Vasco Marta. Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do EURO



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Transcrição:

Vasco Marta Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do EURO Praia 2007

Ficha Técnica Título: CADERNOS DO BANCO DE CABO VERDE Série: Working Papers, n.º 06/2007 Editor: Banco de Cabo Verde Avenida Amilcar Cabral, n.º 27 C.P. 101 Praia Cabo Verde Tel.: + 238 260 7181/92 Fax + 238 26144 47 www.bcv.cv Paginação: DAG - Banco de Cabo Verde Impressão: Gráfica da Praia Tiragem: 100 Exemplares

Os Working Papers são trabalhos em evolução, cuja publicação visa incentivar o debate e o aprofundamento dos temas tratados. Os pontos de vista expressos são os dos seus autores e não reflectem, necessariamente, os do Banco de Cabo Verde, nem vinculam de qualquer forma esta Instituição.

Apresentação É comum dizer-se que o valor de uma moeda é, em grande medida, determinado por parâmetros institucionais e depende do contexto em que é utilizada. No actual estádio da economia cabo-verdiana, com a progressiva liberalização das transacções e dos movimentos de capitais e com a cada vez maior integração dos mercados, com o regime de taxas de câmbio vigente, de peg fixo do escudo ao euro, será que a utilização em paralelo dessas duas moedas, emitidas por autoridades monetárias diferentes, trará efeitos positivos à economia e responderá aos objectivos de desenvolvimento? Haveria algum impulso às trocas comerciais, sabendo que um dos papéis da moeda é o de facilitar as transacções? As respostas, pela sua complexidade, não serão certamente fáceis de obter. O presente trabalho, visando dinamizar o debate destas questões nas circunstâncias específicas da economia cabo-verdiana, visa, pois, apresentar contributos para o aprofundamento desta problemática, fazendo o levantamento de um conjunto de questões que se põe com a adopção de um tipo de regime monetário em que o escudo cabo-verdiano e o euro seriam utilizados em simultâneo. Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 5

Capítulo I

1. Introdução A dupla circulação ou a co-circulação pode ser entendida como a circulação e o uso em simultâneo e generalizado de duas ou mais moedas dentro de um país, ou seja, a utilização indiscriminada dessas moedas como meio de pagamento, reserva de valor e padrão de medida. Normalmente, a dupla circulação ocorre quando se regista de forma isolada ou em simultâneo alguma das seguintes situações: Falta de credibilidade da moeda nacional, em resultado de elevadas taxas de inflação e dificuldades económicas; No quadro de arranjos monetários, em que as moedas dos países signatários circulam livremente nas respectivas economias; Como resultado de um elevado grau de integração ou dependência entre duas economias. Como corolário das situações acima descritas, pode-se apontar as vantagens que se seguem, como razões justificativas para os agentes económicos deterem e transaccionarem em moeda estrangeira: Maior conveniência nas transacções internacionais, dada a maior estabilidade e mercado daquela moeda; Uso generalizado da moeda em causa nas transacções domésticas, o que elimina o custo de conversão da moeda estrangeira em moeda nacional; Redução/eliminação do risco de câmbio; e Meio privilegiado de reserva de valor. Pode-se encontrar várias modalidades de dupla circulação nos diversos países, ou seja, há países onde a dupla circulação se encontra legalizada, outros em que é tacticamente tolerada e os em que esta prática é ilegalizada e reprimida. Também, o grau de controlo das autoridades sobre a circulação da moeda estrangeira pode variar. Num extremo, temos a situação em que a cocirculação é totalmente independente do sistema financeiro formal, onde as autoridades nacionais não têm nenhum controlo sobre a situação, em que toda a transacção da moeda estrangeira e em moeda estrangeira é realizada informalmente. Alternativamente, a co-circulação pode estar completamente integrada no sistema financeiro formal e sujeita a regulamentação e controlo das autoridades nacionais. Nesta situação, para além das transacções, os contratos em moeda estrangeira podem estar legalizados, como poderá haver uma série de instrumentos financeiros denominados em moeda estrangeira depósitos, créditos, títulos de dívida, etc. Entre estes dois extremos existem várias modalidades intermédias com características específicas. Pretende-se com o presente documento fazer uma pequena abordagem das diversas questões que a Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 9

dupla circulação levanta à economia cabo-verdiana, designadamente as ligadas à execução da política monetária, à balança de pagamentos, ao cálculo da inflação, aos rendimentos da seigniorage, etc. O presente documento está estruturado em mais três secções: a primeira identifica e descreve as questões associadas à dupla circulação; a segunda aborda a co circulação à luz da economia de Cabo Verde e identifica os passos que as autoridades têm que dar para que haja a generalização da dupla circulação (escudo cabo-verdiano e euro) em Cabo Verde; a terceira apresenta as observações finais. 10 Vasco Marta

Capítulo II

2. Questões Associadas à Dupla Circulação 2.1 - Medição dos Agregados Monetários e Gestão da Política Monetária Um dos problemas mais complexos que a cocirculação levanta é o da medição dos agregados monetários e o do controlo dos mesmos. Com efeito, numa situação de circulação única, tanto no regime de câmbios fixos como no de câmbios flexíveis toda a moeda em circulação está sob controlo das autoridades nacionais. A emissão da moeda doméstica está sob controlo das autoridades monetárias que, a todo o momento, conhecem o seu volume. As estatísticas relativas aos agregados monetários são normalmente de grande qualidade e elevada fidelidade. O conhecimento e controlo dos agregados monetários por parte das autoridades permitem-lhes influenciar o comportamento da actividade económica, através da execução de políticas visando objectivos específicos. As alterações nas taxas de câmbio ou nas reservas internacionais têm efeito monetário sobre toda a economia, designadamente sobre a oferta monetária e sobre a inflação. No caso da dupla ou co-circulação, as assumpções acima mencionadas não se verificam. Desde logo, as autoridades monetárias deixam de ter o controlo absoluto sobre a emissão monetária. As estimativas dos diversos agregados monetários, designadamente a circulação monetária, terá que ser efectuada por métodos indirectos, com níveis diferenciados de fidelidade. Os efeitos das várias medidas de natureza monetária sobre a economia, designadamente sobre os preços e sobre a balança de pagamentos, não são conhecidos com exactidão, uma vez que o comportamento da moeda estrangeira em circulação depende mais da evolução da economia onde ela é emitida e das medidas implementadas por aquelas autoridades, do que dos estímulos e evolução da economia doméstica. É de se acrescentar que numa situação de co-circulação, os mecanismos de ajustamento externo podem ser completamente alterados, dado que as alterações no saldo da balança corrente poderão só parcialmente reflectir alterações na procura da moeda doméstica. 2.2 - Perda de seigniorage Os rendimentos da seigniorage resultam do poder que as autoridades têm de emitir moeda, que é um activo cujo valor não advém do seu custo de produção mas do jus império, ou seja do valor que lhe é atribuído pela lei. A seigniorage não é mais que um imposto que as autoridades cobram pela disponibilização da moeda, isto é, de um bem que serve de meio de troca universalmente aceite, de padrão de medida de valor e de reserva de valor. A co-circulação implica que parte das necessidades de moeda de um país passe a ser satisfeita por moeda de um país terceiro. Isto significa que os rendimentos de seigniorage passam a ser repartidos com países terceiros, com as consequências que daí advêm para o orçamento do Estado. Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 13

A repartição dos rendimentos de seigniorage tem sido objecto de algumas disputas e entendimentos entre os países emissores de moedas utilizadas por terceiros e estes. Normalmente, os países que utilizam moeda de um outro país argumentam que com essa utilização perdem os rendimentos de seigniorage, que passam a ser detidos pelo país emissor da moeda, pelo que exigem alguma compensação pelo facto. Por seu lado, os países emissores contra argumentam, avançando que ao permitir que a sua moeda seja utilizada por um país terceiro, estão a prestar a este um serviço, que é a possibilidade de usufruir das vantagens de uma moeda estável e credível (controlo da inflação, redução da fuga de capitais, aumento de investimento, etc.), pelo que devem ser compensados por este serviço. Vários tipos de entendimentos e acordos têm sido conseguidos para debelar esta situação aparentemente antagónica. 2.3 - Cálculo da Taxa de Inflação Uma das dificuldades que a dupla circulação coloca às economias que optam por este sistema é a do cálculo da taxa de inflação vigente. Em qual das moedas deve ser calculada a taxa de inflação - na moeda doméstica ou na moeda estrangeira - uma vez que a evolução da inflação poderá ter comportamentos diferenciados quando os preços são expressos numa ou noutra moeda? A solução que tem sido adoptada é a de calcular a inflação nas duas moedas e tomar como taxa de inflação para a economia em causa a taxa que resultar da média da inflação calculada nas moedas em circulação, ponderada pelo volume das transacções efectuadas em cada uma delas. Com este processo, a inflação calculada representa com grande aproximação a evolução do nível médio dos preços. No entanto, apresenta a dificuldade de se ter que estimar de forma quase que permanente o volume de transacções que são realizadas em cada uma das moedas, o que nem sempre é fácil. 2.4 - O Risco Cambial O risco cambial associado ao desencontro entre a moeda em que se realiza a facturação e os recebimentos e aquela em que são efectuados os pagamentos é um dos riscos que os agentes económicos passam a enfrentar numa situação de dupla circulação. Com efeito, numa situação de mono moeda, os agentes económicos são imunes às flutuações de taxa de câmbio para as transacções efectuadas internamente, apesar de enfrentarem este tipo de risco enquanto participantes do comércio internacional. Na situação de cocirculação, o risco de taxa de câmbio passa a ser endémico, ou seja, passa a ser uma característica intrínseca da própria economia. Todos os agentes económicos, mesmo nas transacções domésticas, correm o risco de receberem os seus proveitos numa moeda e terem que realizar as suas despesas numa outra. As empresas podem ficar na situação de receber o produto das suas vendas numa moeda e ter que pagar os salários e as imposições fiscais numa outra moeda. Numa situação destas, haverá sempre transferência de recursos de um agente económico ou de um sector de actividade para outro, sempre que haja alteração da paridade entre as moedas em circulação. 14 Vasco Marta

As alterações de paridade entre as moedas em circulação potenciam as condições para a verificação da Lei de Gresham, segundo a qual a má moeda expulsa a boa moeda de circulação, ou seja, será a moeda que tendencialmente se desvaloriza que dominará a circulação monetária do país, uma vez que a outra é entesourada. Se acontecer ser a má moeda a moeda doméstica, corre-se sérios riscos de se ter uma crise monetária. 2.5 - Prestamista de Último Recurso Um dos riscos que o sistema bancário enfrenta é o risco de liquidez, ou seja, insuficiência de moeda do banco central para satisfazer os levantamentos anormais e inesperados de dinheiro. Para responder a estas situações, os bancos centrais dispõem, normalmente de um discount window que permite aos bancos acederem à moeda do banco central sob condições previamente estabelecidas. Numa situação de co-circulação, a capacidade de prestamista de último recurso por parte das autoridades monetárias será mais limitada, dado que se houver um excesso de emissão da moeda doméstica corre-se o risco da manifestação da Lei de Gresham anteriormente descrita. 2.6 - Detecção e Controlo da Contrafacção A dupla circulação pressupõe o uso generalizado de uma moeda estrangeira por parte dos residentes de uma economia, moeda com que a maioria dos agentes económicos poderá não estar familiarizada. Este desconhecimento das características físicas da moeda pode facilitar a introdução de notas contrafeitas na circulação monetária. As autoridades terão de proceder à formação de entidades com responsabilidade na detecção e controlo das notas falsas. 2.7 - Movimentação Física das Notas A efectivação da dupla circulação pressupõe uma significativa movimentação física das notas de um país para outro, o que afecta o stock de moeda nos dois países. A movimentação física de notas, para além de questões de natureza estatística e monetária, como a estimativa da circulação monetária, cria dificuldades a nível da segurança no transporte dos fundos, o que significa custos adicionais para o país usuário da moeda estrangeira, caso se pretenda que o transporte da moeda se faça com um nível de segurança aceitável. Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 15

Capítulo III

3. Dupla Circulação em Cabo Verde No quadro do debate sobre euroização da economia cabo-verdiana tem-se levantado a questão de se poder permitir em Cabo Verde a circulação do euro em paralelo com o escudo (CVE). Uma vez que até ao momento não foi explicitada qual a modalidade e a profundidade que esta co-circulação poderá assumir, vai-se tentar avaliar as implicações para a economia cabo-verdiana, tanto para a situação em que a cocirculação é assumida e formalizada, como para a situação em que ela é simplesmente tolerada. Atendendo a que há questões e problemas que são comuns às duas situações, vai-se começar por abordá-las. 3.1 - Questões Comuns a todas as Formas de Co-Circulação - Alienação da Política Monetária A perda de capacidade de controlo sobre a evolução dos agregados monetários e, consequentemente, a perda de soberania na gestão da política monetária é um dos principais inconvenientes da dupla circulação. Na verdade, numa situação de dupla circulação as autoridades monetárias perderão grande parte do seu poder de controlo da política monetária, uma vez que parte da oferta monetária deixará de estar sob controlo das autoridades, o que reduz a sua capacidade de intervenção. No caso de Cabo Verde, em que se optou por um regime de câmbios fixos ancorado ao euro, a política monetária passou, devido a este facto, a estar subordinada à manutenção do peg CVE/ Euro. Esta subordinação ao peg condiciona toda a política monetária, reduzindo a sua independência, pelo que nos parece que o custo marginal resultante de um processo de dupla circulação, Euro e CVE, não será muito significativo, dado o condicionamento já existente. - Perda dos Rendimentos de Seigniorage O custo mais evidente de uma situação de dupla circulação é o da perda dos rendimentos de seigniorage, uma vez que parte ou a totalidade do aumento da procura da moeda por parte dos agentes económicos passará a ser satisfeita por moeda estrangeira. O custo associado à perda de seigniorage será tanto maior quanto maior for o crescimento da economia nacional e a proporção da moeda estrangeira em circulação. Num regime cambial como o de Cabo Verde, os rendimentos resultantes da aplicação das reservas externas do país dá-nos indicação dos valores que poderão assumir os custos relacionados com a perda de seigniorage, numa situação de dupla circulação. - Cálculo da Taxa de Inflação Relativamente ao cálculo da taxa de inflação não se descortina nenhuma especificidade para Cabo Verde, relativamente a outros países com Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 19

regimes de co-circulação. No entanto, enquanto se mantiver a credibilidade do actual peg CVE/Euro a taxa de inflação poderá ser calculada somente com base nos preços expressos em CVE, sem que haja perda de representatividade. - Risco Cambial O regime cambial actualmente vigente em Cabo Verde, peg fixo ao euro, reduz substancialmente o risco de taxa de câmbio. No entanto, em situação de dificuldades a nível da balança de pagamentos será um dos constrangimentos que os agentes económicos terão que enfrentar. 3.2 - Questões Associadas à Co-Circulação Informal Atendendo ao actual regime cambial, ao volume das reservas externas do país e ao grau de abertura da economia nacional ao exterior, parecenos que não há custos significativos para o país, se este optar pela liberalização da circulação informal do euro em Cabo-Verde. Com efeito, a circulação informal de moeda estrangeira, designadamente o euro, é uma realidade incontornável e não tem provocado grandes danos à economia nacional, nomeadamente a nível da instabilidade cambial ou a nível de desvios entre a taxa de câmbio oficial e a do mercado paralelo. Aliás, em certos centros onde se faz o comércio informal do euro, os custos de conversão de certos montantes e designações são inferiores aos praticados pelo sistema bancário. Convém referir que, durante o período colonial, houve uma experiência de dupla circulação informal, com o escudo português (PTE) a circular em simultâneo com a moeda privativa da colónia, embora com certas limitações. Com efeito, os agentes económicos podiam deter, sem penalizações, o PTE, que era cotado ao par, mas a sua compra no sistema bancário estava sujeita a certas limitações. Mas não podiam deter livremente contas em PTE. Não há registo de dificuldades monetárias resultantes desta dupla circulação mitigada. - Medidas para Estimular a Co-Circulação Informal No presente, para que haja um aumento das transacções informais em euro será necessário a tomada das seguintes medidas: Despenalização da Posse de Moeda Estrangeira A despenalização da posse de moeda estrangeira pelos residentes e a liberalização do seu comércio deverá ser o primeiro passo para a generalização da circulação informal do euro em Cabo Verde. Deste modo, deverão ser efectuadas alterações a nível normativo, de forma a permitir que os residentes possam deter e efectuar recebimentos e pagamentos em notas. Redução dos Custos de Conversão Euro/CVE Para que o euro seja aceite de forma generalizada pelos agentes económicos é necessário que se reduza o custo da sua conversão em CVE, pelo que os bancos comerciais teriam que reduzir o valor das comissões que cobram nas operações sobre o euro. Para que tal aconteça, será necessário que o Banco de Cabo Verde passe a aceitar depósitos em notas de euro, eliminando assim os custos com arrolamento e exportação das notas, que os bancos suportam neste momento. 20 Vasco Marta

3.3 - A Formalização da Dupla Circulação Para além das questões ligadas à dupla circulação informal, a formalização da co-circulação, ou seja, a circulação, no país, de uma moeda estrangeira em pé de igualdade com o escudo cabo-verdiano, levanta questões, tanto de ordem normativa como de ordem operacional, as mais relevantes das quais iremos tentar identificar: - Liberalização de Movimentos de Capitais A dupla circulação plena pressupõe, para ser credível, a liberalização dos movimentos de invisíveis e de capitais, pois os agentes económicos só estão dispostos a alimentar um fluxo constante de euros para o país se tiverem garantias do direito de regresso, ou seja, de poderem repatriar os euros a todo o momento. Por outro lado, para que haja euros a circular no país, significa que houve e que há uma saída permanente de capitais do país para o exterior para comprar os euros necessários a alimentar a circulação interna. Esse volume de capital será tanto maior, quanto maior for a quantidade de notas de euro a circular no país. Ao permitir a livre circulação do euro, as autoridades têm que criar as condições para que a conversão escudo/euro se faça sem custos e de forma ilimitada, permitindo, assim, de forma indirecta, a liberalização total dos movimentos de capitais. - Alinhamento do Mercado do Escudo com o Mercado do Euro A unificação do mercado do CVE e do Euro é também uma das condições necessárias para que a dupla circulação seja bem sucedida, ou seja, o sistema bancário nacional terá que ter acesso ao CVE nas mesmas condições que teriam ao euro, no mercado do euro. Isto significa que a política monetária executada em Cabo Verde teria que acompanhar de perto as alterações de política do Banco Central Europeu. - Redução das Reservas Mínimas Obrigatórias A dupla circulação conduz a uma maior integração do sistema financeiro nacional no sistema financeiro da área do euro. Essa maior integração poderia levar a que os bancos nacionais passassem a competir com bancos não residentes, facto de que já existem sinais evidentes, pelo que as autoridades deveriam criar as condições para que os bancos residentes competissem em pé de igualdade. Uma das formas de garantir essa igualdade seria remover todos os obstáculos de natureza normativa que fazem com que o funding dos bancos nacionais seja mais elevado que o dos bancos estrangeiros. Neste momento, o nível do coeficiente de reservas obrigatórias imposto ao sistema bancário nacional é elevado relativamente ao aplicado aos bancos da zona do euro, pelo que faz sentido a sua redução quando encarada nesta perspectiva. - Dupla Indicação de Preços A indicação de preços é outra questão que a co-circulação formalizada levanta. Em princípio, e para que a dupla circulação seja integral, os agentes económicos deveriam passar a cotar os preços nas duas moedas em circulação. Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 21

- Depósitos em Moeda Estrangeira A possibilidade de se poder realizar depósitos e levantamentos da moeda em circulação, livremente e sem custos, é outra das prorrogativas que os agentes económicos teriam de dispor num regime de co-circulação, para que ele fosse efectivo. - Contratos, Facturas, Recibos e Outros Papéis Comerciais Com a oficialização da co-circulação deveria ser dada a possibilidade aos agentes económicos de escolherem a moeda na qual pretenderiam realizar os seus negócios. Assim, deveriam ser criadas condições, nomeadamente do ponto de vista legislativo, para abrir essa possibilidade aos residentes. 22 Vasco Marta

Capítulo IV

4. Conclusão Neste momento, para além de questões de ordem operacional, a dupla circulação plena coloca dois desafios ao Banco de Cabo Verde: um de natureza monetária e outro prudencial. Com efeito, a liberalização dos movimentos de invisíveis e de capitais e a unificação dos mercados do CVE e do Euro, obriga a que as reservas obrigatórias exigidas aos bancos sejam reduzidas para níveis comparáveis aos dos seus concorrentes da Zona Euro, sob pena dos bancos perderem competitividade. Com a liberalização dos movimentos de capitais, os agentes económicos, pelo menos teoricamente, passarão a poder endividar-se no estrangeiro livremente, o que cria problemas aos bancos nacionais, devido ao diferencial de taxas. Por outro lado, a redução das reservas mínimas obrigatórias, neste momento, criaria uma situação de liquidez excessiva que o BCV teria que gerir. É preciso ter em conta que a liberalização dos movimentos de capitais e a redução das reservas obrigatórias para níveis muito baixos só são exequíveis, em segurança, com uma supervisão bancária de qualidade. Com efeito, a redução das reservas obrigatórias faz com que o sistema perca a função de seguro de depósitos e garantia de liquidez dos bancos, pelo que antes de uma redução substancial dessas reservas o Banco de Cabo Verde deveria criar mecanismos alternativos de garantia aos depositantes. Parece-nos que, de imediato, a co-circulação formal e integral poderá não ser interessante para a economia nacional, dados certos constrangimentos que pode originar, mas é nosso entendimento que nada obsta a que se dê alguns passos no sentido de estimular a circulação informal do euro. Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 25

Referências Bibliográficas Dual Currency Board: A Proposal for Currency Stability Stefan Erik Oppers, IMF 2000 Dollarization and the Lender of Last Resort Cristian Broas, Eduardo Levy Yeyti 2001 Dual Currency Economies as Mutiple Payment Systems Ben R. Graig and Christopher J. Walker Federal Reserve Bank of Cleveland 2000 Measurement of Co Circulation of Currencies Russel Krueger and Jiming Ha -2000 Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 27

Índice Apresentação...5 1. Introdução...9 2. Questões Associadas à Dupla Circulação...13 2.1 - Medição dos Agregados Monetários e Gestão da Política Monetária...13 2.2 - Perda de Seigniorage...13 2.3 - Cálculo da Taxa de Inflação...14 2.4 - O Risco Cambial...14 2.5 - Prestamista de Último Recurso...15 2.6 - Detecção e Controlo da Contrafacção...15 2.7 - Movimentação Física das Notas...15 3. Dupla Circulação em Cabo Verde...19 3.1- Questões Comuns a todas as Formas de Co-Circulação...19 3.2 - Questões Associadas à Co-Circulação Informal...20 3.3 - A Formalização da Dupla Circulação...21 4. Conclusão...25 Referências Bibliográficas...27 Cabo Verde - Questões Associadas à Co-Circulação do Euro 29