Sobre a Investigação em Serviço Social



Documentos relacionados
1.3. Planejamento: concepções

A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

GT Psicologia da Educação Trabalho encomendado. A pesquisa e o tema da subjetividade em educação

SOCIEDADE E TEORIA DA AÇÃO SOCIAL

Sinopse das Unidades Curriculares Mestrado em Marketing e Comunicação. 1.º Ano / 1.º Semestre

PROMOVER A RACIONALIDADE CRÍTICA NA INTERVENÇÃO CURRICULAR DOS PROFESSORES

Prof. Dr. Guanis de Barros Vilela Junior

EXPERIMENTAR PODE SER VOAR PARA OUTRO ESPAÇO

COMPETÊNCIAS E SABERES EM ENFERMAGEM

ESTÁGIO DOCENTE DICIONÁRIO

Serviço Social e o Trabalho Social em Habitação de Interesse Social. Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz Novembro de 2015

PROJETO DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA

Projeto Político-Pedagógico Estudo técnico de seus pressupostos, paradigma e propostas

TUTORIA DE ESTÁGIO: CONTRIBUIÇÕES À FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES/AS

O que é Estudo de Caso?

SISTEMAS DE INFORMAÇÃO PARA GESTÃO

AS REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORES SOBRE A DOCENCIA COMO PROFISSÃO: UMA QUESTÃO A SE PENSAR NOS PROJETOS FORMATIVOS.

Midiatização: submissão de outras instituições à lógica da mídia.

FORMAÇÃO DOCENTE: ASPECTOS PESSOAIS, PROFISSIONAIS E INSTITUCIONAIS

AVALIAÇÃO DO PROJETO PEDAGÓGICO-CURRICULAR, ORGANIZAÇÃO ESCOLAR E DOS PLANOS DE ENSINO 1

DIDÁTICA e DOCÊNCIA Ensinar a Ensinar & Ensinar e Aprender

RESENHA CADERNO PENSAR ESTADO DE MINAS 09/04/05. Universidade, Globalização e a Ecologia dos Saberes

As parcerias e suas dinâmicas: considerações a ter em conta para a promoção da mudança

Elaboração de Projetos

ELABORAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA: TEMA, PROBLEMATIZAÇÃO, OBJETIVOS, JUSTIFICATIVA E REFERENCIAL TEÓRICO

Índice. Prefácio...9. Palavras Prévias...13

INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO

O que fazer para transformar uma sala de aula numa comunidade de aprendizagem?

!"#$% #!$%&'()(*!#'+,&'(-.%'(.*!/'0.',1!,)2-(34%5! 6,-'%0%7.(!,!#'%8(34%! &#'(%)*%+,-.%

ANÁLISE DA ATUAÇÃO DO LÍDER NO SETOR DE SERVIÇO SOCIAL DA UNIDADE DE PRONTO ATENDIMENTO CONCHECITA CIARLINI MOSSORÓ/RN

Características do conhecimento científico

Escola Secundária de Valongo PROFESSORAS: DINORA MOURA ISABEL MACHADO PIMENTA

Dra. Margareth Diniz Coordenadora PPGE/UFOP

VOLUNTARIADO E CIDADANIA

PROCESSO DE TRABALHO GERENCIAL: ARTICULAÇÃO DA DIMENSÃO ASSISTENCIAL E GERENCIAL, ATRAVÉS DO INSTRUMENTO PROCESSO DE ENFERMAGEM.

O Que São os Serviços de Psicologia e Orientação (SPO)?

A MATEMÁTICA NO ENSINO SUPERIOR POLICIAL 1

A Sociologia de Weber

universidade de Santa Cruz do Sul Faculdade de Serviço Social Pesquisa em Serviço Social I

1. Motivação para o sucesso (Ânsia de trabalhar bem ou de se avaliar por uma norma de excelência)

Percursos Teóricos-metodológicos em Ciências Humanas e Sociais

PRAXIS. EscoladeGestoresdaEducaçãoBásica

DEMOCRÁTICA NO ENSINO PÚBLICO

FUNDAÇÃO MINERVA CULTURA ENSINO E INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NOTA EXPLICATIVA

PESQUISA QUANTITATIVA e QUALITATIVA

Criatividade e Inovação Organizacional: A liderança de equipas na resolução de problemas complexos

PRÓ-MATATEMÁTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Idealismo - corrente sociológica de Max Weber, se distingui do Positivismo em razão de alguns aspectos:

Curso de Graduação. Dados do Curso. Administração. Contato. Modalidade a Distância. Ver QSL e Ementas. Universidade Federal do Rio Grande / FURG

Diagrama de transição de Estados (DTE)

Código de Ética do IBCO

Na introdução o aluno deverá explicar o assunto que deseja desenvolver. Situar o tema dentro do contexto geral da sua área de trabalho

Rafael Vargas Presidente da SBEP.RO Gestor de Projetos Sociais do Instituto Ágora Secretário do Terceiro Setor da UGT.RO

AS PROFISSÕES E A CONSTRUÇÃO DA SUSTENTABILIDADE EM SUAS DIMENSÕES:

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS DE ANÁPOLIS

SERVIÇO SOCIAL E TRABALHO INTERDISCIPLINAR

Fundamentos e Tendências da Educação: perspectivas atuais

A Arquivologia como campo de pesquisa: desafios e perspectivas. José Maria Jardim Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

VIII JORNADA DE ESTÁGIO DE SERVIÇO SOCIAL

XI Mestrado em Gestão do Desporto

PRÁTICA PROFISSIONAL INTEGRADA: Uma estratégia de integração curricular

Pedagogia Estácio FAMAP

A PRÁTICA DE FORMAÇÃO DE DOCENTES: DIFERENTE DE ESTÁGIO Maria de Fátima Targino Cruz Pedagoga e professora da Rede Estadual do Paraná.

CENTRO UNIVERSITÁRIO ESTÁCIO RADIAL DE SÃO PAULO SÍNTESE DO PROJETO PEDAGÓGICO DE CURSO 1 MISSÃO DO CURSO

EXPLORANDO ALGUMAS IDEIAS CENTRAIS DO PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS ENSINO FUNDAMENTAL. Giovani Cammarota

OS PROCESSOS DE TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL EM UM DESENHO CONTEMPORÂNEO

Novos Programas: Outras Práticas Pedagógicas 1

1 COMO ENCAMINHAR UMA PESQUISA 1.1 QUE É PESQUISA

Estado da Arte: Diálogos entre a Educação Física e a Psicologia

DA UNIVERSIDADE AO TRABALHO DOCENTE OU DO MUNDO FICCIONAL AO REAL: EXPECTATIVAS DE FUTUROS PROFISSIONAIS DOCENTES

Uma reflexão sobre Desenvolvimento Económico Sustentado em Moçambique

PROGRAMA DE NORMALIZAÇÃO

A MODELAÇÃO DE LEIS E TEORIAS CIENTÍFICAS

SEMINÁRIO A EMERGÊNCIA O PAPEL DA PREVENÇÃO

ASPECTOS HISTÓRICOS: QUANTO A FORMAÇÃOO, FUNÇÃO E DIFULCULDADES DO ADMINISTRADOR.

Modelo Cascata ou Clássico

Orientações para a elaboração dos projetos de pesquisa (Iniciação científica)

Projeto Pedagógico Institucional PPI FESPSP FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO PROJETO PEDAGÓGICO INSTITUCIONAL PPI

FORMAÇÃO PEDAGÓGICA DE DOCENTES NO ENSINO SUPERIOR

Colégio Cenecista Dr. José Ferreira

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM POLÍTICAS PÚBLICAS, ESTRATÉGIAS E DESENVOLVIMENTO

METODOLOGIA DO ENSINO DA ARTE. Número de aulas semanais 4ª 2. Apresentação da Disciplina

Metodologia Científica e Tecnológica

Realizou-se dia 24 de Março, na Maia, nas instalações da Sonae Learning Center, a 6ª sessão da CoP, desta vez presencial.

Marketing Turístico e Hoteleiro

«As organizações excelentes gerem, desenvolvem e libertam todo o potencial dos seus colaboradores ao nível individual, de equipa e organizacional.

Orientação de Gestão nº 06/POFC/2008

Unidade II FUNDAMENTOS HISTÓRICOS, TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL. Prof. José Junior

Sistema de Monitorização e Avaliação da Rede Social de Alcochete. Sistema de Monitorização e Avaliação - REDE SOCIAL DE ALCOCHETE

A colaboração, a investigação e a reflexão contínuas são os pilares que podem

O TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO. Reflexões sobre as dimensões teórico-metodológicas da educação profissional

MBA em GESTÃO ESTRATÉGICA EMPRESARIAL

União do Ensino Superior de Nova Mutum - UNINOVA Nome dos acadêmicos em ordem alfabética. Orientações Sobre a Elaboração de Projetos de Pesquisa

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

Notas metodológicas. Objetivos

COORDENADORA: Profa. Herica Maria Castro dos Santos Paixão. Mestre em Letras (Literatura, Artes e Cultura Regional)

Núcleo de educação a distância - NEAD/UNIFRAN UNIVERSIDADE DE FRANCA

Relatório detalhado do seminário: Qualidade e Certificação

ÁREA A DESENVOLVER. Formação Comercial Gratuita para Desempregados

AVALIAÇÃO DE DOCUMENTOS E TABELA DE TEMPORALIDADE

Transcrição:

Sobre a Investigação em Serviço Social Dra. Maria Rosa Tomé 1 Em 2001 o Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social e a Veras Editora, no âmbito do Projecto Atlântida, publicaram o livro de Myrian Veras Baptista, A Investigação em Serviço Social, facto que muito congratula os Assistentes Sociais portugueses e brasileiros. Esta obra é o resultado da compilação de artigos que, no seu conjunto, nos oferecem um texto único sobre a investigação em Serviço Social. Myrian Veras Baptista, 2001. A Investigação em Serviço Social. Lisboa S. Paulo: CPIHTS e Veras Editora. A investigação na prática profissional e a investigação histórica no Serviço Social são os temas da sua obra e em torno dos quais questiona a interpretação do conhecimento que fornece um saber linear, a-histórico e descontextualizado das realidades sociais concretas. Na tese que defende considera que a acção dos sujeitos (profissionais) é produto de relações sociais concretas, histórica e socialmente construídas. A apropriação de uma metodologia crítica e rigorosa, que permita a sua compreensão e explicação, aparece então como fundamental. Por um lado, para clarificar os seus movimentos e intencionalidades, dar-lhe eficácia, instrumentalizar-se para acompanhar a diversidade e a dinâmica dos problemas complexos que enfrenta no quotidiano profissional. Por outro, para perceber como as condições sócio-históricas em cada momento e lugar se têm reflectido na profissão, como produziram vários paradigmas concorrentes entre si e, portanto, perspectivas de análise diferentes, passando por momentos de grandes conflitos e controvérsias. Partindo, no primeiro capítulo, da concepção de prática profissional (dos assistentes sociais) como uma prática social específica, historicamente determinada pela divisão social e técnica do 1 Maria Rosa Tomé, Assistente Social, ISSMT de Coimbra, Mestre em Serviço Social, ISSS de Lisboa, doutoranda do I Curso de doutoramento da Pontifícia Universidade Católica em Lisboa, Investigadora do Centro Português de 1

trabalho e como uma disciplina de intervenção inserida nas políticas sociais, nas suas instituições e organizações, analisa o paradoxo entre a complexidade inerente ao locus institucional, na medida em que expressa o carácter contraditório das políticas sociais e a aparente evidência de um quotidiano profissional em que os diversos sujeitos aparecem, simultaneamente, na qualidade de seres singulares e genéricos. Na medida em que os assistentes sociais e o seu mundo sócio-profissional estão em interacção, (...) produzem relações, sistemas de signos e símbolos que compõem uma estrutura particular de significados, formas institucionalizadas de organização social e de sistemas de status, o seu grau de desenvolvimento e de reconhecimento está em estreita relação com o grau de desenvolvimento da estrutura das relações sociais onde está inserido e com a forma como interfere nele. A institucionalização do Serviço Social produziu, à semelhança das outras profissões, esquemas de acção e actores que, ao mesmo tempo que têm uma história, são o seu produto. Neste processo criou a previsibilidade dos tipos de interacção que estabelece e uma esfera ampliada de rotinas, resultantes da acumulação de conhecimentos que se constituíram como cultura profissional a ser transmitida e que permitem que a sua acção possa assumir duas dimensões: de síntese e inovação. Qualquer uma é resultado da experiência submetida a selectividade (p. 13 a 16). Assim, as práticas profissionais que nos aparecem como evidentes (porque em cada momento e lugar se apresentam objectivadas, rotineiras e geridas por indivíduos singulares), são na verdade complexas e pouco claras, na medida em que são uma expressão da diversidade e dinâmica das relações sociais mais amplas e determinadas no quadro normativo das políticas institucionais. Nas instituições, desenvolvem-se actividades que são de natureza técnica e burocrática e que vão desde a formulação de políticas ao nível das estruturas sociais constituídas, à dos microacontecimentos, da operacionalização das políticas, das relações face a face. Aqui, o utente aparece como ser concreto, não genérico, com problemas muito específicos, face aos quais é necessário analisar o que acontece, estabelecer uma crítica, tomar uma posição e decidir um tipo de intervenção. No mesmo movimento para conhecer a realidade, vai construindo no pensamento um projecto de acção (p. 21) o que implica a necessidade de estabelecer um tipo de relação com o conhecimento. Essa relação não é desligada da sua visão do mundo, das leituras que efectua sobre o modo como um sistema de conhecimentos, políticas, valores e condutas se impõem, nem dos instrumentos de acção de que dispõe no momento. Investigação em História e Trabalho Social e docente do Instituto de Serviço Social Miguel Torga. É autora da obra A criança e a Delinquência Juvenil na Primeira República,veja-se http:www.cpihts.com 2

No segundo capítulo, questiona: a característica interventiva (do Serviço Social) retira da investigação a sua cientificidade? Qual a importância e qual a legitimidade da investigação na prática profissional? Após uma cuidada revisão de vários autores que desde os anos 40 acentuaram a importância da dicotomia entre a investigação e a intervenção social, a autora diz que a investigação científica voltada para a acção sobre a realidade tem as suas exigências próprias ao nível da lógica, da epistemologia e das técnicas, pois assumir como postulado para a intervenção a associação fundamental entre teoria e prática, implica a construção de um caminho científico para a investigação da sua acção, no quadro da intervenção. Exige a dialéctica intrínseca entre o processo cognitivo e a acção. Investigar a prática profissional tendo a intervenção como horizonte, isto é, quando a relação cognitiva não é a relação predominante (p. 39), confere à investigação um carácter instrumental. Na forma particular do conhecimento de uma disciplina de intervenção, (...), emerge uma maneira particular de pôr problemas e construir soluções lançando mão do desenvolvimento teórico e de aplicações tecnológicas. As mudanças alcançadas ao nível da intervenção podem receber interpretação teórica e política mas, para isso, é preciso que elas sejam, como diria Babier, de facto, convocadas e não apenas invocadas (p. 40). A sugestão claramente expressa pela autora é que o profissional desenvolva uma reflexão num sentido histórico, social, político e técnico, de questionamento dos saberes instituídos, a fim de produzir um saber e uma prática consequentes. A prática tem condições de ser fonte de teoria, de ser espaço de elaboração científica, desde que problematizada e apreendida na sua concretização, de uma perspectiva crítica, proporcionada por uma teoria social. O pensamento ganha conteúdo através da sua interlocução com o real. Isto exige que a relação entre conhecimento e acção se desenvolva num triplo movimento: crítica, construção de um conhecimento novo e síntese no plano do conhecimento e da acção. É este processo que permite clarear questões conjunturais e estruturais da profissão (p. 41) É no estruturalismo genético e através da categoria de estrutura significativa desenvolvida por Lucien Goldmann que Myriam Veras Baptista encontra os princípios metodológicos capazes de pensar a prática de modo a apreendê-la nas suas articulações e dinâmica e definir os procedimentos para a sua investigação. Assumir a prática profissional como objecto de investigação é, nesta perspectiva revelar o seu carácter significativo, estrutural e funcional, o que exige o estudo conjugado de uma dimensão analítica interna e de uma dimensão analítica externa - para compreender, por um lado, a estrutura interna da prática e detectar o processo pelo qual o Assistente Social elabora e procura 3

dar coerência às suas respostas, face às questões que lhe são colocadas nas suas relações com a sociedade e, por outro para explicar a sua génese e dinâmica. Assim, é preciso relacioná-la com os problemas que se colocam aos profissionais no momento estudado e com os factores que configuram aquele momento, permitindo apreender através de uma análise sócio-histórica, as relações qualitativas entre a ambiência externa da prática e as suas categorias internas (p. 50). A emergência, a transformação e os momentos de transição do Serviço Social só podem ser percebidos em profundidade, quando inscritos na totalidade estrutural das transformações que foram acontecendo na sociedade. A estrutura significativa do pensamento que informa a prática, nem sempre é evidente. Parece mesmo que no contexto da prática há justaposições de modos de prática, que o Serviço Social se dispersa por múltiplas dimensões, só elucidáveis pela investigação da sua génese e dos problemas que o constituem. Analisar a estrutura complexa da prática do Serviço Social é para a autora, perceber as suas tendências e isso implica perceber que o seu carácter complexo não é interno à profissão, mas próprio das práticas sociais. São as contradições que ocorrem em determinadas situações, é o modo como essas situações se inserem num complexo político, económico e social, que exige uma leitura da realidade que tem de ser ampliada a partir do seu micro universo. É na tensão que se gera nestas contradições que se confrontam forças conservadoras com forças críticas, lideradas por grupos com diferentes visões do mundo e que, portanto, o equilíbrio instável de um fenómeno pode ser superado ou mantido, dando ou não lugar a novas práticas, a acções profissionais inovadoras. O profissional que responde às questões da profissão, na medida em que desenvolve um acto que para além de individual é colectivo, desenvolve uma visão do mundo. Assim, gera fins para a prática, isto é, modelos de acção legítima, que vão sendo renovados e propostos à actuação comum dos profissionais. A criação e a legitimação de objectivos, sentimentos e ideias, a produção de conhecimentos e procedimentos transmissíveis vai conformando a identidade profissional, as linhas gerais da sua organização e as actividades peculiares à sua profissão (p. 56). Contudo, as relações que se concretizam na prática ocultam as mediações que as determinam, tornando-se muitas vezes inconscientes, em consequência dessa visão de mundo. Ao investigador é então exigido um conjunto de procedimentos rigorosos para que, no estudo das dimensões analíticas internas e externas, apreenda a complexidade e o carácter contraditório das relações, as visões do mundo dos grupos em interacção e a forma como estas geram e impulsionam as acções profissionais. Neste processo tem de enfrentar as dificuldades e 4

os desafios que se colocam quando tem de decidir, primeiro, quais os materiais empíricos que vai trabalhar e segundo, como trabalhá-los. Relativamente ao primeiro, exige-se ao investigador que agrupe e ordene os dados, que a princípio apenas fornecem uma representação caótica do real, de modo a constituir totalidades suficientemente autónomas. Este primeiro procedimento é bastante complexo, porque obriga a que se tenha claro o conjunto de dados empíricos que compõem cada totalidade e uma hipótese, mais ou menos elaborada, da estrutura que lhe dá unidade. Estabelecer as relações entre as diferentes unidades estruturais da prática pressupõe a formulação de hipóteses sobre a estrutura do objecto e as suas determinações essenciais. Estas hipóteses constituem-se como o ponto de partida para, (...) numa dinâmica de aproximações reflexivas, ir apreendendo, passo a passo, o conjunto de determinações que se dão no real, em diferentes momentos da sua génese, sobre a estrutura e o funcionamento do objecto. Nessas aproximações seleccionam-se os factos significativos até chegar a uma proposição estrutural que permita a compreensão e explicação de um conjunto coerente de factos (p. 58 e 59). Relativamente ao segundo, é necessário definir os critérios objectivos que ajudem a decidir como delimitar os dados empíricos que tendem a constituir a totalidade relativa do facto, como distinguir o que é essencial do que é acidental, no conjunto dos dados que aparecem à consciência sensível. Para a autora, este é o maior desafio do método ao Serviço Social: forjar o instrumento conceptual de análise que permita distinguir o essencial do acidental na prática profissional. O problema consiste então no facto de que a consciência sensível é limitada pela consciência possível. É uma expressão de estruturas de visão do mundo do(s) grupo(s) e classes sociais que evidenciam os principais aspectos da consciência colectiva. Assim, a solução está em formular hipóteses de visões do mundo, do pensamento, sentimento e acção dos assistentes sociais, que permitam identificar as suas categorias centrais e a vinculação dos seus elementos à situação sócio-histórica, em apreender as determinações que situam as práticas no tempo e no conjunto do universo das práticas sociais, bem como as práticas mesmo, isto é, o seu significado nesse contexto (...). O conteúdo das práticas será tanto mais importante, quanto mais se aproximar de uma coerência, em termos de visão de mundo, que permita estabelecer o máximo de relações entre o vector externo (a análise sóco-histórica da prática) e a apreensão das suas estruturas internas, identificando as suas consequências e os desvios em relação ao pensamento colectivo (p. 60 e 61). 5

Tal como se afirmou no início do texto, a aplicação rigorosa destes procedimentos traz uma dimensão compreensiva e explicativa do objecto estudado. Por um lado, vai permitir compreender a estrutura interna pela identificação do seu eixo essencial e do modo como se realiza o desempenho profissional, qual o seu instrumental metodológico e procedimentos, ao mesmo tempo que deixa claro que muitas das atitudes dos sujeitos da prática resultam de decisões quotidianas das instituições ou de grupos de poder que a influenciam. Por outro lado, é no estudo da génese e sua relação com as estruturas mais amplas que se determinam as linhas de força que se intercruzam e que explicam o modo de aparecer do dado, isto é, das práticas que são o seu objecto de estudo. No último capítulo da obra, a autora introduz uma reflexão à pesquisa histórica no Serviço Social, mantendo a preocupação de sistematizar uma metodologia rigorosa que permita o conhecimento de uma forma totalizante e situado historicamente. Construir o corpus da investigação aparece como uma tarefa complexa da qual decorrem riscos. É complexa porque tem de ser construído a partir da sua relação com o processo histórico, tendo em linha de conta que a sua realidade objectiva e empírica, se institucionaliza num contexto específico de relações sociais e que, portanto, se transforma à medida que se instrumentaliza para oferecer respostas aos desafios que são colocados sempre que se configuram novas relações. Práticas e conhecimentos têm de ser trabalhados nesta dinâmica como uma totalidade, como uma estrutura parcial vinculada a totalidades mais abrangentes e por elas determinada. Por outro lado, o espaço intelectual e prático da profissão é heterogéneo e, portanto o também o seu saber. Não reconhecer a complexidade deste processo pode conduzir a uma concepção de historicidade que se confunda com uma apresentação cronológica de factos ou actores ou com uma narrativa. Pode levar a pensar o Serviço Social apenas a partir de uma teleologia, numa perspectiva de pureza (...) que situa o olhar do investigador num espaço ideal, anacrónico, estranho ao objecto, sem vínculos com a sua constituição, contrapondo a impureza da prática, insistentemente denunciada e desqualificada, à pureza das reflexões de âmbito académico. Em alternativa, Myrian Veras Baptista propõe que a investigação histórica deve ser dirigida para entender por que um tal acontecimento se deu de uma certa forma e não de outra, num determinado lugar, num dado momento, tentando reconstruir a sua racionalidade em lugar de determiná-lo por classificações, pelo que ele não é, por estar fora do lugar (p. 69). Citando Goldmann, diz que a possibilidade de compreender os factos empíricos e abstractos e extrair deles as sua leis e a sua significação é o único critério válido para julgar o valor de um 6

método ou sistema filosófico (...) e um desafio que a autora coloca para a construção do conhecimento em Serviço Social. Compreender e explicar articuladamente o processo de constituição do Serviço Social e a sua dinâmica histórica, as condições materiais e o universo simbólico que o determinaram, implica estudá-lo na relação com os pensamentos e teorias dominantes nos diferentes momentos da sua trajectória e inseri-lo na totalidade estrutural das transformações que ocorrem ao nível da sociedade (p.70). Este trabalho exige ao investigador que entenda a importância dos dados empíricos como uma verdade parcial. Saber o que os assistentes sociais fazem e pensam, perceber as suas peculiaridades, atributos e significações para os tomar como indicadores objectivos da trajectória da construção do conhecimento e da prática profissional e submetê-los a uma reflexão crítica que estabeleça a relação entre o todo e as partes, entre a aparência e a essência é o que vai permitir assinalar as determinações sociais, políticas e institucionais que em cada momento e lugar explicam o Serviço Social no contexto da divisão social e técnica do trabalho e a estruturação do estatuto da profissão. Para Goldmann, toda a verdade parcial só assume significado, pelo seu lugar no conjunto, da mesma forma que o conjunto só pode ser conhecido pelo progresso das verdades parciais (p.72). Assim, é por um processo de objectivação dos factos mais significativos e sua integração em conjuntos mais abrangentes que, por aproximações sucessivas, a realidade supera os seus limites assumindo uma configuração histórica e de totalidade. 7