XVI SIMPÓSIO N ACIONAL DE ENSINO DE F ÍSICA 1 INTERDISCIPLINARIDADE E ENSINO DE FÍSICA: QUAIS AS POSSIBILIDADES? Erika Zimmermann a (erika@unb.br) Jairo Gonçalves Carlos b (jairogc@unb.br) a Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências UnB e Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal b Faculdade de Educação e Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências UnB RESUMO O presente trabalho apresenta uma breve discussão sobre o conceito de interdisciplinaridade, no contexto do ensino de física, segundo a visão de alguns pesquisadores dedicados ao estudo do tema no Brasil. Observamos que o termo, embora bastante utilizado, ainda se revela multifacetado e polissêmico, dificultando, portanto, sua assimilação e aplicação na sala de aula. A maioria dos trabalhos em interdisciplinaridade reconhece a existência de um grande número de sentidos da expressão, mas, apesar disso, não propõe uma definição que possa orientar os professores a praticar a interdisciplinaridade no seu dia a dia na escola. INTRODUÇÃO Num mundo complexo onde o conhecimento especificamente disciplinar começa a revelar-se insuficiente para o trato de problemas tanto de ordem social, quanto natural, a interdisciplinaridade parece encontrar um terreno fértil para se desenvolver. Tendo chegado ao Brasil em meados da década de 70, o termo logo ganhou grande popularidade e foi incorporado ao vocabulário educacional. A interdisciplinaridade ganhou força com as Propostas Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM, 1999), para os quais a prática desta aliada à contextualização do conhecimento a ser ensinado, constitui-se no princípio axiológico da nova estruturação curricular do ensino nacional. Os PCNs do Ensino Médio buscam dar significado ao conhecimento escolar mediante a contextualização, e evitar a compartimentalização, mediante a interdisciplinaridade. (...) A reorganização curricular em áreas de conhecimento tem o objetivo de facilitar o desenvolvimento dos conteúdos, numa perspectiva de interdisciplinaridade e contextualização (p. 12 e18). O fato de ter recebido aceitação no meio educacional, entretanto, não implica que a interdisciplinaridade seja bem compreendida por quem faz uso deste termo para rotular suas atividades. Os PCNs não definem o termo e também não trazem orientação clara de como praticá-la em sala de aula. Já, nos PCNs + (2002) existem orientações um pouco mais claras de como os professores podem desenvolver trabalhos interdisciplinares. Fica evidente, no entanto, que a proposta de interdisciplinaridade desses documentos não é a de extinguir o ensino disciplinar, ao contrário, é a de fortalecer a disciplinaridade, como se pode ver na seguinte citação: As linguagens, ciências e humanidades continuam sendo disciplinares, mas é preciso desenvolver seus conhecimentos de forma a constituírem, a um só tempo, cultura geral e instrumento para a vida, ou seja, desenvolver, em conjunto, conhecimentos e competências. Contudo, assim como a interdisciplinaridade surge do contexto e depende da disciplina, a competência não rivaliza com o conhecimento; ao contrário, se funda sobre ele e se desenvolve com ele (PCNEM + 2002, p. 13). A partir dos PCNs, o termo interdisciplinaridade, apesar de não bem compreendido, começou a ganhar força, pode-se até arriscar: já virou jargão educacional. Segundo Lück (1995), isso ocorre porque os educadores muitas vezes evitam pôr em prática os novos conceitos e idéias que aprendem, dessa forma
XVI SIMPÓSIO N ACIONAL DE ENSINO DE F ÍSICA 2 enriquecendo apenas seu vocabulário e discurso, e empobrecendo sua vivência. Entretanto, é desafio de todos nós superar essa atitude, e é com essa perspectiva que procuramos compreender os diferentes significados e usos atribuídos ao termo, visando a clarificá-lo e desmistificá-lo, principalmente, quanto ao seu potencial e sua prática em aulas de Física. ALGUNS CONCEITOS O termo interdisciplinaridade teve suas origens na França e Itália no início dos anos 60. No Brasil, a primeira obra sobre o tema foi publicada sob o título Interdisciplinaridade e patologia do saber (Japiassú, 1976). Japiassú (1976), para definir o termo interdisciplinaridade, apresenta primeiro os conceitos de multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade. Jantsch (apud Japiassú, 1976) caracteriza o termo multidisciplinaridade como uma atuação simultânea de uma gama de disciplinas de mesmo nível hierárquico com objetivos múltiplos, mas sem cooperação entre si. Já o termo pluridisciplinaridade é definido como a justaposição de diversas disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de modo a fazer aparecer as relações existentes entre elas. Finalmente, em relação a interdisciplinaridade, Podemos dizer que nos reconhecemos diante de um empreendimento interdisciplinar todas as vezes em que ele conseguir incorporar os resultados de várias especialidades, que tomar de empréstimo à outras disciplinas certos instrumentos e técnicas metodológicos, fazendo uso dos esquemas conceituais e das análises que se encontram nos diversos ramos do saber, a fim de fazê-los integrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados (Japiassú, 1976, p. 74 e 75). Com essa visão, Japiassú (1976) assume existir uma passagem gradual do multi- e do pluri- ao interdisciplinar em que o grau de integração entre as disciplinas aumenta até haver uma fecundação recíproca entre elas, dando origem a uma nova disciplina, correspondendo ao estudo de novos campos de problemas. Fazenda (1994), por sua vez, procura compreender a interdisciplinaridade a partir da práxis do professor, da ação coletiva num projeto em parceria. Para esta autora, a interdisciplinaridade é um processo que precisa ser vivido e exercido e se expressa como sendo uma relação de reciprocidade ou, melhor dizendo, um regime de co-propriedade, de interação, que irá possibilitar o diálogo entre os interessados. Jantsch e Bianchetti (1995) imprimem um novo rumo ao estudo da interdisciplinaridade. Para eles, a interdisciplinaridade tem basicamente a ver com a procura de um equilíbrio entre a análise fragmentada e a síntese simplificadora (p. 197). Numa oposição clara à visão de interdisciplinaridade até então dominante, que baseava-se numa concepção a-histórica e fundada na filosofia do sujeito, esses autores colocam a necessidade de se abordar o assunto numa concepção histórico-dialética, numa visão assumidamente marxista. Eles criticam a visão de Fazenda de interdisciplinaridade como sendo um projeto em parceria, ou seja, para eles é preciso mais que um agrupamento de pesquisadores/educadores para uma ação genuinamente interdisciplinar. Não é, a nosso ver, um trabalho em equipe ou em parceria que superará a redução subjetivista própria da filosofia do sujeito. (...) a interdisciplinaridade da parceria, ao contrário do que supõem os que se orientam pela filosofia do sujeito, não abarca, ordena e totaliza a realidade supostamente confusa do mundo científico. Ou seja, a fórmula simples do somatório de individualidades ou de sujeitos pensantes (indivíduos) que não apreende a complexidade do problema/objeto não é milagrosa nem redentora. Muito menos o será o ato de vontade que leva um sujeito pensante a aderir a um projeto de parceria (Jantsch & Bianchetti, 1995, p. 12). Segundo eles, essa premissa da parceria peca pela inobservância da construção histórica do conhecimento, ao ignorar que o conhecimento humano é elaborado de diversas formas e em diferentes contextos. Dessa forma, seria ingênuo considerar que de uma mera junção das áreas de conhecimento nascesse uma ação interdisciplinar, sem considerar a complexidade do construto disciplinar. Para eles, abdicar desta percepção significa conceber o conhecimento como um estranho sopão epistemológico e metodológico, no qual se confundiriam o objeto como algo secundário e
XVI SIMPÓSIO N ACIONAL DE ENSINO DE F ÍSICA 3 o sujeito como mera soma de indivíduos aleatoriamente distribuídos nas diversas ciências e/ou disciplinas. (...) Não se trata de destruir a interdisciplinaridade historicamente construída e necessária mas de lhe emprestar uma configuração efetivamente científica (p. 18). O conceito de interdisciplinaridade defendido por esses autores é o proposto por Etges (apud Jantsch & Bianchetti, 1995), A interdisciplinaridade que propomos tem sua base na própria gênese e no fundamento da própria produção do saber, e não se funda na busca de alguns elementos comuns que deveriam ser descobertos para se chegar a uma espécie de denominador comum, ou a uma unidade global (p. 64). Para este autor, o conhecimento, construto científico, deve simultaneamente ser congruente com o externo (mundo), o interno (consigo mesmo) e com sua inteligência criadora (mente humana). Assim, a interdisciplinaridade nasce quando da familiarização do cientista com sua ciência, que antecede a familiarização de outros cientistas e leigos com tal construto. Além disso, explica que não existe uma disciplina ou saber originário comum aos ramos do saber e, portanto, não há lugar para a suposição de uma fragmentação do saber, pois este não foi uno em suas origens. Da mesma forma, é improdutiva a busca da unicidade perdida do conhecimento. A INTERDISCIPLINARIDADE E O ENSINO DE FÍSICA Sem cair na ingenuidade da busca de uma (re)unificação do conhecimento, Delizoicov e Angotti (1991) propõem, em seu livro Física, uma abordagem metodológica de ensino de física para ensino médio a partir de um tema geral Produção, distribuição e consumo de energia elétrica. Tal proposição traz consigo a vantagem de possibilitar a construção do conhecimento em física de forma mais integrada, uma vez que o conteúdo é organizado a partir de uma mesma problemática geral. Assim, a tradicional compartimentalização das várias áreas no ensino é mais facilmente substituída pela construção de um corpo teórico único, em que as congruências, simetrias e relações entre as áreas são evidenciadas mais claramente e os conteúdos ganham maior significação por serem abordados segundo uma temática comum de caráter social, científico e tecnológico. Além da integração interna da física, essa abordagem permite uma integração desta com outras áreas do saber, na medida em que a estrutura de organização dos conteúdos põe em destaque os processos de transformação, ciclos e regularidades da matéria, a energia como agente de tais transformações e as escalas (entendidas como ordens de grandeza). Nas palavras dos próprios autores: A reflexão e utilização sistemática de conceitos unificadores permitem perpassar as fronteiras rígidas impostas sobretudo pelos livros didáticos, ao apresentarem o conteúdo de física. Por exemplo, o conceito de energia não está enclausurado no escopo da Mecânica, pois ele traduz e incorpora os dois anteriormente mencionados [ processos de transformação e regularidades ], além de se caracterizar essencialmente como supradisciplinar (Delizoicov e Angotti, 1991, p. 22, grifo nosso). Apesar de não se mencionar a palavra interdisciplinaridade, a proposta aponta potencialmente para esse tipo de abordagem nas aulas de física. Outro aspecto que torna a proposta interessante, é a possibilidade de inclusão dos aspectos sociais ligados ao tema durante a transposição didática do conteúdo que, se realizada de maneira criteriosa, provavelmente tornará o ensino muito mais rico e global, podendo ser ponto de partida para uma ênfase curricular em CTS. É com essa perspectiva que os PCNs + de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias (2002) orientam a ação pedagógica; tomemos como exemplo as sugestões de abordagem do tema energia: A energia é um exemplo importante de um conceito comum às distintas ciências, instrumento essencial para descrever regularidades da natureza e para aplicações tecnológicas. Na Física, pode ser representada em termos do trabalho mecânico necessário para impelir ou para erguer objetos, quando se calcula a energia cinética do movimento de um projétil ou
XVI SIMPÓSIO N ACIONAL DE ENSINO DE F ÍSICA 4 veículo, ou a energia potencial da água numa barragem. Ainda na Física, ao se estudar processos térmicos, a energia é apresentada como propriedade interna de sistemas, como a energia do vapor d água que, em uma caldeira, recebeu calor do queimador e se expandiu para realizar trabalho. Trabalho ou calor, estado de movimento ou energia interna, tudo se pode medir nas mesmas unidades, joules ou calorias, conversíveis umas em outras (p. 29). Neste trecho, podemos identificar elementos concordantes entre a proposta de Delizoicov & Angotti (1991) com as sugestões didáticas contidas no PCNs +, ambas procuram ensinar o conteúdo de energia em física de forma coerente e una, na medida em que buscam evidenciar as diferentes significações e interpretações de tal conceito de forma integrada e não fragmentária, mesmo no contexto da física em que a energia tem variadas aplicações em diferentes contextos. Não nos surpreende que ambas as propostas lancem mão de idéias como as de regularidades, processos de transformação e escalas e unidades de medida, que são os elementos que conferem à energia o caráter de conceito unificador comum às distintas ciências. Entretanto, os PCNs + não se limitam a expressar os diferentes significados de energia no contexto da física, mas incentivam a extrapolação da discussão do conceito em sala de aula para o domínio de outras disciplinas, o que implica em compreender como tal conceito se aplica em outros contextos e outras linguagens e como, mesmo aí, ainda preserva sua coerência e universalidade. A falta de unificação entre os conceitos de energia pode resultar em uma colcha de retalhos energética, a ser memorizada, das energias mecânica e térmica, luminosa, sonora, química, nuclear e tantos outros adjetivos, alguns pertinentes, outros não. Na Biologia e na Química, as energias não são menos importantes e nem menos variadas em suas designações e, no fundo, se trata da mesma energia da Física. (...) É preciso um esforço consciente dos professores das três disciplinas para que o aluno não tenha de fazer sozinho a tradução dos discursos disciplinares ou, o que é pior, concluir que uma energia não tem nada a ver com a outra (Delizoicov e Angotti, 1991, p. 29). Os PCNs + sugerem de forma mais explícita uma abordagem interdisciplinar, isso, como já foi expresso neste trabalho, vai ao encontro da proposta de Delizoicov & Angotti (1991) que também aponta nesta direção e se, aplicada segundo tal enfoque, alcança os objetivos a que se propõe que é a formação mais crítica e integrada do conhecimento de física em detrimento da formação descontextualizada e fragmentária dominante no ensino desta disciplina. CONCLUSÃO Uma análise mais minuciosa, que vá além das definições de interdisciplinaridade e procure analisar os pressupostos teórico-metodológicos e as classificações apresentadas pelos autores, não torna o assunto mais claro e coerente, pelo contrário, revela o estado polissêmico com suas várias dimensões e multiplicidade de concepções. Entretanto, como é consensual entre vários autores e mesmo entre boa parte dos críticos do assunto, a interdisciplinaridade é uma exigência epistemológica imposta pela complexidade dos problemas e objetos da ciência moderna. Uma análise meramente linear e disciplinar dos grandes problemas da ciência não é suficiente para dar conta da realidade multifacetada que nos afronta. Portanto, tais dificuldades não invalidam a importância do tema, pelo contrário, exigem uma maior reflexão, tanto sob o aspecto epistemológico quanto ontológico, do papel do conhecimento na sociedade moderna e da transposição desse conhecimento segundo os objetivos educacionais frutos de uma cultura própria e contemporânea de um povo. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. PCN + Ensino Médio: Orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares
XVI SIMPÓSIO N ACIONAL DE ENSINO DE F ÍSICA 5 Nacionais. Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, 2002. DELIZOICOV, Demétrio; ANGOTTI, José A. Peres. Colaboração de Alice Campos Pierson. Física. São Paulo: Cortez, 1991. (Coleção magistério 2º grau. Série formação geral). FAZENDA, Ivani C. Arantes. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 4. ed. Campinas: Papirus, 1994.. Interdisciplinaridade: Um projeto em parceria. São Paulo: Loyola, 1993. JANTSCH, Eric. Vers l interdisciplinarité et la transdisciplinarité dans l enseignement et l innovation. In: OCDE. L interdisciplinarité, 1972. JANTSCH, A.; BIANCHETTI, L. (orgs.). Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.