A ocorrência espontânea de expressões fomulaicas no contexto patológico: estudo da competência pragmáticodiscursiva
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- Alfredo Lemos Aveiro
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1 A ocorrência espontânea de expressões fomulaicas no contexto patológico: estudo da competência pragmáticodiscursiva Sandra Elisabete de Oliveira Cazelato 1 1 Instituto de Estudos da Linguagem Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Laboratório de Neurolingüística (LABONE/CCA) scazelato@yahoo.com Abstract. In the ambit of interests of the Symposium, this paper considers has the purpose of to analyzing two episodes of spontaneous occurrences of formulaic expressions (the so called idiomatisms, as well as the proverbial enunciations) for aphasic subjects, to discuss the current statement that the aphasic subjects, for having difficulties to accomplish metalinguistic operations, would not be capable of interpreting or using spontaneously the metaphoric or implied senses. Studing the spontaneous occurrence of formulaic expressions in the pathological context makes the study of pragmatic-discursive competence possible, and this, places the linguistic-cognitive processes in a relationship of reciprocity, that is, knowledge of the language and knowledge of world. Keywords. Formulaic expressions; aphasic subjects; metaphoric senses; pragmatic-discursive competence. Resumo. No âmbito dos interesses do Simpósio, esta comunicação propõe-se a analisar dois episódios de ocorrências espontâneas de expressões formulaicas por sujeitos afásicos, para discutir a afirmação corrente de que os sujeitos afásicos, por terem dificuldades de realizar operações metalingüísticas, não seriam mais capazes de interpretar ou lançar mão espontaneamente de sentidos metafóricos ou implicados. Estudar a ocorrência espontânea de expressões formulaicas no contexto patológico possibilita o estudo da competência pragmático-discursiva que coloca em relação de reciprocidade os processos lingüístico-cognitivos, um saber da língua e um saber de mundo. Palavras-chave. Expressões formulaicas; sujeitos afásicos; sentidos metafóricos; competência pragmático-discursiva. Estudos Lingüísticos XXXV, p , [ 1786 / 1792 ]
2 1. As expressões formulaicas Numa perspectiva enunciativa, o estudo das expressões formulaicas possibilita a análise dos processos meta (metalingüístico, metaenunciativo, metacomunicativo, metadiscursivo) no contexto de práticas de linguagem. As expressões formulaicas têm traços de heterogeneidade enunciativa (a heterogeneidade enunciativa definida como um conjunto de processos enunciativos que se organizam por uma relação complexa com o discurso do outro ou discursos outros); caracterizam-se por uma reflexividade enunciativa que tem a ver a um só tempo com o trabalho lingüístico, com o interdiscurso, com a memória cultural, com os elementos pré-construídos dispostos na sociedade. Possibilita a investigação dos fatores de constituição do sentido e do funcionamento lingüísticocognitivo que, segundo Morato (2002), diz respeito a uma competência pragmáticodiscursiva que relaciona o lingüístico e o cognitivo envolvidos em práticas interacionais. As expressões formulaicas podem ainda ser consideradas como formas metaenunciativas pois realizam o que Maingueneau chama de jogo de produção de sentido (Cf. Maingueneau, 1989), articulando duas dimensões da heterogeneidade enunciativa: a metalinguagem e a enunciação (Cf. Authier-Révuz, 1998). 2. A interpretação de expressões formulaicas e as afasias Em termos gerais as expressões formulaicas podem ser entendidas como expressões cristalizadas com sentidos metafóricos ou implicados que exigem conhecimento de mundo, levam em conta processos intertextuais e convoca os interlocutores às atividades inferenciais específicas para a sua interpretação e manipulação. Na interpretação de um enunciado qualquer, há processos lingüísticos, cognitivos, discursivos, socioculturais que participam da construção da significação; na interpretação de um enunciado metafórico são exigidas estratégias e operações que têm suas características na língua voltadas para o reconhecimento do sentido implicado. Os idiomatismos e os enunciados proverbiais trazem para o enunciado/ discurso de quem as utiliza a presença de um discurso-outro que assinala uma interdiscursividade representada (Cf. Authier-Révuz, 1998), sem apagar o traçado da fronteira entre o discurso próprio e este outro. Fala-se aqui do exterior repetido no singular: a cristalização dos sentidos é atualizada em cada discurso no qual se insere a expressão quando proferida. Por sua própria constituição, estas formas carregam discursos a elas incorporados, configurando o sentido da enunciação: as expressões são o ponto de concentração e dispersão dos sentidos - é da tensão entre estas forças que se obtém o jogo de sentido presente nas expressões idiomáticas. A interpretação de expressões formulaicas depende de um trabalho de aproximação (de similaridade) dos termos da expressão e a situação de comunicação, e determina as inferências específicas para a interpretação. Para determinar o sentido de uma expressão formulaica, os sujeitos devem mobilizar, além do processo lingüístico-discursivo, regras pragmáticas que orientam quanto ao seu sentido. Estudos Lingüísticos XXXV, p , [ 1787 / 1792 ]
3 No discurso dos sujeitos afásicos observam-se, além de dificuldades próprias das afasias (que nem sempre implicaram, necessariamente, perda da capacidade reflexiva da linguagem, já que esta não se reduz à capacidade do tipo metalingüística), dificuldades para controlar a polissemia entre língua e discurso. Porém, problemas metalingüísticos stricto sensu como os relativos à relação paradigmática entre palavras - que seriam característicos das afasias - não parecem capazes de destruir uma espécie de capacidade de reflexão i sobre a língua e sua relação interpretativa - com o mundo. Não sendo reduzida à língua em sentido estrito, a metalinguagem invoca para a realização da interpretação de enunciados proverbiais e das expressões idiomáticas, outras circunstâncias (de conhecimentos partilhados, conhecimentos de mundo, de cálculos inferenciais ligados à interpretação de elementos metafóricos) e processos lingüísticocognitivos (inferenciais, mnêmicos, analógicos). 3. Discussão de dados neurolingüísticos com expressões formulaicas Para ilustrar essa discussão apresento a seguir dois dados de ocorrências espontâneas de expressões formulaicas por sujeitos afásicos ocorridos no Centro de Convivência de Afásicos (CCA) ii partindo da hipótese de que o estudo enunciativo das expressões formulaicas possibilita a investigação dos fatores de constituição do sentido e do funcionamento lingüístico-cognitivo que diz respeito a uma competência pragmáticodiscursiva. No episódio (1), os sujeitos não-afásicos (EM, RN, HM, FC, JC, ET) e os sujeitos afásicos (SI, NS, MS, JM, MG) estão conversando no CCA quando JC faz uma pergunta para NS sobre a expressão formulaica tempestade em copo d água. A partir da pergunta de JC, NS faz um movimento enunciativo em direção ao sentido da expressão e em direção a uma cena enunciativa particular que constrói correspondente ao sentido. Podemos ver a seguir: (1) JC: NS já fez tempestade em copo d água alguma vez na vida? NS: ((movimento de cabeça de sim, rindo e parecendo um pouco envergonhada)) JC: já né? EM: que sentido tem tempestade em copo d água? HM: quando você fez? EM: [exagerar HM: quando você fez não pode falar? NS: ((movimento com o dedo indicador como sinal de fechar a boca olhando para HM, rindo e parecendo envergonhada)) JC: onde está NS você foi? EM: o que foi? JC: ela fez assim discretamente ((faz o movimento imitando NS com o dedo indicador como sinal de fechar a boca)) EM: porque Em boca fechada não entra mosca né? Estudos Lingüísticos XXXV, p , [ 1788 / 1792 ]
4 EM)) NS: é isso ((usa uma entonação de voz que enfatiza bastante a concordância com ((risos)) Neste dado podemos verificar o movimento enunciativo que NS realizou demonstrando que ele reconheceu o sentido implícito na expressão formulaica tempestade em copo d água, fazendo uma relação entre a expressão formulaica e uma situação particular em que tal expressão cabe no sentido veiculado, ou seja, o sentido de exagerar na reação a uma situação problema. Portanto, NS fez um deslocamento de sentido da expressão para uma situação pessoal. NS reconheceu o sentido implicado na expressão e demonstrou isso ao não querer explicitar a situação em que fez tempestade em copo d água, pois nessas situações, muitas vezes, ao exagerar nas reações, é vergonhoso contálas e é melhor guardar em segredo o que se fez. Podemos observar isso, quando NS responde usando gestos corporais com uma expressão facial de envergonhada, e também quando concorda com EM com relação ao sentido veiculado no provérbio Em boca fechada não entra mosca respondendo é isso com uma entonação bastante enfática. NS cria um contexto enunciativo para a expressão tempestade em copo d água, para isso usa gestos, expressão facial, comunicação visual sem explicitar verbalmente o sentido. Ao final do episódio, NS usa uma entonação ( é isso ) enfatizando o dêitico discursivo para assinalar mais ainda a cena enunciativa a que corresponde o sentido veiculado na expressão e no provérbio Em boca fechada não entra mosca. NS fez, desse modo, uma relação entre o seu dizer e o dizer do outro, esse outro EM e o sujeito universal dos provérbios. NS procedeu também a ações reflexivas sobre o sentido o que é fundamental no reconhecimento de sentidos metafóricos veiculados na expressão formulaica tempestade em copo d água e no provérbio Em boca fechada não entra mosca (como em qualquer outra expressão com sentidos metafóricos ou implicados), na explicitação do sentido numa situação enunciativa dada e nos processos de significação que indicam que ele trabalhou sobre e com a linguagem. Isso tem a ver com uma competência pragmático-discursiva, da relação entre linguagem e cognição pensadas enunciativamente na constituição do sentido e da significação. No episódio (2), os sujeitos não-afásicos (EM, RN, HM, FC, JC, ET) e os sujeitos afásicos (SI, NS, MS, JM, MG) participam de uma atividade no CCA na qual uma figura, em que um homem está pendurando uma chuteira no varal, é apresentada aos sujeitos para que tentem se lembrar da expressão formulaica a que se refere a figura, no caso pendurar a chuteira. Portanto, é preciso aqui fazer uma interpretação da figura para reconhecer o seu sentido. Primeiramente EM faz um comentário sobre a figura Ele tá guardando a chuteira tá balançando, e NS recusa essa idéia olha... eu penso que não. A partir desse comentário, NS mostra o seu movimento reflexivo sobre a linguagem e orienta os próximos comentários como podemos ver a seguir. (2) EM: o que ele tá fazendo? Ele tá guardando a chuteira tá balançando NS: olha... eu penso que não JC: o que ele tá... tá guardando... JM: tá tá Estudos Lingüísticos XXXV, p , [ 1789 / 1792 ]
5 EM: como é a expressão? MS: guardando a chuteira JC: não aqui ó MG: pendurando a chuteira EM: pendurar a chuteira JC: o MS nunca... MG: vai pendurar a chuteira MS: isso ma-ra-vi-lha ((risos)) EM: né? A pessoa não se aposenta... não se aposenta... como é que fala... a pessoa não quer se aposentar fala assim... MG: vou pendurar minha chuteira eu tô tentando pendurar a minha chuteira e não consigo ((risos)) Após o comentário de NS, JC retoma o comentário de EM e JM tenta completar o comentário de JC. EM pergunta como é a expressão? MS retorna ao primeiro comentário de EM, demonstrando concordar com o sentido que interpretou e explicitou a partir da figura. JC, então, mostra a figura apontando para o varal em que a chuteira está pendurada e MG comenta pendurando a chuteira. Ao reconhecerem a expressão pendurar a chuteira, a pesquisadora JC brinca com o sujeito MS, um sujeito bastante alegre e animado, e MG continua a brincadeira completando o comentário de JC sobre MS e pendurar as chuteiras e assim mostra que reconheceu o sentido veiculado na expressão e MS também, pois concordou com JC e MG. Após isso, EM faz um comentário sobre o sentido da expressão, ou seja, o sentido de aposentar, e MG faz um comentário, a partir da fala de EM, explicitando esse sentido para uma situação particular. NS, MS e MG fizeram as inferências específicas para o reconhecimento e a interpretação da expressão pendurar a chuteira o que exige um trabalho sobre a língua e sobre o mundo, uma reflexividade enunciativa e uma competência lingüística, pragmática, discursiva que tem a ver com o funcionamento da linguagem, com os fatores de constituição do sentido e o funcionamento lingüístico-cognitivo em situações em que a metalinguagem e essa reflexividade estão em jogo, no caso na manipulação e interpretação de uma expressão formulaica. Além do reconhecimento de práticas discursivas e sociais, uma competência pragmático-social. 4. Comentários finais Podemos observar nos dados apresentados que as expressões formulaicas arbitram um trabalho que o sujeito faz com a língua e com seu exterior. Podemos observar isso, por exemplo, quando NS (episódio 1) reconhece a expressão tempestade em copo d água, e referindo-se a uma cena enunciativa particular sem explicitá-la e concorda com EM quando esta diz o provérbio Em boca fechada não entra mosca, e faz esse movimento de sentido de uma expressão para outra. Ou quando MG (episódio 2) comenta sobre a sua aposentadoria a partir da expressão pendurar as chuteiras. A interpretação e manipulação das expressões formulaicas depende de alguma maneira da competência pragmática dos Estudos Lingüísticos XXXV, p , [ 1790 / 1792 ]
6 sujeitos que coloca em relação os processos lingüístico-cognitivos, o saber da língua e o saber de mundo. Podemos verificar como a competência pragmático-discursiva se articula com as outras formas de competência e como a relação entre linguagem e cognição se dá enunciativamente através de dados no contexto patológico. Analisar a emergência da competência não é sempre a mesma: ela se mobiliza às vezes pela força da linguagem, da memória, do conhecimento enciclopédico. Além disso, verificar que a competência pragmático-dicursiva dos sujeitos afásicos não está destruída porque a língua encontra-se afetada nas afasias. Nos dados verifica-se, cumpre observar, a presença de uma postura metaenunciativa em gestos expressivos e interpretativos de sujeitos afásicos mesmo na presença de alterações lingüísticas e cognitivas (...) O caráter reflexivo da linguagem nos conduz a uma outra definição do sujeito: no discurso, o sujeito fala de qualquer coisa e ao mesmo o faz dizendo. E o faz ainda de forma a indicar (e constatar) uma heterogeneidade social, cultural, lingüística, etc. Ele se situa em algum lugar entre o individual, o dialógico e o coletivo. Ele domina seu discurso sem ser na verdade se mestre. Por isso não se pode negar que no discurso há marcas de subjetividade tanto quanto há marcas de heterogeneidade. (Morato, 2003/2005:8-9). Portanto, observa-se a capacidade de reflexividade enunciativa dos sujeitos sobre a língua e seu funcionamento, e a presença dos aspectos da enunciação e das ações reflexivas dos sujeitos interligados discursivamente nas práticas discursivas observadas nas interações entre afásicos e não-afásicos que freqüentam o Centro de Convivência de Afásicos. i A capacidade a que se alude aqui, que diz respeito à propriedade reflexiva da linguagem, que não se identifica com a metalinguagem, já que nem sempre falar sobre a língua liga-se diretamente a um distanciamento metaenunciativo (Cf. Morato, 1999, p. 294), que parece ser imprescindível para a elaboração enunciativa da interpretação dos idiomatismos, tanto em relação aos processos normais como aos patológicos. ii O CCA (Centro de Convivência de Afásicos), vinculado ao Labone, é um espaço de interações entre pessoas afásicas e não-afásicas e funciona nas dependências do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP). 5. Referências bibliográficas AUTHIER-RÉVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas SP: Editora da UNICAMP, BOLDRINI, M. As expressões formulaicas na linguagem de sujeitos afásicos: um estudo dos idiomatismos. (Projeto de Iniciação Científica orientado pela prof. Dra. Edwiges Maria Morato, FAPESP processo número 02/ ), BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas, Ed. Unicamp, CAZELATO, S. E. de O. Estudo de formas meta-enunciativas em sujeitos afásicos: a Estudos Lingüísticos XXXV, p , [ 1791 / 1792 ]
7 enunciação proverbial. (Projeto de Iniciação Científica orientado pela prof. Dra. Edwiges Maria Morato, FAPESP processo número 97/ ), A interpretação de provérbios equivalentes por afásicos: um estudo enunciativo. Dissertação de Mestrado, IEL Unicamp, Campinas, JAKOBSON, R. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In Lingüística e Comunicação. São Paulo, Ed. Cultrix, LEBRUN, Y. Tratado de Afasia. São Paulo, Paramed Editorial, MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas, Pontes, Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, MORATO, E. M. Formas meta-enunciativas no discurso de sujeitos afásicos. In ProduçãoTextual: interação, processamento, variação. Ed. Natal: EDUFRN, 1999a. MORATO, E. M. Rotinas significativas e práticas discursivas: relato de experiência de um Centro de Convivência de Afásicos. In Revista de Distúrbios da Comunicação, vol. 10, p.5-15, PUC-SP, 1999b. A Neurolingüística. In Mussalin, F.; Bentes, Anna C. (org.). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. Vol. 2, Ed. Cortez, 2001a. (In)determinação e subjetividade na linguagem de afásicos: a inclinação anti-referencialista dos processos enunciativos. In Caderno de Estudos Lingüísticos (41):55-74, 2001b. Centro de Convivência de Afásicos: práticas discursivas, processos de significação e propriedades interativas. Projeto apoiado pela FAPESP, processo n o 99/ , Análise da competência pragmático-discursiva de sujeitos afásicos que freqüentam o Centro de Convivência de Afásicos. Projeto apoiado pela FAPESP, processo n o 03/ , dez a dez. de SACKS, Sheldon (org.). Da metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, Estudos Lingüísticos XXXV, p , [ 1792 / 1792 ]
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