A construção do sentido em práticas referenciais de afásicos

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As informações apresentadas neste documento não dispensam a consulta da legislação em vigor e o Programa da disciplina.

Transcrição:

A construção do sentido em práticas referenciais de afásicos Elisângela Bassi 1 1 Instituto de Estudos da Linguagem Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Caixa Postal 6045 13.083-970 Campinas SP - Brasil lisbassi@yahoo.com.br Abstract. This article discusses the pertinence of the referential processes to the analysis of interactive situation that involves the construction of objectsof-discourse. For this discussion is analyzing an episode extracted of the reunions at the Centro de Convivência de Afásicos (CCA/IEL/UNICAMP) between the participant subjects (aphasics and no-aphasics). Keywords. Discursive interaction; reference; objects-of-discourse. Resumo. Este artigo discute aspectos do fenômeno da referenciação em situações interativas que envolvem a construção de objetos-de-discurso. Para essa discussão será analisado um episódio extraído das reuniões realizadas no Centro de Convivência de Afásicos (CCA/IEL/UNICAMP) entre os sujeitos (afásicos e não afásicos) que participaram dele. Palavras-chave. Interação discursiva; referenciação; objetos-de-discurso. A proposta deste artigo é a de discutir alguns aspectos do fenômeno da referenciação em situações interlocutivas de sujeitos afásicos e não afásicos que participam do Centro de Convivência de Afásicos (CCA/IEL/UNICAMP). Para tanto, será analisado um episódio extraído da interação entre esses sujeitos durante uma das reuniões do Centro. O tratamento interativo-discursivo da referenciação tem como pressuposto que este fenômeno trata de uma atividade sócio-cognitiva realizada por sujeitos socialmente atuantes, que constroem conjunta e situacionalmente referentes concebidos nas práticas interlocutivas. Dessa maneira, a linguagem é considerada a partir de suas condições de produção e recepção, integrando-se como parte de atividades mais globais de comunicação. Concerne, neste sentido, a processos, operações e estratégias lingüístico-cognitivos que são constituídos e postos em ação em situações concretas de interação social. Correlatamente o Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 710 / 717 ]

discurso deixa de ser entendido como uma estrutura acabada e passa a ser abordado no seu próprio processo de planejamento, verbalização e construção. Segundo Koch & Marcuschi (1998) e Koch (2002), a referenciação e a progressão referencial consistem na construção e reconstrução de objetos-de-discurso. A referenciação constitui uma atividade discursiva em que os processos de referenciação são escolhas que o sujeito faz em função de um querer-dizer e os objetos-de-discurso (re)constroem-se no processo de interação:... a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele: interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural. (Koch, 2002:31). Assim, a referência é um fenômeno que diz respeito às operações efetuadas pelos sujeitos à medida que o discurso se desenvolve e os objetos a que faz remissão são construídos no discurso, ao mesmo tempo em que é tributário dessa construção. De acordo com Marcuschi (2001:41), a linguagem é uma atividade social e cognitiva em contextos historicamente delineados e interativamente construídos, é uma atividade colaborativa. Seguindo a mesma trilha, Mondada e Dubois (2003) afirmam que a referenciação é concebida como uma construção colaborativa de objetos-de-discurso, ou seja, a existência dos objetos é estabelecida discursivamente, nas práticas simbólicas e intersubjetivas. Dito de outra maneira, a referenciação emerge da exibição da distância entre as palavras e as coisas e o discurso explicita essa não-correspondência. O ato de enunciação representa o contexto e as versões intersubjetivas do mundo adequadas a este contexto. Os objetos são construídos através dos processos cognitivos dos sujeitos aplicados ao mundo concebido como um fluxo não contínuo de estímulos. O reconhecimento do objeto se dá com a construção de categorias flexíveis e instáveis, através dos processos complexos de categorização produzindo as categorias potencialmente memorizadas e lexicalizadas (Mondada & Dubois, 2003:35). Na situação interativa, a organização textual e a orientação argumentativa aparecem nos processos de referenciação, interferindo diretamente na construção dos sentidos. É na convicção de que o sujeito lida com o material lingüístico que tem a sua disposição, fazendo escolhas importantes para concretizar a sua proposta de sentido, que o estudo dos Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 711 / 717 ]

processos de referenciação nas afasias tende a evidenciar as relações intersubjetivas e pragmático-discursivas que ocorrem em um processo de explicitação do sentido. É com base no exposto que a análise de atividades referenciais pode mostrar como os sujeitos afásicos trabalham a relação linguagem mundo (KOCH, 2004). Será analisado um dado de afasia com base nessa proposta teórica, cujo objetivo é o de verificar os ganhos heurísticos desse tipo de análise para a compreensão da construção de sentidos na interação discursiva. Primeiramente, faz-se necessário contextualizar o dado. Assim, o grupo procurava reconhecer e interpretar o sentido de várias expressões idiomáticas a partir de figuras que propunham retratar supostos sentidos literais. As figuram foram projetadas no telão e discutidas uma a uma pelo grupo. A atividade consistia em aventar as cenas enunciativas em que cada expressão, ou melhor, cada figura poderia ser empregada. Após discutirem a expressão marcar touca, o grupo estava discutindo se iriam ou não ver mais figuras de expressões idiomáticas, quando NS 1 se lembra de uma expressão. 1. NS: //dirigindo-se a EM// por que é... é... barriga dói? 2. EM: ãh? 3. NS: por que barriga dói? 4. //silêncio// 5. EM: por que barriga dói? 6. NS: é 7. //o grupo riu// 8. NS: expressão... expressão 9. HM: a expressão... quando fala... a barriga dói? 10. NS: não... 11. JC: goiaba tem bicho... não é isso? 12.NS: não 13.EM: peraí... você tá falando da expressão? 14.NS: é 15.EM:...a barriga dói? Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 712 / 717 ]

16.NS: é 17.HM: não conheço não 18.RN: mas com esse sentido MG... é NS... de marcar touca? 19.NS: espera... espera... eu penso... a Teresa... a Teresa 20.EM: diga... diga... 21.NS: a Teresa mente... falo assim: você vai ver Teresa um dia barriga dói 22.EM: ah! 23.JC: Como é que é?... ela mente? 24.EM: ela mente... aí ela tem um castigo futuramente... um dia... 25.NS:...um dia barriga dói 26.EM: um dia alguém te pega 27.NS: é... sabe por que?... a Teresa mente... a Teresa mente né?... a Teresa mente... eu falo pra ela a barriga dói 28.EM: um dia a barriga dói 29.JC: //dirigindo-se a NS// você falou pra ela? 30.NS: já 31.JC: tem a ver com Prometeu acho... (SI) //grupo fala ao mesmo tempo// 32.NS: então... que nem... espera... eu penso... eu penso... eu penso Teresa vamo Sumaré... a Teresa não vai... aí eu falo: Teresa você vai vê... a barriga dói... na minha casa ó... acabô... a barriga dói... 33.JC: você fala isso pra ela? 34.NS: é 35.JC: um dia Teresa... a barriga dói //repete a expressão para tentar compreender o significado dela// 36.EM: como alguma coisa que te vai acontecer... 37.FC: um dia a casa cai 38.JC: é por aqui tem muitas coisas frágeis //aponta para a sua barriga// 39.NS: não... barriga dói... pensa ó //eleva a mão à cabeça// 40.EM: é a barriga não dói de fato... 41.NS: //concordando com EM// não... não... a barriga dói 42.EM: um castigo vai acontecer né?... você mente agora mas um dia... Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 713 / 717 ]

43.NS: isso... isso... Seguindo a linha de raciocínio estabelecida teoricamente e considerando os propósitos deste artigo, será seguida aqui uma abordagem textual para a análise do dado. 1- Pode ser observado nas linhas 2 (fala de EM) e 3 (silêncio do grupo) o estranhamento que houve frente à fala de NS. Esse estranhamento inicial foi o que suscitou a construção feita durante toda a interação discursiva. 2- Ao dizer expressão... expressão (linha 8), NS demonstra utilizar, em um metadiscurso, uma estratégia metaenunciativa 2. Nessa demonstração metadiscursiva, NS explicita de que ordem é a sua fala: é da ordem das idéias, do pensamento, estabelecendo, assim, uma orientação argumentativa específica. 3- É possível verificar uma negociação colaborativa de construção entre as linhas 9 e 16. EM, em sua fala (linhas 13 e 15), procura organizar o que até então estava confuso. Para isso, EM retoma duas das falas de NS, aquela em que esclarece estar falando de uma expressão e aquela em que fala qual é essa expressão. 4- Entre as linhas 13 e 16 há um reajuste de referência: há uma negociação entre EM e NS sobre o que vão falar. 5- Na linha 16, RN tenta compreender a fala de NS buscando o sentido imediatamente anterior, que foi o da expressão marcar touca, discutida, conforme a própria descrição do contexto mostrou, pelo grupo. Nesse caso, RN está aferindo o sentido da expressão procurando um equivalente formulaico. 6- A fala da linha 19 constitui uma tentativa de NS em exemplificar para o grupo aquilo que quer dizer. Foi essa exemplificação que fez com que EM compreendesse a expressão e auxiliasse NS a explicar para o restante do grupo o sentido da expressão a barriga dói. 7- Para continuar a trilhar o caminho que levaria o grupo a compreender a expressão a barriga dói, NS, na linha 21, apresenta uma cena enunciativa, em que explicita o uso no Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 714 / 717 ]

lugar que a expressão ocupa: você faz a coisa errada e algo te acontece mostra uma relação de causa e efeito. 8- Entre as linhas 24 e 26, quando EM e NS completam uma a fala da outra buscando ajustar o sentido da expressão, aparece uma nova colaboração para a construção do sentido. 9- Nas linhas 26 e 37, EM e FC fazem uma paráfrase da expressão que também fazia parte do jogo que estava acontecendo. Há uma tentativa de equivalência entre as expressões um dia barriga dói, um dia alguém te pega e um dia a casa cai 3. 10- Quando JC diz tem a ver com Prometeu acho... (linha 31), faz uma digressão. Se tomarmos o tópico como minimamente organizado, articulado na seqüência discursiva, estaremos diante de um caso de descontinuidade tópica (Jubran et al, 1989). Na tentativa de compreender a expressão, JC busca conhecimentos outros que não cabem na discussão daquele momento. Em sua fala imediatamente após a de JC, NS (linha 32), reintroduz o tópico conversacional ( então )e atua na progressão e relevância tópica. 11- Quando JC (linha 38) aponta para a própria barriga para buscar mais uma vez um ajuste do sentido da expressão a barriga dói, NS rejeita esse tipo de interpretação (linha 39), dizendo e sinalizando que o sentido é de outra ordem: da ordem das idéias, do pensamento. EM explicita o gesto de NS de apontar para a cabeça na linha 40: a barriga não dói de fato. 12- A construção do sentido da expressão a barriga dói se deu de maneira colaborativa durante toda a interação. A confirmação de que o sentido foi atingido pode ser apreciado nas falas finais e, mais pontualmente, na última fala de NS (linha 43) que dá o seu aval para o resultado final dessa construção. Como consideração final, vale notar que existe no dado uma construção sóciointeracional a partir das manobras lingüísticas realizadas pelos sujeitos marcados por fatores tais como: intersubjetividade, reconhecimento de intenção, processos meta (reajustes), remissão à memória cultural e discursiva que estão envolvidos nesse processo de construção do sentido. Vale considerar ainda que esse tipo de interpretação sugere que Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 715 / 717 ]

para se chegar a um entendimento não basta o conhecimento metalingüístico e nem mesmo a significação lingüística, mas também o reconhecimento do outro (o interlocutor) e o discurso desse outro (a polifonia). Para dizer nas palavras de Morato: os sujeitos, ainda que sob o impacto da alteração de aspectos lingüísticos e cognitivos, trabalham sobre e com a linguagem: dessa maneira, eles atuam com processos alternativos disponíveis, selecionados por eles ou pelos seus interlocutores numa situação enunciativa dada e tendo em vista os efeitos de sentido pretendidos (Morato, 2001:72). Com isso, pode-se concluir que a construção de sentido produzida pelo episódio selecionado mostra o trabalho lingüístico-cognitivo conjunto e situado na interpretação, além da manipulação de estratégias enunciativas e pragmáticas, como a intertextualidade, a inferenciação e a argumentação. A objetivação do sentido se deu porque a expressão, antes desconhecida, foi conjuntamente construída pelo grupo, numa atividade marcadamente interativa, fundamentada num processo de natureza sócio-cognitiva. NOTAS: 1 Caracterizam o quadro afásico de NS, em termos neurolingüísticos, dificuldades no acesso lexical, expressão verbal do tipo telegráfica, com supressão de palavras funcionais, má seleção de morfemas gramaticais e predominância de substantivos (em detrimento de verbos). Tal quadro caracteriza uma afasia de predomínio expressivo. (Cazelato, 2003). 2 Em outras palavras, tem-se uma reflexão do próprio dizer, uma, segundo Koch (2004) configuração enunciativa complexa, já que o enunciador duplica-se em autocomentador de suas palavras: trata-se de não-coincidências constitutivas do próprio dizer (Koch, 2004: 127). 3 Segundo Cazelato (2003), os sujeitos compreendem as expressões (aderem ou estabelecem uma equivalência sobre elas) somente se interpretam os contextos nos quais são produzidas (Cazelato, 2003:199) Bibliografia CAZELATO, S. E. de O. A interpretação de provérbios equivalentes por afásicos: um estudo enunciativo. (Dissertação de Mestrado) Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 716 / 717 ]

JUBRAN, C.A.S. et al. Organização tópica da conversação. In: Gramática do Português falado: níveis de análise lingüística, vol. 2, Campinas: Unicamp, 1996. KOCH, I. G. V. & MARCUSCHI, L.A. Processos de referenciação na produção discursiva. D.E.L.T.A, Vol. 14, n o especial, p.169-190, 1998. KOCH, I.G.V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. Introdução à Lingüística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004. MARCUSCHI, L.A. Atos de referenciação na interação face a face. Cadernos de Estudos Lingüísticos, (41): 37-54, Jul./Dez., Campinas, 2001. MONDADA, L. & DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma Abordagem dos processos de referenciação. In CAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. Referenciação. Clássicos da Lingüística 1, São Paulo, Contexto: 2003. MORATO, E. M. (In) Determinação e subjetividade na linguagem de afásicos: a Inclinação anti-referencialista dos processos enunciativos. Cadernos de Estudos Lingüísticos, (41): 55-74, Jul./Dez, 2001. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 710-717, 2006. [ 717 / 717 ]