O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS MULTILATERAIS



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O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS MULTILATERAIS 1 - Introdução Muitas vezes o nome de organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional aparecem nos jornais, sem que os leitores tenham uma noção clara sobre o que elas são. Circulam muitas notícias sobre operações dessas organizações, sem que grande parte do público perceba com suficiente nitidez quais as implicações delas para a vida das empresas e para os interesses dos cidadãos. Ora, as entidades como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois importantes exemplos de instituições supranacionais, criadas para promover a coordenação de políticas entre países na área financeira. De um modo geral, a organizações supranacionais que atuam como agências de coordenação de políticas na área financeira são chamadas de instituições financeiras multilaterais (IFMs). Contudo, esse tipo de coordenação de políticas tem freqüentemente ocorrido em detrimento de interesses de sociedades como a brasileira. O presente texto tem o objetivo de oferecer uma breve introdução ao que são as chamadas instituições financeiras multilaterais (ou IFMs), em especial o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. (BID). Serão, portanto, oferecidas abaixo: uma descrição processos antecedentes ao surgimento do sistema monetário internacional (ver Seção 2); uma breve descrição da formação e funções sistema de Bretton Woods (ver Seção 3); e uma discussão de suas transformações recentes (ver Seção 4). 2 Antecedentes Após os séculos XII e XII, com o paulatino incremento do comércio de longa distância na Europa, se estabelece a tendência de que as movimentações financeiras administradas por famílias de comerciantes passasse a ter um papel cada vez maior para a definição dos interesses políticos e econômicos de diversos grupos no continente. Com o tempo, o desenvolvimento do comércio privado de moedas e instrumentos financeiros organiza-se em cidades que adquirem importância como principais centros financeiros. Assim, entre os séculos XVI e XIX, Antuérpia, Amsterdã e Londres tonam-se, sucessivamente, os principais centros financeiros da economia, tendo a capacidade de influenciar governos e diversos grupos sociais em muitas localidades. No final do século XIX e início do século XX, o poder econômico da city de Londres fazia-se sentir em vastas regiões do globo.

2 Apesar de adquirir importância crescente, tanto para fornecer capital a empreendimentos comerciais como para financiar esforços de guerra, as decisões sobre as movimentações financeiras e sua gestão permaneceram sendo de caráter essencialmente privado, até a Segunda Guerra Mundial. Como fruto disso, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, desenvolveu-se um sistema de gestão monetária de caráter cosmopolita, sob a liderança de ricas famílias de financistas europeus, como os Rotschild. Esta foi a época do chamado Padrão Ouro Internacional, que coincidiu com o auge do poder financeiro de Londres. Sob este sistema de gestão monetária, os grandes financistas privados estabeleciam entendimentos informais com vários governos e privilegiavam a manutenção da estabilidade cambial, mesmo que isto implicasse na adoção de políticas contracionistas por governos locais. Contudo, o conjunto de instrumentos utilizados para a estruturação das relações internacionais diversos tratados internacionais de amizade e comércio, combinados com a gestão privada das relações monetárias mediante o Padrão Ouro Internacional, não foi suficiente para evitar a Primeira Guerra Mundial. Para ordenar as relações internacionais, inclusive os fluxos monetários, seria preciso algo diferente dos meios utilizados nas décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial. De fato, entre os legados mais problemáticos da Primeira Guerra Mundial estavam as relações monetárias internacionais, inclusive os efeitos da instabilidade cambial sobre as economias nacionais e sobre o comércio internacional. A diplomacia e os procedimentos da Liga das Nações foram insuficientes para lidar com a realidade das relações econômicas internacionais nas décadas que se seguiram à guerra de 1914-1918. Assim, depois da Segunda Guerra Mundial, as potências vencedoras resolveram criar um grande sistema de organizações internacionais, e desta vez decidiram dedicar parte deste sistema especialmente às relações econômicas entre os países. Portanto, foi somente na segunda metade do século XX, após a Guerra de 1939, que, pela primeira vez na história, se adotou um sistema de regras públicas com objetivo de disciplinar, por meios que incluíam a atuação de instituições supranacionais, as relações financeiras entre as diversas economia nacionais. Ao mesmo tempo, a adoção destas regras coincidiu com a transferência do poder financeiro de Londres para Nova York como principal pólo financeiro da economia mundial. 3 O Surgimento das Instituições de Bretton Woods. Assim, com o intuito de criar essas regras, foi realizada em 1944, em Bretton Woods, no estado de New Hampshire, Estados Unidos, a conferência internacional que iria estabelecer os pilares dos sistemas monetário e financeiro internacional do pósguerra. Nessa conferência, foram instituídas duas importantes organizações para a

3 cooperação monetária internacional. Uma foi o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), que ficou conhecido como Banco Mundial. A outra foi o Fundo Monetário Internacional (FMI). Estas duas organizações ficaram conhecidas como as instituições de Bretton Woods. O objetivo básico do Banco Mundial era o de auxiliar na reconstrução e desenvolvimento de territórios dos países membros (signatários do instrumento legal que deu origem formal ao banco) atingidos pela destruição da guerra. Este objetivo deveria ser atendido por meio de atividades dedicadas a: prover capital para fins produtivos; promover o investimento externo privado e promover, complementando (quando o capital privado não estivesse disponível em condições razoáveis) o investimento privado mediante o fornecimento de capital para fins produtivos; e promover o crescimento equilibrado de longo prazo do comércio internacional e a manutenção do equilíbrio nos balanços de pagamento mediante o incentivo internacional a investimentos para o desenvolvimento de recursos produtivos. Por outro lado, o FMI tinha o objetivo essencial de presidir um regime internacional de câmbio praticamente fixo. Nesse sentido, o instrumento legal constitutivo desta organização estabeleceu que o Fundo promoveria a cooperação monetária internacional mediante uma instituição permanente que servisse de mecanismo para consulta e colaboração sobre problemas monetários. Além disso, o instrumento legal também determinou que o Fundo supervisionaria o sistema monetário internacional a fim de assegurar o seu bom funcionamento e acompanharia o cumprimento por cada país membro de suas obrigações referentes à sua política cambial. O instrumento constitutivo estabeleceu, ainda, que recursos financeiros do Fundo seriam oferecidos temporariamente aos países membros para proporcionar-lhes oportunidades de corrigir desequilíbrios no seu balanço de pagamentos sem recorrer a desvalorizações cambiais, consideradas destrutivas da prosperidade internacional. O esquema para a cooperação monetária, portanto, previa que o FMI faria empréstimos para a correção de desequilíbrios no balanço de pagamentos, a fim de que as taxas de câmbio das diversas moedas diante do dólar americano ficassem protegidas de alterações importantes. O que ficou previsto foi que as diversas moedas seriam conversíveis em dólar americano, que seria a seu turno conversível em ouro. Por isso, esse sistema monetário ficou conhecido como o sistema dólar-ouro, que, mediante o uso de regras públicas e a atuação de instituições formais, deveria proteger as diversas moedas da oscilação cambial em relação ao dólar e variações do valor dólar frente ao ouro, favorecendo, portanto, a manutenção de paridades estáveis. Além do FMI e do Banco Mundial, vale a pena mencionar também a criação, em 1959, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Reunindo 26 países mutuários da América Latina e do Caribe e 20 não mutuários, entre eles Estados Unidos, Japão, Canadá, 16 países europeus e Israel, sua finalidade é também a de prestar ajuda financeira aos países da América latina e do Caribe.

4 O esquema de política econômica internacional imaginado para vigorar depois da Segunda Guerra Mundial, portanto, previa um papel importante para o FMI (especialmente, presidir o regime de câmbio) e para o Banco Mundial (prover fundos para reconstrução e desenvolvimento). Estas instituições financeiras apoiariam a criação e manutenção da estabilidade cambial e monetária sob a égide do FMI e o investimento em projetos de desenvolvimento, facilitado pelo Banco Mundial. Tais condições constituiriam um ambiente propício para o crescimento impulsionado pelo comércio internacional. Este, a seu turno tornou-se objeto de negociações para combater o protecionismo, especialmente o decorrente de tarifas comerciais elevadas. Tais negociações passaram a ser conduzidas sob o conjunto de regras aprovadas por 23 países em 1947, conhecido como GATT (General Agreement on Tariffs and Trade Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio). Este grande esquema foi complementado, pela atuação regional do BID, desde o final dos anos 1950, no continente americano. 4 Transformações do Sistema A cooperação monetária internacional e o apoio que tal cooperação passou a dar para o crescimento do comércio internacional acabaram entrando em crise, a partir da década de 1970. Um dos motivos dessa crise foi a incapacidade de o governo americano sustentar a taxa de câmbio do dólar frente ao ouro, resultando na decretação, em 1971, pelo presidente americano, Richard Nixon, da inconversibilidade do dólar em ouro. Isto abalou o esquema imaginado para funcionar no período após a guerra, cujas regras passaram a não mais ser seguidas, levando os países adotarem o regime de câmbio flexível, o que trouxe dúvidas sobre o futuro da cooperação monetária internacional. Não obstante, a crise da dívida externa dos anos 1980 acabou por dar novo fôlego às instituições de Bretton Woods. O que se sucedeu à implosão do antigo sistema passou a ser chamado de não-sistema, dada a ausência de um arcabouço ordenador das relações monetárias que substituísse o anterior. De fato, tendo deixado de ser o defensor de um sistema de paridades estáveis, o FMI começou a achar um novo sentido em sua existência ao auxiliar os países cujos balanços de pagamento foram afetados pelos choques de preços do petróleo da década de 1970. O seu resgate, enquanto agência atuante na condução da política do sistema monetário internacional, se daria de forma enfática durante a década de 1980, que se consumiu na tentativa de solucionar a crise da dívida. Assim a partir de 1982, o FMI passou a atuar na linha de frente da gestão da crise. Tal gestão foi comandada, primeiro, pelo banco central norte-americano (Federal Reserve), e, depois, a partir de 1985, pela Secretaria do Tesouro dos Estados Unidos. Assim, sob os auspícios do Federal Reserve, o FMI condicionava a assinatura de seus acordos à realização de acertos prévios com os credores, os bancos comerciais. E,

5 sem ter mais o acesso independente aos recursos do Fundo, os países endividados se viam enfraquecidos nas negociações com os seus credores privados. Nos primeiros anos da crise da dívida, o esquema se revelou altamente eficiente, sob o ponto de vista credor: os devedores em dificuldades passaram a enviar aos credores vultosas quantias, que excediam em muito aquilo que recebiam por conta das reestruturações (o chamado dinheiro novo). Dessa forma, os gestores da crise conseguiram evitar que ela afetasse a saúde financeira dos credores, ameaçada por possíveis moratórias aos empréstimos. O problema dos países endividados, contudo, não foi resolvido: suas economias não cresciam (devido ao ajuste recessivo necessário ao pagamento das dívidas) e suas dívidas não se reduziam. Em 1985, a Secretaria do Tesouro dos Estados Unidos assume a liderança do processo mediante o lançamento do chamado Plano Baker (designação derivada do sobrenome do então secretário do Tesouro, James Baker), cujo objetivo era fazer com que os devedores retomassem o crescimento. O entendimento do plano era que, para se atingir esse fim, tanto o Estado quanto as economias deveriam realizar ajustes estruturais, tais como privatizações e liberalização comercial. A partir daí, o Banco Mundial é convocado a ter uma atuação de maior relevância na gestão da crise, por meio de orientação e financiamento para reformas estruturais que supostamente levariam ao crescimento. Esse momento é um marco no aprofundamento das chamadas condicionalidades e no desenvolvimento de ações coordenadas entre instituições de Bretton Woods. Mesmo quando, em 1989, com o plano Brady, a gestão da crise se modifica pela adoção de redução dívidas, o papel do Banco Mundial em auxiliar a implementação de reformas é mantido. Assim, como conseqüência dessas reformas, a virada da década assiste ao desmantelamento, na América Latina, do modelo de desenvolvimento do pós-guerra e a consagração do neoliberalismo em substituição a este último. Apesar de seu aprofundamento ao longo da década, as condicionalidades sempre despertaram críticas, tanto pelo seu aspecto de violação de soberania quanto pelo seu conteúdo ortodoxo. O aumento da influência do Banco Mundial e do FMI não cessa com a crise da dívida. Concomitante ao esmorecimento da crise e retorno das economias afetadas aos mercados internacionais de capital, se dá a implosão do socialismo no Leste Europeu na virada da década de 1980 para a de 1990. Mais uma vez, o FMI, acompanhado do Banco Mundial, está na linha de frente e assume a tarefa de conduzir as economias anteriormente planificadas à condição de economias de mercado, passando a ser chamadas de economias de transição. Dois outros fatores iriam influenciar sobremaneira a percepção de muitos sobre o que estava se passando na economia mundial na década de 1990: o sucesso da estratégia de desenvolvimento voltada para as exportações adotada por algumas economias asiáticas e a obtenção de níveis de integração da economia mundial só equiparáveis aos que foram

6 obtidos às vésperas do período turbulento iniciado pela Primeira Guerra Mundial, em parte facilitado por revoluções na informática e telecomunicações. Os quatro fatores juntos propiciaram, durante a década de noventa, o que poderíamos chamar de euforia da globalização. Nela, a especulação não se limitava ao tradicional locus dos mercados, mais abrangia também o reino das idéias, no qual o triunfo dos princípios econômicos liberais era defendido e aceito como definitivo e inquestionável, transformando esses mesmos princípios na medida do progresso. Esse ambiente acabou por ensejar que tal conjunto de idéias, chamadas de neoliberalismo, se propagasse de forma tal que acabou por adquirir a pecha, cunhada por alguns críticos, de pensamento único. Muitos foram os governos que apostaram nesse conjunto de idéias, com o apoio das instituições de Bretton Woods. Esse cenário, contudo, foi se modificando paulatinamente. Em 1994, o México, então um dos mais incensados aplicadores do neoliberalismo se viu em crise cambial em 1994. Esta crise deveria ter sido assimilada como uma advertência pelo status quo, mas não foi. A euforia teve continuidade até ser seriamente abalada pela sucessão de crises cambiais que se sucederam na Ásia, afetando economias que antes eram tidas como referência na apologia à globalização. Tailândia, Filipinas, Indonésia, Malásia e Coréia se vêem em crise uma após a outra, numa sucessão de contágios surpreendente para uma região outrora considerada tão promissora. Um dos caminhos naturais para explicar esse paradoxo era a crítica da globalização financeira, mas o caminho que acabou por ser seguido foi o de, mais uma vez, se condenar a gestão das economias atingidas. Muito rapidamente, aquelas economias, que antes eram saudadas pela sua performance, passaram então a ser condenadas, principalmente os seus sistemas financeiros domésticos, que eram bem distintos dos padrões ocidentais. Na visão das instituições de Bretton Woods, os sistemas financeiros domésticos dos países asiáticos, por não serem submetidos à supervisão e regulação adequadas, teriam sido os grandes responsáveis pelas bolhas especulativas e investimentos mal alocados que estariam na origem da crise. Mas o relacionamento estreito entre bancos e indústria era parte essencial do modelo de desenvolvimento asiático, que, sendo bem sucedido, acabou por atrair os capital internacional. O câmbio ancorado ou fixo que muitos dos países afetados adotavam, foi também satanizado. Mas ele foi adotado justamente para oferecer condições atraentes para a entrada de capitais. Mais uma vez, as economias afetadas foram responsabilizadas e pouco foi dito sobre a responsabilidade da globalização financeira em mais esta crise. Em todo caso, não era de se esperar outra coisa, já que o FMI foi um dos incentivadores da liberalização dos fluxos de capital. O que se observou no decorrer desta crise foi, novamente, a afirmação dos vícios do sistema. De fato, mais uma vez, repetindo estratégias passadas, o FMI tentou aplicar o receituário ortodoxo, ao mesmo tempo que tentava impor condicionalidades cada vez mais intrusivas e ambiciosas, que, se cumpridas, desmantelariam parte do modelo de desenvolvimento asiático. Como o problema, a rigor, não era de natureza fiscal, nem de comercial, não foi surpreendente que as moedas regionais não parassem em seu mergulho

7 abissal. A imposição de condicionalidades descabidas só dificultava uma ação rápida e eficiente por parte do Fundo, o que facilitou o contágio da crise de país em país. Enfim, um desastre. A ação do Fundo foi tão desastrada que essa instituição se viu sob uma saraivada de críticas que, provavelmente, nunca teve paralelo em sua história. Dessa vez, não só a esquerda compunha o coro de condenações às ações do Fundo, mas a direita se juntou a ele com crítica baseada no conceito de risco moral. 1 Desta vez, economistas do próprio establishment ecoaram críticas que antes eram exclusivas dos contestadores considerados radicais. Assim, Martin Feldstein criticou o nível de intromissão das condicionalidades, Paul Krugman criticou a ortodoxia requerida nos pacotes de ajuda e Joseph Stiglitz, economista-chefe do Banco Mundial nos anos de 1997 a 2000, criticou a arrogância e incompetência dos economistas da FMI. Jagdish Bhagwati, defensor ferrenho do livrecomércio, criticou o que ele chama de Complexo Wall Street-Tesouro, responsável pela difusão da equivocada ideologia de que o livre movimento de capitais, defendida pelo Fundo, teria benefícios análogos aos do livre-comércio. O Congresso norte-americano patrocinou a elaboração do Relatório Meltzer, cujas recomendações ecoavam aquelas associadas ao argumento de risco moral (ver nota 1). 2 À crise asiática se seguiram as crises russa, brasileira e argentina, com repercussões graves para outros países Latino-Americanos, como o Uruguai, por exemplo. Com a troca de liderança no comando do FMI, 3 este passou da defensiva para uma postura propositiva: propôs o chamado Mecanismo de Reestruturação de Dívida Soberana (MRDS ou SDRM, em inglês), que seria um mecanismo internacional de concordata, visando facilitar a reestruturação de dívidas insustentáveis. Porém, esta proposta naufragou pela oposição do Tesouro norte-americano, que passou a defender a adoção de Cláusulas de Ação Coletiva (CAC), 4 mas acabou servindo apenas para desviar o foco do debate dos defeitos do Fundo para a discussão de uma inovação institucional com poucas chances de ser adotada, independentemente de seus possíveis 1 Essa crítica a atuação do FMI argumenta que o Fundo, ao socorrer os países em crise e manter sua capacidade de pagamento, acaba por impedir que os investidores sejam punidos por investimentos incautos. Isso acabaria por estimulá-los a novos investimentos desconsiderando riscos potenciais envolvidos, uma vez que esses investidores acreditam num provável socorro do FMI em caso de crise. A conseqüência dessa crítica é que a sugestão de que o FMI deveria diminuir suas intervenções para que o número de crises diminuísse. 2 Resumidamente, o relatório recomendava que as IFMs deixassem de lado países com economias de porte, médio, que poderiam obter recursos privados nos mercados financeiros de capitais e direcioná-los a países mais pobres. 3 Horst Koehller e Anne Krueger substituíram Michael respectivamente Michel Camdessus e Stanley Fischer nos cargos de diretor- gerente e vice-diretor-gerente entre 2000 e 2001. 4 São cláusulas que garantem a uma maioria de credores (usualmente 75%) o poder de fechar um acordo de reestruturação sem ser objeto de ação legal de credores minoritários.

8 méritos. É que os Estados Unidos têm o poder de veto no processo decisório interno do FMI, instância fundamental pela qual de veria passar a proposta do mecanismo. 5 5 SÍNTESE E CONCLUSÕES Desde o final da Idade Média, as finanças internacionais se tornam um elemento importantíssimo para a viabilização de empreendimentos comerciais e de ações políticas. Nos final do século XIX, o Padrão Ouro Internacional fornecia um meio de ordenação das relações financeiras entre muitas economias nacionais, mas nem sempre em benefício de todos. Ao contrário, era sobretudo os interesses dos financistas que era preservado, ao passo que interesses de governos em realizar reformas em favor da sociedade eram postos em segundo plano ou completamente marginalizados. Assim, com freqüência, programas de governos reformistas eram inviabilizados por falta de recursos financeiros, como foi o caso do governo da Frente Popular na França, no início do século XX. Hoje, o FMI é o pilar do atual sistema financeiro internacional, mas, como já lembramos, não age sozinho. É coadjuvado pelo Banco Mundial e outras instituições congêneres, como o BID. Todas essas organizações são muito pouco transparentes e nada representativas dos interesses dos interesses dos países a que devem servir. Assim o FMI é hoje um grande moldador de políticas econômicas, enquanto que as outras organizações (Banco Mundial, BID etc.) se encarregam de moldar as demais políticas públicas, de forma complementar e coerente, sem que haja suficiente transparência ou accountability de suas deliberações, métodos e programas. Um bom exemplo de políticas ou reformas questionáveis apoiadas de maneira coordenada por essas instituições é a chamada focalização de políticas sociais, defendida tanto pelo Banco Mundial quanto pelo BID. Quando adotada a focalização às expensas de políticas universais a política social como um todo acaba por se adaptar perfeitamente ao arrocho fiscal normalmente preconizado pelo FMI. Tal coordenação entre as agência internacionais hoje ainda tende a se expandir para abranger a coordenação entre as políticas financeiras e as comerciais. Assim por exemplo, Em 14 de abril de 2003, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU realizou a sua 6a Reunião de Alto Nível com o Banco Mundial e o FMI e pela primeira vez recebeu uma representação de alto nível da OMC. No todo, sendo combinadas, inclusive mediante a coordenação e complementaridade entre as ações dessas organizações internacionais, as políticas prómercado, por elas apoiadas, levam à incapacitação do Estado de liderar o processo de desenvolvimento econômico e social conforme os interesses nacionais. 5 Muitas decisões no FMI demandam a concordância de pelo menos 85% dos votos. Os EUA detêm mais de 17%. A proposta vigente de do MRDS previa sua implementação por meio de uma emenda aos artigos do acordo que criou a instituição.

9 Nesse sentido, cabe á sociedade civil organizada, e aos governos, por meio de seus parlamentos e outras instituições, estabelecer mecanismos de acompanhamento e controle das ações da Instituições Financeiras Multilaterais, em nome do desenvolvimento sustentável e inclusivo. Por Marcus Faro de Castro e Alex Jobim Farias para o GT de Macroeconomia da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais.