As mulheres nos programas de transferência de renda

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Transcrição:

Políticas públicas y movimientos de mujeres en el cono sur desde la perspectiva de género. ST 15 Cássia Maria Carloto UEL Palavras-chave: gênero e família, políticas publicas e gênero, perspectiva de gênero As mulheres nos programas de transferência de renda Nos programas de combate à pobreza uma das principais contribuições do debate feminista, tem sido o de chamar a atenção para a instrumentalização dos papeis das mulheres a partir de suas responsabilidades na esfera reprodutiva, para o bom desempenho desses programas no contexto neoliberal. Os programas focalizados de desenvolvimento têm como eixo o combate à pobreza, como preocupação a eficiência das medidas e como alvo preferencial a família, e dentro destas, as mulheres. A principal estratégia é a chamada privatização da família ou a privatização da sobrevivência da família, propondo explicitamente a transferência de responsabilidades que deveriam ser assumidas pelo Estado às unidades familiares. Há uma valorização da família como lócus privilegiado de superação das seqüelas da questão social por um estado que pouco tem priorizado os gastos com o social e pouco tem implementado, em termos de política social, estratégias de superação das desigualdades sociais. O enfoque prioritário tem sido o papel das mulheres na esfera doméstica, relacionado fundamentalmente a maternidade. Assim as mulheres são tratadas como receptoras passivas mais que participantes ativas sendo a criação dos filhos seu papel mais efetivo. Através do papel de mãe a mulher de baixa renda tem sido um dos alvos primordiais para melhorar o bem estar da família, especialmente das crianças (Moser, 1986). A premissa básica é que não só as mulheres são mais confiáveis como mães, como são mais confiáveis que os homens na aplicação correta do beneficio e tão ou mais capazes do que eles, garantindo assim a eficácia dos programas. Para Lavinas (1997, p.179), através de um atendimento específico às mulheres pobres, poder-se-ia, graças à política de cunho assistencialista muito focalizada, reduzir os efeitos perversos do ajuste aos quais, por assim dizer não se poderia escapar. As carências consubstanciais à condição feminina passam, segundo Lavinas (idem), a instrumentalizar políticas que, mais uma vez, têm por objeto as mulheres e não as relações homemmulher e seus antagonismos, políticas essas, além de tudo, absolutamente ineficientes e malsucedidas no alcance de seus objetivos. Julga-se que se pode ampliar o espaço da cidadania feminina tão-somente atendendo a carências construídas sexuadamente.

A principal estratégia das políticas focalizadas centradas nas famílias tem sido a entrega direta de bens ou atividades de capacitação que reforçam as habilidades consideradas adequadas às donas de casa e mães não trabalhadoras. Exemplos de programas sãos o de provisão direta de alimentos, os programas de combate à desnutrição, os programas de planejamento familiar, os programas de erradicação do trabalho infantil, o programa Bolsa-escola, o Programa Bolsa-Família, programas de fornecimento de gás de cozinha. Segundo Moser (1986), o modelo abstrato, estereotipado de família, tem como principal problema o fato de que não reconhece que a situação das donas de casa nas camadas mais pobres não é homogênea em termos de estrutura familiar e, mesmo que a família nuclear seja o modelo predominante, isto não implica que não coexistam outros tipos de família. Moser chama a atenção para as famílias encabeçadas por mulheres. Nelas o homem está ausente, seja temporariamente (migração), seja de forma permanente (separação, morte, abandono). A realidade tem mostrado que, se por um lado, cresce o número de domicílios nos qual a mulher tem papel fundamental na manutenção econômica, com ou sem a presença do marido/companheiro, por outro lado, ela ainda é na maioria das casas, a responsável pela esfera doméstica. Esta situação se agrava entre os mais pobres, pela absoluta de falta de acesso a formas de apoio como creches, escolas em período integral, sistema de saúde de qualidade, moradias dignas e demais fatores que poderiam aliviar a sobrecarga de trabalho doméstico. A chefia familiar feminina é um fenômeno que cresce em todo mundo, representando a quarta parte de todas as famílias do mundo (Soares, 2003). O Brasil, como já assinalado, não fica fora deste padrão, apresentando também uma característica comum aos outros, que é o aumento do percentual entre as famílias mais pobres. Os dados de uma pesquisa i realizada por nós, mostraram um índice bastante significativo, 60,35% no município de Londrina, nas famílias em condição de extrema pobreza. É um fenômeno, portanto, que está associado a outro também crescente, que é a chamada feminização da pobreza, ou em termos mais adequados o crescimento da pobreza entre as mulheres.. A análise dos dados mostrou como o fenômeno está relacionado a indicadores de vulnerabilidade que se potencializam, no caso das mulheres chefes de família, que são: o nível de escolaridade baixo e o analfabetismo; a falta de qualificação para as exigências do mercado de trabalho; o trabalho informal em ocupações realizadas em condições precárias, mal pagas e sem vínculo trabalhista, o que aumenta ainda mais a vulnerabilidade, já que não contam com nenhuma proteção previdenciária e indicam uma velhice sem recursos e benefícios voltados a garantir uma vida digna.

Por outro lado, a condição de gênero, a responsabilidade pela esfera doméstica, pelo cuidado dos filhos, sem uma rede de proteção social, as impede de sair desta condição, ficando dependente de benefícios providos pelas políticas de assistência, que por sua vez, além de quantitativamente baixos, são seletivos, focalizados e temporários. Não contam com uma rede de serviços, principalmente ligados a educação infantil de 0 a 6 anos, da ajuda do companheiro/marido. Quanto à presença deste, esta condição parece, a partir de nossos dados, não ter um diferencial significativo na caracterização sociodemográfica, dentro dos tópicos abordados, quando comparados a dados nacionais em relação às famílias monoparentais chefiadas por mulheres. A presença do homem, por outro lado, não diminui a responsabilidade no trabalho doméstico, no cuidado com os filhos, nem facilita o acesso a oportunidades para melhoria da situação de escolaridade e ocupacional. Como relatado nas entrevistas, no caso dos homens doentes, aumenta a sobrecarga e a dificuldade de se ausentar da casa, pois tem que cuidar deles. Também apontado em uma das entrevistas e pelas profissionais do Programa Bolsa-escola, ela ainda tem que conviver com a violência doméstica cometida pelo companheiro/marido. A pesquisa indicou que a participação no Programa Bolsa-escola traz de imediato resultado na melhoria das condições de vida: alimentação, manutenção da casa, pagamento de conta de água e luz, vestuário e compra de material escolar para os filhos, que foram os itens mais citados, possibilitados pelo ingresso no Programa. Resultados estes sempre associados à esfera doméstica, aos cuidados com os filhos, sendo estes a preocupação central destas mulheres, que pela condição de gênero, têm na criação deles sua principal missão e responsabilidade. Sua expectativa, aparentemente tão simples e imediata, também se refere à esfera da sobrevivência cotidiana, a ter uma vida mais digna, o que sem dúvida se constituiu num direito, direito este que elas não conseguem definir o que seja. Os dados analisados nesta pesquisa nos levam a refletir sobre os desafios colocados às políticas de assistência voltadas ao combate à pobreza, desafios que nos mostram que o fenômeno da pobreza para ser combatida precisa ter uma perspectiva de gênero, desvendando quem são essas mulheres, suas necessidades, as ações necessárias para combater uma subalternidade marcada pela dominação de classe, gênero e também raça/etnia, aspecto que não exploramos, mas que merece atenção. Perspectiva de gênero nas políticas públicas Mas é necessário distinguir entre o que são programas que tem por alvo preferencial as mulheres e o que são programas com perspectiva de gênero. Não é o fato das mulheres serem centrais nestes programas, que faz com que haja uma perspectiva de gênero ou enfoque de gênero. Como pudemos observar muitas das ações e atividades desenvolvidas no âmbito das políticas

públicas podem estabelecer e reproduzir as relações tradicionais de gênero, o que conforme aponta Soares (2003, p.103), configura obstáculos à cidadania das mulheres em diferentes sentidos, e assim não se criam condições para sua inclusão social. Perspectiva de gênero implica em ações, que levem em conta a realidade das mulheres e sua condição de desigualdade; que modifiquem as desigualdades de gênero. Implica também como sugere Soares (idem) integração dos distintos âmbitos da ação municipal e requerem novas metodologias de intervenção, principalmente as que favoreçam a participação. Outro elemento de caráter teórico importante nesta perspectiva é o que Fraser (2002 p: 64) denomina uma concepção de gênero bidimensional, que traz elementos para refletirmos sobre os procedimentos metodológicos envolvidos em nossa prática profissional e que devem servir de parâmetros para a avaliação das políticas sociais. Discutindo as questões de igualdade e justiça social, Fraser (idem) propõe um olhar de gênero bifocal, através do visor de uma das lentes gênero tem afinidades com classe, e, através do visor da outra lente, é mais ligado status. Nesta concepção gênero aparece como um eixo de categoria, que alcança duas dimensões do ordenamento social: a dimensão da distribuição e a dimensão do reconhecimento. A autora discute a perspectiva distributiva afirmando que nesta, gênero aparece como uma diferenciação semelhante à classe, enraizada na própria estrutura econômica da sociedade. Trata-se de um princípio básico para a organização da divisão do trabalho, dá sustentação à divisão fundamental entre trabalho produtivo pago e trabalho doméstico reprodutivo não pago, sendo este último designado como responsabilidade primária das mulheres. Como conseqüência, vemos uma estrutura econômica que gera formas especificas de injustiça distributiva baseada no gênero. (2002 p:64) Na perspectiva do reconhecimento, para Fraser, gênero aparece como uma diferenciação de status, enraizada na ordem de status da sociedade. Gênero codifica padrões culturais de interpretação e avaliação já disseminados, que são centrais na ordem de status como um todo. Portanto uma das principais características da injustiça de gênero é o androcentrismo: um padrão institucionalizado de valor cultural que privilegia traços associados com a masculinidade, assim como desvaloriza tudo que seja codificado como feminino, paradigmaticamente mas não somente mulheres. (2002 p:64) A partir deste padrão de valores androcêntricos as mulheres sofrem formas específicas de subordinação e, como ressaltado por Fraser, a negação de seus plenos direitos e proteção igualitária como cidadãs. Nessa dimensão propor políticas públicas de enfrentamento das desigualdades de gênero exige estabelecer um sentido emancipatório às mudanças que pretendemos; que as desigualdades de

gênero sejam combatidas no contexto do conjunto das desigualdades sociais, pressupondo práticas de cidadania ativa; garantir que o Estado desenvolva políticas sociais que contemplem as dimensões distributivas e de reconhecimento/status que incidam efetivamente sobre o conjunto de desigualdades de classe, gênero e raça/etnia. Algumas diretrizes têm sido apontadas por organismos institucionais ii relacionadas a propostas de política sociais na perspectiva de gênero e que tentam incorporar as dimensões assinaladas por Frase. Destacamos: - Possibilitar a ampliação das condições de autonomia pessoal e auto sustentação das mulheres rompendo com os círculos de dependência e subordinação. - Promover a capacitação profissional, o acesso a trabalho e geração de renda, procurando romper com os programas tradicionais que reforçam os papeis e as ocupações tradicionais femininas na divisão sexual do trabalho. - Ampliar o acesso à escolaridade, combatendo o analfabetismo e propondo programas educacionais de complementação da escolaridade. - Possibilitar a revisão das funções do cuidado familiar e divisão do trabalho doméstico. - Ampliar e implementar equipamentos sociais. - Garantir o exercício dos direitos reprodutivos e sexuais, com destaque para a legalização do aborto e o acesso universal a serviços de saúde que garantam a sua realização, contemplando as mulheres em suas diferentes fases. - Combater à violência sexual e doméstica contemplando tanto as dimensões de mudança de padrões e valores culturais, quanto às ações articuladas em parceiras e redes dos serviços no município. - Introduzir nos sistemas educacionais e de saúde novos padrões e valores relativos ao combate às desigualdades de gênero, através de material didático-pedagógico e das mudanças de atitudes dos profissionais frente à população atendida sejam crianças, adolescentes ou adultos. - Combater a pobreza das mulheres, redirecionando o enfoque que reforça o papel social tradicional das mulheres nos espaços privados e públicos, garantindo o acesso ao crédito e a propriedade rural e urbana. - Fortalecer a participação, o controle social e a representação em espaços de definição das políticas. É importante destacar que projetos, programas e serviços, quando desvinculados de uma política estratégica governamental que contemple as dimensões econômicas e sociais, principalmente os de caráter focalizado e pontual não são políticas públicas. Políticas públicas compreendem linhas e estratégias de ação coletiva que concretiza direito e cidadania formuladas e executadas com vistas a atender demandas e necessidades sociais e promover mudanças estruturais.

Precisam de continuidade, de planejamento em longo prazo, de ações articuladas no interior do aparato governamental e na relação deste com a sociedade civil. Devem ter caráter universal, ser dirigida a todos/as independente de critérios seletivos e de contribuição. O SUAS e a centralidade na família Por último quero comentar de forma breve, a partir das considerações feitas, o debate que se iniciou a partir da diretriz do Sistema Único de Assistência Social/SUAS- Centralidade na Família. O SUAS tem por objetivo central a definição e organização dos elementos essenciais e imprescindíveis à execução da política de assistência social possibilitando a normatização dos padrões nos serviços, qualidade no atendimento, indicadores de avaliação e resultado, nomenclatura dos serviços e da rede assistencial. A unificação da política de Assistência Social em todo o país, faz parte da luta das/os assistentes sociais na última década e é a última, do tripé da Seguridade Social Brasileira conforme a Constituição de 1988, a ser unificada. São uma conquista importante e necessária reconhecida de forma unânime pela categoria profissional das/dos assistentes sociais. Mas há um elemento presente nos eixos estruturantes e de subsistemas, norteadores da gestão da política que tem provocado um intenso debate e fortes críticas por parte das/dos profissionais preocupados com a perspectiva de gênero e com um possível retrocesso na visão teóricometodológica que subsidia o processo de trabalho no Serviço Social. Este elemento refere-se ao primeiro eixo da proposta que é o da Matricilialidade Sócio Familiar. O documento reconhece que novas feições da família estão intrínseca e dialeticamente condicionadas às transformações societárias contemporâneas, ou seja, às transformações econômicas e sociais, de hábitos e costumes e ao avanço da ciência e da tecnologia (ano) e, de superar a referencia de tempo e lugar para a compreensão do conceito de família. Mas isto não é suficiente, e não é problematizado no texto, para superação do que tem sido a principal crítica das feministas, por nós comentado na primeira parte deste texto, que é a continuidade do enfoque familista e, portanto de uma centralidade não apenas na família, que é o termo que o documento adota, mas de uma centralidade na mulher-mãe. O que nos tem chamado a atenção, a partir da pesquisa por nós coordenada e já comentada, e como pesquisadora colaboradora em uma pesquisa que está iniciando um monitoramento do SUAS no município de Londrina, é que no processo de gestão, na operacionalização do serviços, programas e projetos a mulher-mãe é que ainda é e continua sendo a interpelada para a participação das chamadas atividade sócio-educativas, ainda é responsabilizada pelos filhos e pelo cumprimento dos critérios de permanência no programa. A outra questão que remete a problemas de

operacionalização é quem define a família a ser beneficiada e qual a base desta definição. É o domicilio ou o arranjo familiar reconhecido como sua família, pela beneficiária? Arranjo domiciliar não corresponde necessariamente a arranjos familiares e nem a visão que os próprios moradores desses domicílios têm desses arranjos e do que eles consideram sua família. Leser de Mello (2002: 53) chama a atenção para o modelo abstrato de família e do cuidado que se tem que tomar nas pesquisas com famílias. Para a autora é preciso abandonar, pelo menos no primeiro momento, as pretensões de universalidade. Não existe essa abstração que é a FAMÍLIA. Destacamos que embora Leser de Mello se refira a procedimentos de pesquisas, o argumento se aplica e, aliás, se complexifica ainda mais quando se trata de operacionalizar ações que partem de uma abstração, que é a nosso ver a centralidade na família. Essa preocupação se torna mais relevante à medida que identificamos na pesquisa citada 1, um índice de quase 70% de famílias que contam com a mulher como chefe de família, termo que merece esclarecimento, mas que de forma geral revela a condição da mulher como principal provedora afetiva e material. Ainda é cedo para tirarmos conclusões sobre a operacionalização do SUAS a partir desta diretriz, mas é necessário desde já um acompanhamento do rebatimento desta na vida das mulheres. Interessa identificar os limites e as possibilidades na conquista de autonomia e cidadania ativa a partir deste enfoque estratégico da proposta, ou seja, como se operacionalizam no cotidiano e rotinas do serviço, os programas, projetos e ações que partem da centralidade na família e seu impacto na vida das mulheres beneficiarias desses programas e suas principais interlocutoras. Bibliografia FRASER, N. Políticas Feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero. In BRUSCHINI, C. E UNBEBAUM, S.G. (orgs.), Gênero, Democracia e sociedade Brasileira. Fundação Getulio Vargas, Editora 34, São Paulo, 2002. LAVINAS, L. Gênero, Cidadania e Políticas Urbanas. In Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana. Civilização Brasileira, 1997. LESER DE MELO, S. Família: perspectiva teórica e observação factual. In CARVALHO M.C. (org.) A família contemporânea em debate. Cortez Editora, São Paulo, 2002. MOSER, C. A theory and methodology of Gender Planning: Meeting Practical and Strategic gender needs, Gender and Planing Working Papers. No.11. Developement Planning Unit. University College London, 1986. SOARES, L.T. O desastre social. Editora Record, Rio de Janeiro. São Paulo. 2003. i Pesquisa realizada com mulheres chefes de família monoparental em situação de extrema pobreza no município de Londrina no período de 2003 a 2005, beneficiárias do programa Bolsa-escola municipal objetivando identificar, conhecer e analisar o perfil socioeconômico das famílias monoparentais chefiadas por mulheres em situação de extrema pobreza. Os dados compilados a partir do cadastramento mostraram que 38% das famílias beneficiadas são

monoparentais, tendo a mulher (com exceção de uma família) como responsável pelo domicilio, sendo que quando também contabilizado o numero de famílias com presença de marido companheiro, nas quais a mulher é principal provedora o índico sobe para 70%. ii Destacamos a Coordenadoria Especial da Mulher do município de São Paulo.