nesse estudo também mostraram resultados estatisticamente significativos. Enfim, embora não tenham sido encontrados na literatura estudos que correlacionassem PAC à exposição ao mercúrio metálico, estudos realizados envolvendo outros agentes químicos encontraram resultados semelhantes aos do presente estudo. Esses achados são consistentes com a afirmação de que a exposição a substâncias químicas afeta principalmente o sistema nervoso auditivo central 3. Conclusão Os adolescentes expostos ao mercúrio metálico apresentaram desempenho inferior aos não expostos para a maioria dos testes realizados, e a diferença entre os desempenhos foi estatisticamente significante para os testes memória seqüencial não verbal, teste de padrão de freqüência e duração, para o teste SSW em português e no número de inversões no SSW, o que indica que a principal alteração encontrada nessa população foi no processamento de sons breves e sucessivos. Referências 1. WHO/World Health Organization. Inorganic mercury. Environmental Health Criteria 118. Geneva. 1991. 2. Counter, S.A., Buchanan, L.H. Mercury exposure in children: a review. Toxicology and Applied Pharmacology, 2004; pp 209-230. 3. Morata, T.C. Chemical exposure as a risk factor for hearing loss. J Occup Environ Med. 2003; 45, 676-682. 4. ASHA: American Speech-Language-Hearing Association. (Central) Auditory Processing Disorders The Role of the Audiologist [Position Statement]. Available from www.asha.org/policy; 2005. 5. Cavadas, M., Pereira, L.D., Mattos, P. Effects of methylphenidate in auditory processing evaluation of children and adolescents with attention deficit hyperactivity disorder. Arquivos de Neuro-Psiquiatria. São Paulo, 2007. v.65, n.1 6. Dawes, P., Bishop, D.V.M., Sirimanna, T., Bamiou, D.E. Profile and aetiology of children diagnosed with auditory processing disorder (APD). International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology, 2008; 72, 483-489. 7. Schochat, E., Musiek, F.E. Maturation of outcomes of behavioral and electrophysiologic testes of central auditory function. Journal of Communication Disorders, 2006; 39, 78-92. 8. Shinn, J.B. Temporal processing: the basics. Pathways Hear J., 2003; 56, 7.
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