Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

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Transcrição:

Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Aparticipação das mulheres na capoeira: uma análise das relações de gênero Camila Rocha Firmino (Universidade Federal de São Carlos) Palavras-chave: capoeira, mulheres capoeiristas, relações de gênero Simpósio Temático: Gênero e Práticas Corporais e Esportivas 1. Introdução A questão que motivou esta pesquisa foi o fato de haver uma discrepância entre o número de praticantes mulheres de capoeira iniciantes e o número de instrutoras, professoras e mestras na capoeira. Seria pertinente, então, colocar a seguinte questão: as mulheres desistem da prática da capoeira antes de alcançarem as altas graduações, ou permanecem nessa prática sem galgar as graduações de maior prestígio simbólico? E quais seriam, para as mulheres, os fatores motivadores das desistências ou os obstáculos encontrados na conquista das altas graduações? Desse modo propus-me a examinar quais discursos, processos e mecanismos presentes no universo da capoeira que estariam relacionados a essa discrepância. Para abordar essa questão se fez necessário situar a análise no campo dos estudos de gênero, utilizando gênero enquanto categoria de análise. Esta pesquisa teve como objetivo analisar como ocorre a participação das mulheres na Capoeira e como se dão as relações de gênero nesta prática. Tendo o corpo e uso que se faz dele como objeto de análise, pretendeu-se verificar de que maneira as vivências de gênero se configuram como empiricamente observáveis durante o aprendizado e prática da Capoeira. Em outras palavras, considerando a linguagem corporal como uma inscrição do sistema simbólico vigente em nossa sociedade, pretende-se compreender o modo como as experiências de vidas marcadas por gênero, se relacionam com a prática desta luta/dança/jogo. 2. Método de pesquisa A pesquisa foi pautada na observação de aulas de três grupos capoeira e rodas em dois eventos de capoeira na cidade de Campinas, SP. Foram realizadas seis entrevistas gravadas em áudio e posteriormente transcritas. A análise dessas observações e entrevistas - realizadas com praticantes de capoeira de ambos os sexos foi realizada à luz da literatura da qual se fez uma revisão bibliográfica.

2 3. Resultados da pesquisa Tive a intenção de verificar e mensurar a participação das mulheres na capoeira em Campinas. Ao longo do trabalho, no entanto, percebi a complexidade da tarefa, pois, como observei, cada grupo se ramifica na medida em que novos(as) professores(as) iniciam novas turmas que se consolidarão enquanto desdobramentos do trabalho principal do mestre(a). Ademais a classificação de graduações varia de grupo para grupo o que tornou mais difícil a tarefa de mensurar quantitativa e qualitativamente a participação das mulheres nesse campo. Adotei então, o critério de mapear as mulheres capoeiristas que ministram aulas de capoeira (que desenvolvem um trabalho próprio) e realizar uma analise das relações de gênero através dos dados obtidos pela observação de aulas de três grupos e dois eventos de capoeira e das seis entrevistas realizadas. Há de se destacar que o fato de eu ser praticante de capoeira coloca-me em uma posição privilegiada para a realização dessa pesquisa. Atuar como pesquisadora sendo, ao mesmo tempo, praticante e instrutora de capoeira, possibilita-me conhecer essa atividade também a partir da sua prática. E, durante a pesquisa, aproveitar dos saberes prévios adquiridos sobre a capoeira de modo a realizar novas observações elucidadas pela pesquisa científica. Se por um lado, num primeiro momento, parece não haver um distanciamento entre pesquisadora e objeto de pesquisa, por outro lado, é esse fazer parte do contexto em que se insere o objeto de pesquisa que me permite o acesso incondicional a ele e me possibilita desvendar seus códigos e significados. Logo, essa pesquisa foi, em grande parte, possível graças às redes de relações que estão entrelaçadas e que podem ser acessadas a partir de um desses pontos comuns. Obviamente, não conheço todas pessoas praticantes de capoeira em um universo de um milhão de habitantes, mas conheço pessoas pertencentes a alguns grupos ou a algumas dessas redes que se estabelecem entre certos grupos. Essas pessoas e grupos a que tenho acesso na capoeira exerceram papel de informantes para que eu pudesse estender minhas observações a outros locais de capoeira que até a minha rede não abarcava. Detendo-se no período de legalidade da capoeira, a partir de 1937, quando esta se configura nos moldes nos quais hoje se apresenta - grupos, academias e graduações -, a presença de mulheres no seu interior vem crescendo visivelmente, haja vista que a formação da primeira mestra no Brasil Mestra Cigana - só ocorre em 1980. Desde então outras mulheres vêm se tornando professoras e mestras. Embora este número ainda seja pequeno ele vem aumentando desde 1980. Uma questão importante a se levar em consideração é a da profissionalização da capoeira. Em 1937, Mestre Bimba conseguiu registro oficial para abrir a primeira academia de capoeira do Brasil chamada Centro de Cultura Física e Capoeira Regional, até então o aprendizado da capoeira se dava de maneira espontânea entre mestre e discípulo em frente ao bar, quitanda ou em

3 casa (REGO, 1968). Essa estrutura de academia, sistematização do sistema de ensino em graduações, sendo a graduação máxima a de mestre, permite que o mestre e seus futuros mestres tenham a capoeira como profissão. Para que um (a) praticante chegue a ser professor (a) e mestre (a) são necessários muitos anos de dedicação e treino. O período em que se forma a primeira mestra do Brasil (1980) coincide com o período de mudança dos paradigmas sociais resultante da luta do movimento feminista, como por exemplo, a não obrigatoriedade do casamento, o acesso à educação e a escolha de não ter filhos proporcionada pela difusão dos métodos anticoncepcionais. Mudanças que, de certa forma, libertaram as mulheres das obrigações do casamento dando-lhes oportunidades de uma vida profissional. Apesar do aumento do número de praticantes, professoras e mestras, a capoeira ainda se apresenta como um território de muitos conflitos de gênero, às vezes evidentes e outras vezes obscurecidos, deslocados para a esfera do biológico. A assimetria das relações de gênero existente na capoeira é por vezes justificada por discursos que a remetem à ordem da biologia, como por exemplo, na fala de Rosa citando seu professor: olha ela é mulher, você é homem. Os dois tão jogando bem mais seus golpes tão bem mais rápidos, tem que tomar cuidado(...) ou como na fala de Mestre João: Agora, a mulher tem que saber que ela é diferente do homem.(...) A mulher não é estruturada para receber pancada de um homem, ela ta preparada para ser jogadora de capoeira. Desse modo, os discursos das diferenças de gênero cumprem o papel de subsidiar e justificar mecanismos de hierarquização entre os gêneros tais como os treinos diferenciados e espaços diferenciados permitidos as mulheres na capoeira. As esferas do jogo e da dança são permitidas as mulheres ao passo que a esfera da luta é de domínio dos homens. Entretanto os homens podem transitar entre todas as esferas, já as mulheres não. Na existência de diferentes esferas na capoeira (luta/dança/jogo) se acomoda um dos princípios hierarquizantes de gênero. A implicação prática dessa hierarquia é que as mulheres tendem a obter vivências diferenciadas das dos homens na capoeira. A vivência capoeirística das mulheres tende a ser incompleta pois são desincentivadas e às vezes impedidas de vivenciar o aspecto luta. Esses discursos das diferenças de gênero também podem ser incorporados na subjetividade das praticantes. Duas das entrevistadas alegaram que sentiam vergonha de realizar os movimentos e isso é algo que já venho constatando como recorrente entre capoeiristas iniciantes. Elas alegaram também haver outras meninas na mesma situação de timidez. De acordo com o sistema simbólico de nossa sociedade, existem práticas e espaços apropriados a mulheres e outros a homens. O fato das praticantes iniciantes sentirem vergonha de realizar os movimentos está relacionado com a suposta invasão a um espaço masculino. Estas praticantes sentem-se como se estivessem realizando algo inusitado e até inapropriado para mulheres

4 Na tentativa de eliminar o conflito existente entre a vontade individual de praticar capoeira e a inadequação desta prática para mulheres, as capoeiristas iniciantes podem buscar construir uma periferia dentro capoeira formada só por mulheres. Nestas condições elas não estariam invadindo um espaço masculino e tampouco representando ameaça. A construção desta periferia acontece quando as mulheres buscam outras mulheres para realizarem os exercícios em duplas e para jogarem na roda, sendo que na maioria das vezes nem os professores e nem os outros praticantes tentam modificar essa situação, sendo eles também responsáveis por essa exclusão e auto-exclusão das praticantes iniciantes. Evidentemente, essa timidez inicial e a formação explícita de uma periferia na capoeira não são regras, visto que existem mulheres praticantes que não se enquadram neste padrão de comportamento verificado. Elas podem apresentar uma performatividade subversiva de gênero quando atribuem novas experiências à performance de gênero, experiências até então classificadas como masculinas. Entretanto, muitas vezes treinos diferenciados para mulheres são instituídos pelos próprios professores como é o caso do treino de flexão de braço, realizado em menor número de repetições pelas mulheres ou com os joelhos apoiados no chão e treinos de queda que normalmente são realizados pelas mulheres entre mulheres. Logo, esses treinos diferenciados e o tratamento de cuidado com as praticantes se configuram como um mecanismo que exclui e dificulta o acesso das mulheres praticantes ao centro da capoeira. A presença de mulheres na capoeira moderna vem aumentando quantitativamente. Cada vez mais, mulheres alcançam altas graduações a despeito dos mecanismos excludentes existentes nesse universo como os já citados treinos diferenciados para mulheres, maneira de jogar diferenciada para com as mulheres e discriminação contra as mulheres capoeiristas como, por exemplo, em comentários ou atitudes de desdém. Talvez não fossem esses mecanismos excludentes, o número de mulheres quantitativamente e qualitativamente pudesse ser ainda maior tamanha a procura pelos estágios iniciais da prática. Em contrapartida a prática da capoeira contribui positivamente na agilidade, percepção e autonomia pessoal das capoeiristas. Considerações finais Uma vez constatado que a capoeira é um universo hierárquico, daqui em diante, cabe investigar em que medida as relações de gênero tencionam ou modificam a dinâmica de busca por visibilidade e prestígio neste universo. Ou seja, de que maneira os discursos sobre a (suposta) inferioridade física das mulheres agem no sentido de reservar às mulheres um estatuto inferior dentro do sistema hierárquico existente na capoeira, negando ou dificultando o acesso destas ao capital simbólico necessário para ingressar na disputa por prestígio. Para tanto, se faz necessário

5 realizar uma investigação mais apurada sobre o sistema simbólico no qual está inserida essa dinâmica da disputa por prestígio e distinção na capoeira e verificar como o gênero se articula dentro ou partir dele. Logo, a questão colocada é averiguar a maneira pela qual a estrutura hierárquica da capoeira acomoda em sua dinâmica o gênero enquanto marcador de diferença, ou até mesmo como o principal marcador de diferença. 4. Bibliografia ALTMANN, Helena. Orientação sexual nos parâmetros curriculares nacionais. Rev. Estud. Fem. [online]. 2001, vol.9, no.2 p.575-585. Disponível na World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0104-026x2001000200014&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-026X. Acesso em 02/07/06 ALTMANN, Helena. ; SOUSA, Eustáquia S. Meninos e meninas: questões de gênero e suas implicações na Educação Física in Cadernos CEDES - Antropologia e Educação Interfaces do Ensino e da Pesquisa, v. XIX, n. 48, 1999. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão de identidade, RJ: Civilização Brasileira, 2003 CORRÊA, Mariza. A natureza imaginária do gênero na história da Antropologia. Cadernos Pagu (5) 1995: pp. 109-130. FAUSTO-STERLING, Anne Dualismos em Duelo Cadernos Pagu (17/18) 2001/02: pp. 9-79. MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. Antropologia e Sociologia São Paulo Ed. Universidade de São Paulo, 1974. PIRIS, Antonio. A Capoeira na Bahia de Todos os Santos Um estudo sobre cultura e classes trabalhadoras (1890-1937), Tocantis/Goiania: NEAB/ Grafset, 2004 PISCITELLI, Adriana. "Re- criando a (categoria) mulher?" in Textos Didáticos, São Paulo, IFCH/ UNICAMP, 2002 REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico, Bahia: Ed. Itapuã., 1968 REIS, Letícia. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil São Paulo: Publisher Brasil,1997. A Aquarela do Brasil :reflexões preliminares sobre a construção nacional do samba e da capoeira in Cadernos de Campo, v.3, 1993. Mestre Bimba e Mestre Pastinha: a capoeira em dois estilos in Memória afro-brasileira v.2. São Paulo: Selo Negro, 2004 ROHDEN, Fabíola Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001 RUBIN, Gaily. The traffic in women: Notes on political economy of Sex. In: REITER, R. (org) Toward and antropology of women. Nova Iorque: Monthly Review Press, 1975, pp 157-210. SCOTT, Joan. "Gênero: uma categoria útil de análise histórica". In Educação e Realidade v. 20, n. 2.1995 SOARES, Carlos. E. L. " A negregada instituição: capoeiras no Rio de Janeiro (1850-1890)". Dissertação de Mestrado, História, Campinas, UNICAMP, 1993. A Capoeira Escrava e outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002 VASSALO, Simone. Capoeiras e Intelectuais: a construção coletiva da capoeira autêntica in Estudos Históricos, RJ nº 32, 2003