CORPO-OBJETO. Viviane Matesco UFF. Resumo

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Transcrição:

2981 CORPO-OBJETO Viviane Matesco UFF Resumo O artigo desenvolve uma análise da concepção substancial de corpo nas manifestações artísticas internacionais dos anos 60 e 70. Examinamos a concepção do corpo como objeto no contexto do Happening, Gutai, Fluxus, Accionismo Vienense e Body Art a partir de uma ideologia de corpo autêntico. No final dos anos 60, a noção de corpo como suporte relaciona-se às novas modalidades da arte conceitual. Palavras-chave: Corpo, Body Art, Performance Abstract This article develops an analysis of a substantial conception of the body on the artistic manifestations in the 1960 and 1970. We exams the conception of the body as an object in the context of the Happening, Gutai, Fluxus, Viennese Actionism and Body Art according to a ideology of authentic body. At the end of the sixties the notion of the body as a support is related to the new modalities of conceptual art. Key Words: Body, Body Art, Performance Alguns elementos são determinantes para que nas manifestações artísticas da segunda metade do século XX se consolide uma concepção substancial de corpo. Em primeiro lugar o corpo foi considerado a partir de uma visão instrumental em processo de ampliação do campo da pintura: tornou-se então suporte de um acontecimento pictórico. Ao lado disso ocorreu a afirmação do corpo em seus elementos e funções corpóreas como maneira de se contrapor à sua tradicional repressão. Como em verdadeira luta ideológica, afirma-se um corpo puro e autêntico em reversão de valores burgueses e conservadores. Também a ênfase no naturalismo e nos rituais da vida tinha como objetivo desfetichizar o corpo. Em terceiro lugar, a busca de novos meios experimentais acentuou a dicotomia corpo e mente através da noção de corpo como suporte de arte, como suporte de uma idéia. Esses três fatores

2982 contribuíram para o engessamento de uma concepção de corpo substancial, que é o alvo de nossa reflexão. Corpo como pincel - corpo como extensão da pintura A relação entre corpo e arte adquire novas referências a partir do pós-guerra: a tela foi gotejada e salpicada por Jakson Pollock, rasgada por Lucio Fontana e furada por Shozo Shimamoto. No Manifesto Branco, que Fontana escreve em 1946, define a arte como gesto e não meramente como objeto; ao rasgar a tela, ele não representa o espaço, mas o cria. Da mesma maneira, no Japão entre 1949 e 1952, Shozo Shimamoto faz buracos em suas telas. Pollock, Fontana e Shimamoto subvertem o espaço pictórico tradicional e introduzem acaso e ação como cerne da atividade artística. A arte muda a partir de então, pois a ação pictórica tornou-se tão importante quanto o que estava sendo criado. 1 A atenção deslocou-se gradualmente da pintura como um objeto e focou-se no próprio ato de pintar. A circulação das fotografias de Pollock realizadas por Hans Namuth, causa grande impacto, com repercussões em várias partes do mundo. A presença do artista no trabalho através do ato da pintura fez com que o corpo se tornasse ferramenta para aplicar tinta, em tentativa de estender o espaço pictórico tradicional, como nos pincéis vivos utilizados por Yves Klein. Do fenômeno Gutai às Antropometrias de Klein e mesmo os experimentos do accionismo vienense representam extensão da action painting. Artistas como Kaprow, Tanaka, Muehl, Brus, Rauschenberg estenderam a arte gestual em happenings e ações nas décadas seguintes. No artigo O legado de Jackson Pollock, Allan Kaprow 2 detalha a importância desse artista para o aparecimento dos happenings. Acentua que para avaliar o impacto de Pollock temos que nos tornar quase acrobatas e acompanhar o ire-vir que identificava as mãos e o corpo que jogava a pintura sobre a tela e se colocava dentro dela. Aqui artista, espectador e mundo exterior são bastante implicados, pois seus trabalhos significam um continuum que anula a separação tradicional dos limites da tela, do mundo do artista e daquele do espectador. Kaprow concluiu que após Pollock haveria duas alternativas a seguir: continuar em sua estética e fazer quase-pinturas ou abandonar a prática da pintura em direção ao espaço e aos objetos da vida cotidiana, quer

2983 seja o corpo, o vestuário, os lugares em que vivemos ou qualquer tipo de objeto que nos cerca. É importante apontar como o corpo é visto nessa ampliação do espaço pictórico associado a um objeto, como todos os demais da vida cotidiana. A passagem do espaço bidimensional para o espaço exterior é realizada por via objetiva e relaciona-se com as premissas da pop art. Influenciado pelo experimentalismo de Cage, Kaprow é um dos inúmeros artistas que produzem assemblages na década de 1950. Das assemblages, o artista passa a desenvolver a action collage, que tem caráter mais complexo, como environment/ambiente. Na proposta de um deles, 18 Happenings em 6 partes, realizado em 1959, os espectadores participam da colagem de várias ações cotidianas seguindo as instruções do artista a cada subespaço da galeria, dividida por papel plástico transparente. A partir de 18 Happenings em 6 partes a imprensa aglutinou outras manifestações sob o nome de happening, mesmo que os artistas optassem por nomes diferentes, e ao longo da década de 1960 o termo popularizou-se por todo o mundo. Os primeiros a realizar happenings foram Kaprow, Red Grooms, Jim Dine, Claes Oldenburg e Robert Whitman, todos ligados à Pop Art. Os happenings eram marcados pela relação com os ambientes e objetos/pinturas, como os de Oldemburg, que transformava seus objetos inanimados em objetos em ação. Desenvolveu durante dois meses (1961/62) o happening/ambiente The store: em uma loja dispôs seus objetos, como em um mercado comum - o sistema de arte era literalmente vivenciado como sistema capitalista; a galeria como loja, as obras de arte como mercadorias, o artista como vendedor. Os happenings buscavam ser extensão da vida cotidiana, daí girarem em torno de situações comuns. Apesar disso, eram extremamente complexos, pois envolviam a construção de ambientes, forte dimensão visual e a participação do público em etapas planejadas, aspectos que os distinguem das demais ações dos anos 60. Caracterizavam-se pela organização simultânea de acontecimentos, como em uma colagem, e pelo estabelecimento de relações entre os artistas e o público através da solicitação de diversos sentidos. A impossibilidade de repetição, relativa margem de imprevisto e utilização de

2984 locais alternativos que misturavam teatro, dança música, escultura poesia e pintura conferiam aos trabalhos caráter híbrido. A ampliação do happening ao longo dos anos 60 evidencia-se na incorporação de lugares como rinque de patinação, cinema, pátios e ginásios de igreja. As interconexões de dança, artes visuais e teatro (Living Theater), Fluxus e happenings são muito estreitas no ambiente artístico de Nova York. 3 Artistas plásticos, coreógrafos, compositores e atores trabalhavam juntos no intuito de promover novas práticas experimentais. Robert Moris literaliza em escultura os conceitos explorados pelo Living Theater, que enfatizava os corpos no espaço, e por Simoni Forti no Judson Dance Theater. 4 Ligado ao minimalismo, seus trabalhos afastam-se do naturalismo do happening, pois expressavam preocupação com a repetição e com o processo. Esses aspectos desenvolvidos por Morris serão fundamentais para que, no final da década de 1960, a performance se torne abordagem do corpo mais intelectualizada e abstrata. Em Standing Box, de 1961, o corpo é representado pela geometria da caixa; usando uma coluna de madeira baseada na escala de seu próprio corpo, o artista permanece de pé dentro da estrutura durante três minutos e meio, e depois tomba. Morris traduz aí em trabalhos esculturais com o corpo, as teorias de vanguarda na dança. Em I-Box, de 1962, inverte a premissa do expressionismo abstrato de a tela ser o lugar de inscrição do eu artístico. Trata-se de uma caixa na qual uma fotografia do artista nu é descoberta quando se abre uma porta de madeira no formato da letra I ; um jogo entre eu em inglês e a sonoridade da palavra eye, que significa olho. Com I-Box, Morris literaliza o eu do artista como um objeto-corpo. 5 No Japão, os artistas do grupo Gutai pintavam os quadros com seus próprios corpos. Fundado em 1954 por Jiro Yoshihara, a Gutai Bijutsu Kyokai (Gutai Art Association) era composta por artistas que tinham vivenciado a derrota na guerra e a bomba atômica. 6 Seus trabalhos têm afinidade com action painting e arte informal, e caracterizam-se por teatralidade inspirada na improvisação do meio. Kazuo Shiraga, o mais exemplar dos artistas Gutai, realizou em 1955 o trabalho Lama provocante, que se constituiu em ação realizada numa piscina de lama, em que produziu uma pintura a partir das impressões de seu corpo - uma pintura bidimensional feita de lama. Posteriormente começou a

2985 desenvolver uma pintura com pés cobertos de tinta; com o corpo suspenso por uma corda, balançava-se para realizar as impressões sobre uma tela. Atsuko Tanaka realizou, em 1956, Vestido elétrico, um quimono tecnológico que estabelece conexão entre a eletrificação e os sistemas fisiológicos do corpo humano. A artista construiu planos para a fiação que constitui o tecido refletindo o sistema nervoso e vascular, cobertos com bulbos luminosos. Acesas, as luzes coloridas formavam uma pintura em movimento. Aqui o corpo assume o papel de um objeto e paralelamente este desempenha as funções do corpo. Na França, em 1960, Yves Klein utiliza pincéis vivos em Antropometrias do Período Azul. Na realização do trabalho, o artista dirigiu modelos femininos nus que pressionavam seus corpos com IKG (International Klein Bleue) em papéis brancos presos à parede. Enquanto os pincéis vivos atuavam, vinte músicos tocavam a Symphonie Monoton-Silence, que se constituía em peça musical de 20 minutos com apenas uma nota contínua, seguida de 20 minutos de silêncio. Klein já havia realizado experiências com pincéis vivos anteriormente e outras a seguiram. A experiência implicava três etapas: a imersão do corpo na pintura, sua impressão sobre a tela e, por último, o corte da pintura produzida em uma série de antropometrias. 7 Esse processo foi distinto da composição em grande escala feita durante a sessão pública realizada na Galerie Internationale d Art Contemporain; a Antropométrie de l époque bleue tinha, em parte, um intuito pedagógico de explicar a origem de suas formas figurativas e o procedimento de suas impressões. No entanto, a repercussão do trabalho e rótulo de actionsspetacles dado por Pierre Restany conferiram caráter sensacionalístico que distancia-se do sentido transcendente que Klein buscava em suas pinturas. A maneira que Klein trabalha a matéria e o corpo nos seus pincéis vivos tem paralelo nas práticas dos artistas do Accionismo Vienense. 8 Como Klein, os accionistas exploravam o campo de ação da pintura para colocar em evidência as qualidades sensuais da matéria colorida. Suas ações visavam ao alargamento das fronteiras tradicionais da pintura em proveito de trabalho direto com a substância e objetos reais e, mais particularmente, com o corpo humano. Contudo, a ênfase nos processos naturais, bem como a violenta dramaticidade que testemunhava o aspecto trágico da vida, diferenciava a

2986 poética dos vienenses. Em 1960 Otto Mühl entra em contato com Günter Brus, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler e começa a criar suas Materialaktions. Em todas elas, a pintura participa da ação que transforma o corpo em pura expressão plástica. Em 1962 coloca-se diante de uma tela como se estivesse crucificado, e Otto Muel lhe joga tinta vermelha, ainda usada em lugar de sangue. Em 1964 Mühl realiza e filma Leda e o Cisne em que um corpo de mulher nu é regado por líquidos de diversas cores e recoberto por plumas, formando um conjunto que ironiza a tradição pictórica. Herman Nitsch organiza em 1960 as ações pictóricas em que projeta ou aplica com uma esponja a cor vermelha em grandes superfícies. Para Nitsch, pintura, pigmento e sangue se mesclam conformando um só corpo. Günter Brus realiza entre 1964 e 1965 uma série chamada Autopintura em que submete seu rosto a dramática metamorfose. Corpo puro e naturalístico A afirmação de uma ideologia libertária nos anos 60 e 70 contribuiu para a construção da imagem de um corpo puro centrado na experiência física e cotidiana. A ênfase no naturalismo, nos rituais da vida e nas funções orgânicas visava contrariar o tradicional rebaixamento do corpo na sociedade burguesa. A emergência do corpo do artista nos anos 60 e 70 liga-se aos problemas do capitalismo e está em consonância com os movimentos de protestos e a conjuntura da contracultura. As idéias de liberdade de normas e cânones não eram novas; foram introduzidas por práticas artísticas dos anos 50, influenciadas por Cage e Cunningham. É a postura dos artistas da década de 1960 que define uma era. O happening foi difundido nos meios de massa como figura de liberdade, espontaneidade e valorização da arte na vida. Tornou-se parte das maciças convulsões políticas e culturais do decênio; esses modos alternativos de produção cultural foram componentes cruciais nessa mudança. 9 O corpo verdadeiro, não idealizado, fora esquecido na arte, daí a primazia da experiência corporal. Os artistas de vanguarda lidaram de diversas maneiras com a classificação social do corpo ao fazerem referência a atos privativos cuja representação era tabu para a sociedade. Sob a influência das teorias de Althusser e Marcuse, a utopia visando liberar o indivíduo de sua alienação na sociedade de massas capitalista estava diretamente ligada à reconquista de

2987 seu próprio corpo. 10 Para os artistas, o corpo era meio novo e garantia de autenticidade: o lugar onde se devia transformar a condição do indivíduo alienado para a de um homem livre, autêntico e autônomo. A incorporação do corpo pela arte nos anos 60 significava uma subversão dos tabus e interditos, e fazia do espectador testemunha de uma transgressão, de arranjo agressivo e crítico das regras sociais, religiosas e culturais. Contra a hipocrisia do sistema e o apelando à autenticidade, constrói-se o mito de um corpo puro. O corpo efervescente e aberto ao mundo consegue cavar buracos no decoro e na hegemonia da cultura oficial de diversas maneiras. Uma delas, associada aos artistas do Fluxus, efetivava-se através dos trabalhos centrados nos atos do cotidiano, imitando e desnaturalizando a vida por meio de ações repetitivas. Outra via era a do corpo expressivo, algumas vezes agressivamente ativista, usado para solicitar a raiva, a compaixão e outras emoções que presumidamente iriam romper a apatia e passividade da sociedade. A expressão Body Art surge no final da década de 1960 e agrupa várias tendências que tinham como denominador a proposta de desfetichizar o corpo humano. As ações Fluxus, mais internacionais, têm caráter mais político do que os happenings, mais ligados ao contexto americano. Se o happening apresenta maiores complexidade e duração, os artistas do Fluxus recorrem a ações muito simples e concentram-se num acontecimento que ocorre de maneira improvisada. Sem nenhuma participação do espectador, suas ações são geralmente desenvolvidas perante um público. O movimento Fluxus surge por iniciativa do lituano George Maciunas, que em Wiesbaden (Alemanha), agregou artistas que estavam experimentando novas formas de arte - Wolf Vostell, Nam June Paik, Ben Vautier, Daniel Spoerri, Knizák, Robert Filliou e Joseph Beuys são os nomes mais representativos. Em 1963 Dick Higgins e Maciunas voltam para Nova York e vários outros artistas associam-se ao Fluxus. A palavra ação é o termo utilizado nos países de língua germânica, mas é pouco utilizada nos Estados Unidos. Pela influência de Nova York as ações Fluxus eram muitas vezes caracterizadas como happenings multimídia, pois sempre tiveram muita influência de música, teatro e dança. Enquanto os happenings eram preferencialmente resposta à action painting e apenas

2988 secundariamente uma relação com Cage, Fluxus era vanguarda completamente identificada como o músico. Fluxus privilegia o efêmero, o transitório, o que flui, a energia vital unificadora de arte e vida - por isso o gesto banal adquire a importância de obra de arte. A revelação do Fluxus foi de que tudo é maravilhoso. 11 Com o Fluxus, a arte não seria recinto especial do real, mas uma forma de experimentar qualquer coisa, a chuva, o burburinho, um espirro. Por isso as apresentações Fluxus eram acontecimentos sumamente simples, consistindo de evento único, como a apresentação de George Brecht ligando e desligando a luz, pois pretendiam ter grau zero de emoção. Isso justifica a recorrência de trabalhos com os atos de comer e de vestir, pois eram ações ready-made, que podiam ser executadas de maneira simples e fácil por qualquer pessoa. Como atos cotidianos os trabalhos são marcados pelo naturalismo e desenvolvem-se como narrativas temporais. Yoko Ono, como Paik, faz a transição da música para as artes visuais através de seu estudo de Cage. Em Cut piece vestia-se com traje de noite e convidava a audiência a cortar seu vestido enquanto permanecia calmamente sentada em estado de contemplação. A ação, marcada pela agressividade e por resposta violenta do público, terá paralelo nas gerações posteriores, como em Ana Mendieta ou Gina Pane. Essas artistas, no entanto, utilizarão a fotografia para realizar seus trabalhos, o que lhes confere caráter de instantâneo congelado, distanciandoos da ação de Yoko Ono. O caráter natural de Cut piece pressupõe um desenrolar temporal com a presença literal do corpo do artista e de um público. A expressão Body Art surge apenas em 1969, embora, muitos artistas já estivessem trabalhando nesse sentido desde o início da década, como os do Accionismo Vienense e Carolee Sheeneman. Se de início os artistas vienenses trabalham o corpo com extensão do espaço pictórico, paulatinamente passam a utilizar em suas ações substâncias reais; o sangue vertido sobre corpos humanos e os cadáveres de animais eram motivos revisitados. A idéia de purificação como condição prévia ao conhecimento intensificado, consciente e positivamente vivido da existência e da realidade, é o fundamento de todos eles. A celebração da carne e a ênfase em funções orgânicas como vomitar, urinar, defecar, ejacular, sangrar visavam à restauração da situação primordial

2989 do corpo por meio de atos diretos e elementares. A doença, a morte, a sexualidade eram tratadas com crueza, pois os artistas consideravam o corpo como o centro das relações existenciais e potência de liberdade. As ações eram programadas e geralmente registradas em fotografias e filmes. Daí a recorrência a ações com agressividade, como a castração e a violação, pois acentuavam o drama através de simulações e não pela exploração do potencial real da dor, como fariam depois artistas como Chris Burden ou Gina Pane. Visavam a um efeito catártico que resultasse numa tomada de consciência deliberada da existência. 12 Espelhos da humilhação da condição humana, as ações refletem a tensão com a própria ordem social que converte o corpo em produto, em objeto econômico, em máquina ou instrumento. Carolee Schneemann, também precursora da Body Art, desenvolve algumas experiências durante a década de 1960 nas quais lida com o registro do corpo marcado pela questão feminista. Em Meat joy realiza um rito erótico com sentido comunitário, apontando a dimensão coletiva da existência sexual: em celebração da carne, usa o sangue de carcaças de animais para lambuzar os corpos dos participantes. Em 1969 o artista francês Michel Journiac 13 realiza Messe pour um corps, trabalho no qual extraiu sangue de seu próprio corpo para depois fazer Salsicha de Sangue (1969). O artista, ex-seminarista, ironicamente apresentase como recipiente do sacramento e o próprio sacramento como metáfora do sangue de Jesus. Na casa de Journiac reuniam-se vários interessados em discutir o papel do corpo na sociedade, como François Pluchart e Gina Pane que cunha a expressão art corporel para o manifesto do grupo. 14 Nesse manifesto, Pluchart afirma que a singularidade da arte corporal é focalizar o corpo tal como a sociedade vive, oculta, exprime ou rejeita - daí os trabalhos com sexo, prazer, sofrimento, morte e travestimento. Para os franceses é fundamental que os trabalhos lidem com o corpo biológico, objeto de prazer e sofrimento em oposição ao esquema esclerosante do happening. 15 A teatralidade dos happenings, sua relação com a pintura e a ausência de preocupação sociológica são os elementos diferenciais ressaltados. 16 Gina Pane acreditava que a dor ritualizada tinha efeito purificador para atingir uma sociedade anestesiada: justifica-se assim a autodilaceração do corpo nos anos

2990 70. Em 1971 em Escalade, Pane sobe uma escada de metal com lâminas de barbear nos degraus; a ação foi executada para um pequeno grupo de amigos em seu estúdio e fotografada em close. Em Lê corps pressenti, de 1975, corta o pé com uma lâmina, e em Psyche, de 1974, ajoelha-se diante de um espelho, metodicamente aplica maquiagem em sua face e então corta com uma lâmina pequenas linhas abaixo de suas sobrancelhas. A artista afirmava querer criar uma linguagem através desses ferimentos; atacando seu corpo confronta sua própria vulnerabilidade com a das mulheres em geral. O corpo em dor ou sofrimento passa a ser elemento que unifica os rituais dos artistas do Acionismo Vienense, Carolee Schneemann, os franceses Journiac e Gina Pane, as primeiras performances de Marina Abromovic e de Ana Mendieta, a produção sensacionalista de Cris Burden e mesmo alguns trabalhos nos quais Vito Acconci buscava o esgotamento físico. O denominador comum desses artistas era a afirmação de um corpo puro e primitivo, eliminando a exaltação à beleza a que esteve submetido pela arte durante séculos, para trazê-lo à sua verdadeira função: a de instrumento do homem. Em outras palavras, a Body Art constitui-se em atividade cujo objeto é aquele que geralmente usamos como instrumento. 17 A ironia é que esse rótulo ganha popularidade quando a atenção se desloca da exploração das capacidades do corpo para a idéia do corpo do artista como suporte de arte. Ao longo dos anos 70 o rótulo body art se dilui porque a performance afirma-se como meio que pesquisa novos modos de comunicação e significação que, apesar de utilizar o corpo como matéria-prima, não se reduz à mera exploração de suas capacidades. A performance vincula-se ao princípio básico de transformar o corpo do artista em suporte de uma linguagem de arte. De instrumento, ele passa a suporte de um discurso. Corpo como suporte de uma idéia A expressão Body Art surge no contexto de experimentalismo do final dos anos 60 e liga-se inicialmente aos artistas americanos Vito Acconci, Chris Burden e Bruce Nauman. Suas obras apresentam algumas mudanças que implicam separação nítida entre o artista e o corpo, diferenciando-se de toda identificação até aquele momento. A distância imposta pelo vídeo ou fotografia

2991 faz-se fundamental para a consolidação da performance, uma vez que o corpo se torna um meio entre outros, sem o aspecto heróico da década anterior. Não há mais, como no Happening e no Fluxus, o desenrolar de um acontecimento naturalista no qual o público identifica o artista como condutor de uma ação. A experimentação de novos meios pela arte acentua a dicotomia entre corpo e mente através da noção de corpo como suporte de uma idéia, fator que o coloca na situação de algo externo e manipulável. Ao longo da década de 1970 observam-se a progressiva afirmação da performance como categoria de arte e sua legitimação pelos museus, simpósios e academias. A assimilação da performance pelo sistema de arte relaciona-se também à discussão dos registros e da realização de trabalhos a partir do enquadramento da imagem, via foto ou vídeo. Realidade efêmera, o corpo em ação inscreve-se no universo estético da desmaterialização da obra de arte característica dos anos 70 18. A expressão dá o sentido de expansão das fronteiras por que passou a arte então. Na arte conceitual, a idéia é o mais importante, e a forma material é secundária, efêmera, despretensiosa e/ou desmaterializada. Para artistas procurando reestruturar a percepção e a relação entre o processo e o produto da arte, a informação e os sistemas substituíram as preocupações formais. Entre as idéias desenvolvidas a partir do minimalismo, de situação, repetição e processo são fundamentais para que os artistas efetuem a transferência de uma concepção de obra enquanto objeto para um trabalho que implique a colocação do espectador em situação. Isso requer uma situação de espaço real, daí a ênfase na relação arte e vida, tratada então como peça de arte. Em 1969, Gilbert & George realizam a primeira versão da Living sculpture, e Vito Acconci desenvolve a Following Piece, trabalho que introduziu a concepção de performance conceitual. O corpo torna-se agora elemento sintáxico. A publicação de Il corpo come linguaggio, de Lea Vergine, 19 em 1974, demonstra o papel que o corpo assume na nova conjuntura. Apesar de referir-se a muitos artistas que já trabalhavam nesse sentido nos anos 60, uma série de nomes, como Acconci, Pane, Baldessari, Rebecca Horn, Dan Graham, sinalizam como e quando a linguagem do corpo se torna o corpo como linguagem. 20

2992 Em época de fronteiras fluídas entre as mídias, as revistas eram comumente suporte para as reflexões dos artistas; ArTitudes, da França, Avalanche e High Performance, dos Estados Unidos, e Interfunktionen, da Alemanha desempenharam papel relevante na origem da Body Art. 21 As proposições de artistas como Dan Graham ou Vito Acconci muitas vezes integram o processo da obra aos limites da revista. Essa abordagem também era ditada pelas obras que se apresentavam desde o início sob a forma fotográfica. O primeiro número da revista Avalanche, de outubro de 1970, já trazia um artigo intitulado Body Works 22 que tratava de atividades nas quais o artista utilizava o próprio corpo como material de escultura; o corpo como instrumento (Barry Lê Va), o corpo como lugar (Vito Acconci, Dennis Oppenheim), o corpo como tela de fundo (Bruce Naumam, Wegman), o corpo como objeto e o corpo em circunstâncias normais. Portanto, a expressão body works refere-se às experiências de artistas com corpo no contexto da arte conceitual e foi utilizado para distingui-los de uma tendência mais lingüística (Weiner e Kosuth) ou sistêmica (Le Witt e Haacke). Além de editor da revista, Sharp organizou a exposição de vídeo Body Works no Museum of Conceptual Art, em São Francisco como Acconci, Sonnier, Nauman, Terry Fox, Wegman e Oppenheim. A exposição foi alvo de um artigo da revista ArtForum, que popularizou e reforçou o fenômeno Body Art. O número dois da Avalanche, em abril de 1971, foi todo dedicado à Body Art e trazia extensa entrevista com Bruce Naumam. Originariamente poeta, Acconci utilizava o corpo como material que saía de suas poesias, uma vez que suas leituras pouco a pouco se tornaram ações. Em função dessa transposição, seus trabalhos performáticos apresentavam sofisticação lingüística expressa nas frases-assinaturas e nas repetições, pois o corpo era trabalhado como se fosse uma página de poesia. 23 Dessa maneira, em vez de escrever um poema sobre following ele atua em Following piece. Em diversas performances de 1970, o artista se engaja em atividade repetitiva cujo processo é um enunciado lingüístico. Em alguns trabalhos Acconci busca o esgotamento físico, como um limite que acaba com o movimento da ação, e em outros investiga as referências espaciais. A câmara utilizada para definir o corpo no espaço servia como documentação do percurso, uma vez que o artista não estava preocupado com a qualidade da imagem, mesmo que ela

2993 fosse imprescindível para a concepção e processo do trabalho. Bruce Naumam e Chris Burden são os artistas californianos mais conhecidos por terem utilizado seus próprios corpos como materiais de performance. Nauman exprime-se nos mais diversos meios: a evocação de seu corpo nos filmes e performances também está presente nas esculturas em fibra de vidro com fragmentos do corpo, pois o que lhe interessa é a transformação das linguagens, assim como o processo de gerá-las simultaneamente. 24 Como substituto para a performance pública, ele grava em filme e, depois, em vídeo, todo tipo de atividades mundanas. Para ele a câmara oferece meios para documentar atividades sem que a estética ou os impulsos narrativos entrem no processo. Realizou 25 filmes e vídeos em finais dos anos 60 envolvendo ações como andar, pular, tocar violino. Ao criar trabalhos que eram literalmente processos é influenciado também pela música de Steve Reich, La Monte Young e Stockhauseen. Já Chris Burden é o artista que teve mais cobertura da imprensa pelo sensacionalismo de suas experiências. Em seus trabalhos vai investigar situações em que simultaneamente se coloca em perigo e torna o espectador testemunha de uma situação ameaçadora. Os objetos são elementos, ao lado das fotografias, que convencem o público da existência da performance. Ele se eletrocutou, atirou, encarcerou, cortou só para ser fotografado. Apesar de diferentes, Nauman, Acconci e Burden têm abordagem anti-heróica do corpo, o que produz importante conseqüência: ela estabelece nítida distancia entre o artista e o corpo que, a partir de então, escapa a toda identificação que antes ocorresse. Eles introduzem na performance dois elementos que se relacionam: o primeiro é o ritmo que, por repetição e/ou lentidão ou pelo instantâneo fotográfico, suspende o fluxo normal da vida. O outro elemento é o fato de os trabalhos serem concebidos a partir do pressuposto da imagem. Esses dois aspectos separam o artista de seu corpo, que passa então a ser observado do exterior. Essa distância fez-se fundamental para que, na década de 1970 o corpo se tornasse um meio entre muitos outros. 25 Ao longo da década de 1960 o corpo era o material da arte apenas enquanto durava o gesto, o acontecimento, e fotografias e filmes foram usados para documentar esse momento transitório. No final dos anos 60, a

2994 relação entre ação e imagem adquire novo caráter, uma vez que não se trata mais de registro documental. Em Burden, Acconci e Naumam o trabalho é realizado para ser imagem, mesmo que essa relação ocorra de maneira distinta em cada um deles. Esses artistas buscavam novos mecanismos de veiculação de uma idéia que se opunha à concepção de objeto de arte único, e, por isso, a fotografia, o filme e, depois, o vídeo possibilitam a intervenção no continuum de um processo espacial e temporal. Se Following Piece, de Acconci, requisita uma seqüência fotográfica para dar conta do processo do trabalho, Shoot, performance em que Chris Burden leva um tiro, é realizada diante da câmara, uma vez que o trabalho foi concebido como instantâneo fotográfico. Bruce Naumam na série Self-Portrait as a Fountain, de 1966/67, transforma a fotografia do próprio corpo em readymade. Agora o artista concebe e escolhe um momento sintético da ação em uma imagem: a fotografia se impõe à ação; há um corte espacial e temporal, e a escolha de espaço (corpo) e tempo que resuma todo o processo. Observamos ao longo de nossa análise como o corpo foi tratado como objeto a partir de sua associação a um instrumento na conjuntura do aparecimento do happening, de sua relação com uma ideologia de corpo autêntico e libertário nos anos 60 e 70 e de sua concepção como suporte de uma idéia. Ao longo da década de 1970 a noção de corpo como suporte de arte leva a uma concepção mais abstrata e intelectualizada do corpo pela relação que estabelece com a imagem. Se o processo inerente à arte conceitual retira o aspecto orgânico do corpo que passa a ser gradativamente compreendido como linguagem, acentua por outro lado a dicotomia corpo e mente, uma vez que o corpo passa a ser um elemento através do qual o artista estabelece códigos e mensagens. A consolidação da performance pressupõe um processo de autonomia de uma linguagem na qual o corpo é um aspecto a mais na cadeia de muitos elementos envolvidos como instalações e projeções. 1 Ver Schimmel, Paul. Out of Actions, between performance and the object 1949-1979. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art, 1998. 2 Kaprow, Allan. L héritage de Jakson Pollock (1958). In Kelley, Jeff, (org.). L Art et la vie confondus. Paris: éditions du Centre Pompidou, 1996, p. 32-39. 3 a esse respeito ver Bannes, Sally. Greenwich Village 1963. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 4 Schimmel, Paul. Out of Actions, between performance and the object 1949-1979, op.cit.,p. 89. 5. Warr, Tracey. The Artist s Body. London: Phaidon Press, 2000, p. 71. 6 Schimmel, Paul. Out of Actions, between performance and the object 1949-1979, op.cit., p.25.

2995 7 Morineau, Camille. Yves Klein, Corps, couleur, immatériel. Paris: Centre Pompidou, 2006, p.122-129. 8 Badura-Triska, Eva. Yves Klein en relation avec l actionnisme viennois. In Yves Klein, Corps, couleur, immatériel. Op.cit., p. 214. 9 Bannes, Sally. O Corpo no poder. In Greenwich Village 1963, Op. cit. 10 Jones, Amelia.Body, splits In Warr, T.( ed.). The Artist s Body. Op.cit., p. 16. 11 Danto, Arthur. O Mundo como armazém: fluxus e filosofia. In O que é Fluxus? O que não é! O Porquê. What s Fluxus? What s Not! Why. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002, p. 23. 12 Fleck, Robert. L actionnisme vienois. In L art au corps, le corps exposé de Man Ray à nos jours. Marseille, Musées de Marseille, 1996, p. 73. 13 Ver Journiac, Michel org. Colloque 1987 L Enjeu de la representation: le corps. Paris: Centre d Etudes et de Recherches en Arts Plastiques/Sorbonne, 1987. 14 Pluchart funda a revista ArTitudes, publicada entre 1971 e 1977, e escreve três manifestos da arte corporal. Ver Pluchart, François L Art corporel Paris: Limage 2, 1983 15 Pluchart, François. L Art Corporel. Bruxelles: Galerie Isy Brachot, 1977 16 A esse respeito ver KIRBY, Michael. On Acting and not-acting In Battcock, G e Nickas, R. The Art of Performance, a critical anthology. New York: Dutton, 1984. 17 Glusberg, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 43. 18 Lippard, Lucy. Six Years: The dematerialization of the art object from 1966 to 1972 Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2001. 19 Vergine, Lea. Body Art and Performance, the Body as Language. Op.cit. 20 A exposição Information, 20 organizada em 1970, no MOMA/NY, nos dá idéia da rede de artistas que estava trabalhando com novas práticas. No entanto, foi a Documenta de Kassel, em 1972, que dedicou uma seção especificamente aos artistas que trabalhavam com o corpo. Organizada por Harald Szeemann, a exposição Performance, Film, Prozesse incluía os artistas do Fluxus, do accionismo vienense e também os americanos como Acconci, Oppenheim, Fox. Ver Information. New York: Museum of Modern Art, 1970. Documenta 5. Kassel: Paul Dierichs Kg 7 Co, Druck, Verlag, 1972; entrevista de Szeemann a Bordaz In Hors Limites l art et la vie 1952-1994, Centre Georges Pompidou, 1994. 21 Bear, L e Sharp, W. Le body art et Avalanche e Mokhtari, S. Dan Graham et Vito Acconci «au corps» des revues. In L art au corps, le corps exposé de Man Ray à nos jours. Op.cit., p. 88-116. 22 Avalanche, n. 1. In L art au corps, le corps exposé de Man Ray à nos jours. Op.cit., p. 93-97. 23 Goldberg, RoseLee. Perfomance Art from Futurism to the Present. Op.cit. 24 Ver Schimmel, Paul. Pay Attention In Simon, J (ed.). Bruce Nauman. Minneapolis: Walker Art Center/Hirshorn Museum and Sculpture Garden, 1994. 25 Fleck, Robert. L Actualité du Happening. In Hors Limites l art et la vie 1952-1994, Centre Georges Pompidou, 1994. Viviane Matesco Doutora em Artes Visuais pela UFRJ e mestre em História da Arte pela PUC-Rio. Foi professora e coordenadora na Escola de Artes Visuais/Parque Lage e atualmente é professora adjunta do Departamento de Arte da UFF. Desenvolve pesquisa em torno da relação Corpo e Arte, questão de exposições como Corpo na Arte Brasileira (Itaú Cultural/São Paulo) e de publicações como Corpo, Imagem e Representação. Rio de janeiro: Zahar, 2009.