Sobre a intimidade na clínica contemporânea Flávia R. B. M. Bertão * Francisco Hashimoto** Faculdade de Ciências e Letras de Assis, UNESP. Doutorado Psicologia frbmbertao@ibest.com.br Resumo: Buscou-se refletir sobre as formas de intimidade que podem ser estabelecidas no encontro entre a dupla terapeuta-paciente dentro do contexto psicoterápico. Considerou-se o sofrimento presente na clínica contemporânea, que pode ser entendido como uma dor da ausência de simbolizações, marcada por angústias de invasões e abandonos, sem contornos psíquicos de mundo interno e externo. Esse sofrimento nos faz pensar na necessidade de construir e criar nesses vazios algo novo e representável, para que a pessoa possa vir a sentir-se pertencendo ao mundo. Para tanto, foi importante compreender o espaço de intimidade onde ocorre o encontro que possibilitará a busca de autonomia e criatividade do paciente. Essa criação entre terapeuta e paciente muitas vezes poderá ser vivenciada pela primeira vez nessa relação, precisando, portanto passar pelo repertório do terapeuta, que acolhe as angústias do pacientes no campo vincular, da transferência e da contratransferência, oferecendo condições para sustentação psíquica. Palavras-chave: Intimidade; Psicanálise; Contemporâneo. Este trabalho pretende refletir sobre as questões de intimidade na relação paciente-terapeuta e as influências do mundo contemporâneo na constituição do sujeito e nas formas de sofrimento decorrentes. Consideramos a dor psíquica do contemporâneo uma dor da ausência de simbolizações, marcada por angústias de invasões e abandonos, sem contornos psíquicos de mundo interno e externo. Esse estudo pretende pensar sobre a intimidade que precisa ser estabelecida na relação terapeuta-paciente, para possibilitar o desenvolvimento emocional, onde possam ser construídas significações, no lugar onde havia apenas o sofrimento do vazio. Esse sofrimento proveniente da ausência de si mesmo, onde a pessoa não consegue se sentir habitando a própria vida, nem perceber-se como alguém capaz de responsabilizarem-se por suas *Mestre em Psicologia Unesp-Assis (SP). Doutoranda em Psicologia Unesp-Assis **Professor Doutor dos cursos de Graduação e Pós Graduação em Psicologia da Unesp-Assis (SP).
2 ações, pensamentos e sentimentos, agindo apenas por atuações. Essas atuações são percebidas pela impossibilidade da pessoa lidar internamente com suas angústias que são esparramadas projetivamente no mundo externo, na tentativa de que o mundo externo e outras pessoas possam dar alguma forma de elaboração para esses conteúdos impensados. Esse processo tem se feito presente na clínica contemporânea e nos motivou nessa pesquisa a refletir sobre o trabalho do terapeuta diante desse sofrimento e das diferentes formas e possibilidades de desenvolver a intimidade, no mundo contemporâneo. O mundo contemporâneo tem como parâmetros norteadores da constituição do sujeito o individualismo e a predominância de características narcísicas, em que prevalece a falta crescente de investimentos afetivos nas relações entre as pessoas. Como resultado desses relacionamentos, tem desencadeado nas pessoas a alteração da própria sensibilidade, que pode ser descrita como um sentimento de tédio diante da vida, um sentimento de deserto afetivo. Bauman (2003) considera que a liquidez das relações e do mundo traz junto uma fragilidade de vínculos, talvez uma sensação assustadora do estar sem lastro, resultado de uma leveza atordoante que é atributo do mundo contemporâneo. Podemos considerar então que as subjetividades resultantes dessa condição de mundo não são amparadas por malhas simbólicas que possam conter os impulsos, as atuações e os rompantes. Na relação terapeuta-paciente pode-se viver um contato com o outro de maneira íntima possibilitando conhecer e desenvolver, transformar aspectos afetivos. É no encontro que se torna possível vivenciar, trocar e conter o desejo, o medo da loucura e a possibilidade de lidar com sentimentos de amor e de sensibilidade. Nesse encontro da dupla, se busca qualquer conhecimento que possibilite alcançar alguma transformação, significando guiar-se pelos caminhos da angústia diante do que está encoberto ou dos aspectos nunca antes pensados. O terapeuta faz um convite ao paciente para andar por caminhos
3 turbulentos e desconhecidos. Essa relação só pode ser desenvolvida com a proximidade e contatos duradouros. Leva-se tempo para chegarmos à intimidade mais profunda e real, aquela que cria experiências, lembranças e o sentimento de ser compreendido. As vivências do encontro podem trazer uma experiência inusitada, a de estar com outra pessoa de maneira íntima, criando um território de possibilidades para o desenvolvimento. Brandão (2003) considera que a intimidade compartilhada traz uma ruptura no equilíbrio, uma turbulência emocional intensa e, em seu bojo, a possibilidade de transformação: desencadeando pensamentos, possibilitando novas aquisições emocionais e construindo uma pele psíquica, que possa ajudar a conter as ansiedades e angústias, na relação entre mundo interno e externo. Winnicott (1975) considera o desenvolvimento da intimidade relacionado ao período inicial do bebê com os cuidados maternos e o envolvimento que se estabelece nesse começo de vida, quando o bebê precisa intensamente da mãe. Segundo Winnicott a capacidade de brincar, surge nesse ponto e que é também uma maneira de encontrarem-se si mesmo. O indivíduo pode encontrar a si mesmo apenas quando ele pode brincar e ser criativo. Essa é uma conquista não definitiva, portanto, mantém uma característica de instabilidade dependendo constantemente de condições pessoais e ambientais, também podemos referir as condições e exigências do mundo civilizado. A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos reais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina na intimidade, num relacionamento que esta sendo descoberto como digno de confiança. Para ser digno de confiança, o relacionamento é necessariamente motivado pelo amor da mãe, ou pelo seu amor-ódio ou pela sua relação de objeto não por formações reativas. Quando um paciente não pode brincar, o psicoterapeuta tem de atender a esse sintoma principal, antes de interpretar fragmentos de conduta. (WINNICOTT, 1975, p. 71). Criar condições de comunicação e adaptação para que o paciente possa começar a desenvolver a capacidade criativa de brincar, em situações nas quais a pessoa não conquistou ou perdeu essa capacidade, para chegar a si. Condições que exigem do terapeuta, a possibilidade de suportar as ansiedades do paciente e compreender que este apresenta certo grau de dependência,
podendo estar a caminho para alcançar alguma independência. Consideramos que para trilhar essa jornada o terapeuta tenha que buscar em seu repertório sua própria criatividade. 4 Winnicott (1971) considera fundamental que tanto o homem quanto a mulher, se sintam vivendo a própria vida, responsabilizando-se por suas escolhas, sentindo-se capazes de assumir para a si o merecimento de um sucesso ou a encargo de um fracasso resultante de suas opções e ações, diante de sua história pessoal. É com uma proximidade afetiva e cuidadora que o terapeuta consegue ir compreendendo como será possível desenvolver interlocuções com o mundo interno do paciente. Também possibilitar ao paciente a experiência de estar junto afetivamente de outras pessoas, e suportar todas as variadas emoções que acompanham um relacionamento, o afeto, a sensibilidade o medo da perda, e a possibilidade de estabelecer vínculos, tendo uma história pessoal para ser pensada e vivida. Pertencer a própria vida é ter o privilégio de sentir seus sentimentos sem se apavorar com eles. A partir da nossa discussão sobre o contemporâneo em que as relações são predominantemente frágeis e baseadas em rupturas, devido à velocidade e pouco investimento afetivo no outro, observamos um sofrimento, uma dor psíquica característica desse tempo. As alterações na forma das pessoas se relacionarem entre elas no contemporâneo interferem na constituição do psiquismo. O Sofrimento contemporâneo se apresenta na clínica como uma ausência de simbolizações, um vazio de pensamento. Esse sofrimento nos faz pensar na necessidade de construir e criar nesses vazios algo novo e representável, para que a pessoa possa vir a sentir-se pertencendo ao mundo. Para tanto, foi importante compreender o espaço de intimidade onde ocorre o encontro paciente-terapeuta, que possibilitará a busca de autonomia e criatividade do paciente. Muitas vezes essa intimidade terá que ser construída dentro da sessão.
5 Essa criação entre terapeuta e paciente muitas vezes poderá ser vivenciada pela primeira vez nessa relação, precisa passar pelo repertório do terapeuta, que acolhe as angústias do pacientes no campo vincular, da transferência e da contratransferência, dando sustentação para agüentar e estabelecer uma relação de intimidade íntima na área da experiência compartilhada. Temos um longo caminho a percorrer, por ser necessário lidar com o vazio e ausência de ser do paciente. Sendo necessário estar perto desse sofrimento para começar a conferir algum sentido de existência, oferecendo condições para sustentação psíquica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Z. Amor líquido. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003. BRANDÃO, C. M. M. B. Reflexões Sobre a Experiência da Intimidade no Processo Psicanalítico. In: XIX Congresso Brasileiro de Psicanálise, Psicanálise em Transformação e do XIV Pré Congresso Didático, 2003, Recife. WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1971. O brincar e a realidade. São Paulo: Martins Fontes, 1975.