Saúde Suplementar e Modelos Assistenciais



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Transcrição:

Saúde Suplementar e Modelos Assistenciais Autora: Deborah Carvalho Malta 1 Introdução Nas últimas décadas ocorreram inúmeros avanços relativos às políticas setoriais públicas, em especial no setor saúde no Brasil. O movimento da "Reforma Sanitária" constituiu-se em um movimento político em torno da remodelação do sistema de atenção à saúde, tendo a compreensão da saúde como um direito do cidadão e dever do Estado. Este movimento aglutinou diversos atores sociais, formando uma ampla coalizão política em torno de princípios que sustentavam a criação do Sistema Único de Saúde e que resultaram no arcabouço jurídico da Constituição Federal de 1988 e da Lei Orgânica da Saúde - 8080, de 1990, que definiram as diretrizes de universalidade, integralidade e equidade (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990). A política de saúde no Brasil seguiu, nos anos 80, uma trajetória paradoxal: de um lado, a concepção universalizante, de outro, obedecendo às tendências estruturais organizadas pelo projeto neoliberal, concretizaram-se práticas caracterizadas pela exclusão social e redução de verbas públicas. Em função dos baixos investimentos em saúde e conseqüente queda da qualidade dos serviços, ocorreu uma progressiva migração dos setores médios para os planos e seguros privados (MALTA, 2001). A expansão da Saúde Suplementar nas últimas décadas foi significativa, estimando-se segundo os dados da PNAD/98, em 38,7 milhões o número de brasileiros cobertos por pelo menos um plano de saúde, o que corresponde a 24,5% da população do País (IBGE, 2000). Esses números expressam as profundas alterações que a prestação dos serviços de saúde vem sofrendo, colocando na agenda governamental a necessidade do estabelecimento de um ordenamento jurídico legal para o setor, que incorpore a regulamentação desse mercado privado e a definição das suas responsabilidades. Essa regulamentação iniciou-se em 1998, mediante a Lei 9656/98, mas, ainda existe um grande percurso na sua consolidação (BRASIL, 1998). Convive-se com uma grande heterogeneidade nos padrões de qualidade do setor, fragmentação e descontinuidade da atenção, que comprometem a efetividade e a eficiência do sistema 1

como um todo, atingindo as redes de cuidados básicos, especializados e hospitalares, que atendem a clientela de planos de saúde. A chamada assistência médica supletiva adquire inúmeros formatos na prestação da assistência e esses inúmeros aspectos devem ser mais bem conhecidos. O atual trabalho procura abrir o debate sobre os diferentes Modelos Assistenciais praticados na Saúde Suplementar, visando o maior conhecimento do setor e orientação da ação regulatória do Estado. Características dos segmentos da Saúde Suplementar A Saúde Suplementar é composta pelos segmentos das autogestões, medicinas de grupo, seguradoras e cooperativas. Denomina-se autogestão os planos próprios patrocinados ou não pelas empresas empregadoras, constituindo o subsegmento não comercial do mercado de planos e seguros. As autogestões totalizam cerca de 300 empresas e aproximadamente 4,7 milhões de beneficiários. O grupo é heterogêneo, incluindo as grandes indústrias de transformação (Volkswagen), entidades sindicais, empresas públicas, até empresas com pequeno número de associados. Cerca de 50% é administrada por instituições sindicais ou entidades jurídicas paralelas às empresas empregadoras, como as caixas de assistência, caixas de previdência e entidades fechadas de previdência. Integram sua administração, representantes dos trabalhadores e patronais. Percentual significativo é administrado por departamentos de benefícios/recursos humanos da própria empresa. Os planos de autogestão organizam suas redes de serviços, fundamentalmente, mediante o credenciamento de provedores (CIEFAS, 2000; BAHIA 2001; ABRAMGE, 2002). O subsegmento comercial compreende as cooperativas de trabalho médico UNIMED S e cooperativas odontológicas, as empresas de medicina de grupo (incluindo as filantrópicas) e as seguradoras. As seguradoras, vinculadas ou não a bancos, representam a modalidade empresarial mais recente no mercado de assistência médica suplementar, com 16% do contingente de pessoas cobertas através de planos privados de saúde. Esse segmento 1 Médica, Doutora em Saúde Coletiva (Planejamento e Administração em Saúde), Professora Adjunta EE/UFMG 2

utiliza-se da lógica atuarial para o cálculo das prestações dos planos e realiza uma seleção de riscos mais rigorosa, dado que se referenciam na lógica securitária (CORDEIRO, 1984; BAHIA 2001). As cooperativas de trabalho médico, as UNIMED S possuem 25% dos clientes de planos de saúde e se organizaram, a partir da iniciativa de médicos, com a argumentação da ameaça de perda da autonomia da prática médica e da mercantilização da medicina. As medicinas de grupo, constituídas inicialmente por grupos médicos aliados ao empresariado paulista, são atualmente responsáveis por quase 40% dos beneficiários da assistência médica supletiva. Esse segmento se organizou em torno de proprietários/acionistas de hospitais, criando redes de serviços e credenciando hospitais e laboratórios, dado que existia um comprador de serviços que lhes garantia um mercado seguro. O surgimento do setor deu-se a partir de meados da década de 1960, com o denominado convênio-empresa entre a empresa empregadora e a empresa médica (medicina de grupo), estimulados pela Previdência Social, que repassava subsídios per capita pelo serviço prestado, prática essa que foi decisiva no empresariamento da medicina (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1986, MÉDICI, 1992). A extensão do mercado da Saúde Suplementar Apresentaremos uma breve descrição sobre a extensão da Saúde Suplementar no Brasil, no que se refere à cobertura, abrangência geográfica, dados sobre o financiamento, número de operadoras, dentre outros, possibilitando maior aproximação do objeto estudado. Apesar do grande número de fontes consultadas, torna-se muitas vezes difícil comparar as informações, pois os dados encontram-se dispersos, com discrepâncias significativas para um mesmo ano, além de nem sempre existirem dados da mesma fonte para todos os anos. Os dados das fontes oficiais, como os do Ministério da Saúde e IBGE, são ainda limitados na abrangência e apresentam descontinuidade temporal. Grande parte das informações disponíveis é produzida pelas operadoras através de suas entidades representativas, ou, por firmas de consultorias contratadas pelas mesmas. A maioria dos estudos e pesquisas acadêmicas sobre a Saúde Suplementar trabalham com dados secundários oriundos das fontes mencionadas. Diante dessas dificuldades, os estudos que pretendem esboçar um panorama necessitam de esforço considerável para a organização e 3

produção de informações consistentes, além de demandar adaptações metodológicas para utilização adequada das informações disponíveis (BAHIA, 1999; KORNIS & CAETANO, 2002). Mesmo diante dessas limitações iremos nos apoiar nessas fontes para a caracterização da Saúde Suplementar. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD, do IBGE, tem por finalidade a produção de informações básicas para o estudo do desenvolvimento socioeconômico do País. A amostra de domicílios possibilita investigar diversas características socioeconômicas (educação, trabalho, rendimento e habitação), e outras com periodicidade variável, como as informações sobre migração, fecundidade, nupcialidade, saúde, nutrição. A primeira Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios foi realizada em 1967 e a partir de 1971, os levantamentos passaram a ser anuais, sendo interrompidos nos anos dos Censos Demográficos de 1970, 1980 e 1991. Em 1998 foi realizada investigação sobre saúde obtendo informações de morbidade percebida, acesso e utilização de serviços de saúde, cobertura por plano de saúde e os gastos com saúde (IBGE, 2000). A PNAD estimou em 38,7 milhões o número de brasileiros cobertos por pelo menos um plano de saúde, correspondendo a 24,5% da população do País, cobertura menor que nos países europeus e nos Estados Unidos (que é da ordem de 84%). Destes 75% estavam vinculados a planos de saúde privados (operadoras comerciais e empresas com plano de auto-gestão) e 25% estavam vinculados a planos de instituto ou instituição patronal de assistência ao servidor público civil e militar (IBGE, 2000). A cobertura de planos de saúde é expressivamente maior nas áreas urbanas (29,2%), do que nas áreas rurais (5,8%). O IBGE calcula que 25,7% das mulheres e 23,0% dos homens brasileiros estejam cobertos por um plano de saúde. Em relação às faixas etárias, o percentual da população brasileira que possui um plano de saúde, oscila de 20,7% entre pessoas até 18 anos, a 29,5% entre pessoas na faixa etária de 40 a 64 anos. Acima de 65 anos a cobertura atinge 26,1% para os homens e 28,2% para as mulheres. A cobertura é maior também entre aqueles que avaliam seu estado de saúde como muito bom e bom (25,9%), reduzindo para 14,5% entre aqueles que avaliam seu estado de saúde como ruim ou muito ruim (IBGE, 2000). 4

Aqueles que apresentam renda familiar inferior a 1 salário mínimo, tem cobertura de planos de saúde de apenas 2,6%, aumentando progressivamente com o crescimento da renda, até atingir 76% de cobertura entre aqueles que recebem 20 salários mínimos e mais (IBGE, 2000). Segundo a mesma pesquisa, cerca de 60% dos planos de saúde no País são pagos pelo empregador do titular, de forma integral (13,2%) ou parcial (46,0%). A modalidade de contrato mais freqüente é abrangente e inclui serviços ambulatoriais, hospitalares e exames diagnósticos e terapêuticos. O co-pagamento é uma prática observada em 20% dos planos de saúde do País (IBGE, 2000). Existe uma alta correlação positiva entre acesso ao médico e o poder aquisitivo da população. Enquanto 49,7% das pessoas de menor renda familiar declararam ter consultado médico nos últimos 12 meses, esse valor sobe para 67,2% no caso daquelas pessoas com mais de 20 salários mínimos de renda familiar. Segundo o IBGE, as pessoas sem rendimento foram as que apresentaram o maior coeficiente de internação hospitalar (11,5 por 100 pessoas no grupo). Em síntese a PNAD/98 apontou os seguintes problemas de acesso aos serviços de saúde no País: a) cerca de um terço da população brasileira não tem um serviço de saúde de uso regular; b) o acesso à consultas médicas e odontológicas aumenta expressivamente com a renda e é maior nas áreas urbanas; c) cerca de um quinto da população brasileira nunca foi ao dentista e esse percentual cresce para 32% entre os residentes da área rural; d) aproximadamente 5 milhões de pessoas referiram ter necessitado mas não procuraram um serviço de saúde, sendo que a justificativa mais freqüente desta atitude foi a falta de recursos financeiros; e) entre as pessoas atendidas, cerca da metade teve seu atendimento realizado através do SUS e, aproximadamente, um terço das pessoas referiu ter utilizado plano de saúde para receber este atendimento; f) do total de atendimentos, cerca de 16% implicaram em algum pagamento por parte do usuário; g) o atendimento recebido foi bem avaliado pelas pessoas que usaram serviços de saúde, tanto públicos como privados (IBGE, 2000). O IBGE concluiu que os planos de saúde atuam no sistema de saúde brasileiro introduzindo mais um elemento de geração de desigualdades sociais no acesso e na utilização de serviços de saúde, na medida em que cobrem uma parcela seleta da 5

população brasileira na qual predominam: pessoas de maior renda familiar, inseridas em determinados ramos de atividade do mercado de trabalho e que avaliam seu estado de saúde como muito bom ou bom (IBGE, 2000). 1.1.1 Outras fontes na caracterização da Saúde Suplementar Iremos nos apoiar em dados de literatura, nas fontes oficiais (Agencia Nacional de Saúde Suplementar - ANS) e nos sites das operadoras, para a caracterização do mercado de planos de saúde no Brasil. A fonte oficial sobre o mercado da Saúde Suplementar é o Cadastro de Beneficiários da ANS, de preenchimento obrigatório por parte das operadoras e que em abril de 2002, contabilizava 32,7 milhões de beneficiários, distribuídos da seguinte forma: Medicina de Grupo (33,6%), Cooperativa Médica (25,0%), Autogestão (14,6%), Seguradora (16,2%), Odontologia de Grupo (5,3%), Filantropia (2,7%) (Tabela 1) (BRASIL, 2002a). Distribuição de beneficiários da saúde suplementar por segmento, Brasil 2002 Faixa de Beneficiários % Beneficiários ativos Beneficiário s % Operadora s Medicina de Grupo Cooperativa Médica Autogestão Odontologia de Grupo Coop. Odontológica Administradora Seguradora Filantropia 11.011.768 8.209.697 4.782.943 1.728.578 823.061 32 5.288.272 883.868 33,6 25,0 14,6 5,3 2,5 0 16,2 2,7 627 315 285 284 148 1 13 102 35,3 17,7 16,0 16,0 8,3 0,06 0,7 5,7 Total 32.728.219 100,0 1.775 100 Fonte: Cadastro de Beneficiários - abril de 2002 (BRASIL, 2002a) Dados do mesmo cadastro em novembro de 2002 contabilizavam 35,5 milhões de beneficiários (BRASIL, 2002b). O Cadastro da ANS não inclui os beneficiários vinculados aos sistemas de Previdência Pública Estadual, por não serem incluídos na obrigatoriedade da Lei 9656/98, quanto à apresentação do cadastro à ANS e também não incluí, eventualmente, operadoras que obtiveram liminares na justiça, desobrigando-as do fornecimento de seus dados cadastrais. 6

A ABRAMGE estima que o mercado de planos de saúde compreenda cerca de 41 milhões de clientes, divergindo dos dados oficiais. Cabe esclarecer que a ABRAMGE trabalha com estimativas e não com cadastro real (ABRAMGE, 2002). Para fins desse trabalho consideraremos os números de cobertura oficiais. O Cadastro da ANS contabilizava em abril de 2002: 13 seguradoras, 627 Empresas de Medicina de Grupo, 102 Filantrópicas, 285 Autogestões, 315 Cooperativas Médicas, 148 Cooperativas odontológicas, 284 Odontologias de Grupo e 1 Administradora (BRASIL, 2002a) (Tabela 1). Os dados do cadastro mostram a concentração dos beneficiários em grandes operadoras: são 752 operadoras com até 2000 beneficiários, ou 1,58% e 54 operadoras somam mais de 17 milhões, ou 52% dos beneficiários (Tabela 2). A maioria das empresas de medicina de grupo e UNIMED S são de pequeno porte (menos de 100.000 beneficiários) e com coberturas mais localizadas. Ao contrário, as seguradoras possuem planos com mais de 100.000 beneficiários e concentrados em um pequeno número de empresas (Figura 1). Tabela 1. Distribuição das faixas de beneficiários por operadoras, Brasil 2002 Faixa de Beneficiários Até 2000 2001 a 10000 10001 a 20000 20001 a 50000 50001 a 100000 100001 a 500000 Acima de 500000 Operadora s 752 563 191 143 72 47 7 % Beneficiários % 42,3 31,7 10,8 8,0 4,0 2,6 0,4 518.456 2.726.616 2.753.995 4.451.271 5.126.007 9.712.987 7.438.887 1,6 8,3 8,4 13,6 15,6 29,7 22,7 Total 1775 100 32.728.219 100,0 Fonte: Cadastro de Beneficiários - abril de 2002 (BRASIL, 2002a) 7

Figura 1. Participação dos segmentos da saúde suplementar por faixa de beneficiários, Brasil 2002 100% 80% 60% 40% 20% 0% até 2.000 2.001 a 10.000 10.001 a 20.000 20.001 a 50.000 50.001 a 100.000 100.001 a 500.000 acima de 500.000 administradora autogestão cooperativa medicina de grupo seguradora Fonte: Cadastro de Beneficiários - abril de 2002 (BRASIL, 2002a) A distribuição geográfica mostra uma concentração de operadoras e beneficiários nas regiões Sudeste (60,80%) e Sul (17,26%), em função do maior poder aquisitivo da população e da existência de numerosas indústrias e empresas, contratantes de planos coletivos. A região Norte detém o menor percentual de operadoras (2,8%) (Tabela 3). Tabela 2. Distribuição das operadoras por região, Brasil 2002 Região Número de % operadoras Sudeste 1599 60,8 Sul 454 17,3 Nordeste 384 12,7 Centro Oeste 169 6,4 Norte 74 2,1 Total 2630 100,0 Fonte: Cadastro de Beneficiários abril de 2002 (BRASIL, 2002a) Os estados com maior cobertura são, por ordem decrescente: São Paulo (40,6%), Distrito Federal (30,9%), Rio de Janeiro (29,2%), Espírito Santo (20,6%), Minas Gerais (18,7%) e as coberturas menores que 4% são observadas nos estados: Acre, Tocantins, Maranhão, Roraima e Sergipe (Tabela 4) (BRASIL, 2002a). 8

Tabela 3. Distribuição dos beneficiários da saúde suplementar por estado e cobertura populacional, Brasil 2002 UF Beneficiários ativos População % UF Beneficiári os ativos População % SP DF RJ ES M G PR SC RS PE CE A M 15.042.346 633.960 4.200.755 639.144 3.343.065 1.622.386 827.529 1.181.134 876.828 809.424 296.463 202.392 254.700 402.840 37.032.403 2051.146 14.391.282 3.097.232 17.891.494 9.563.458 5.356.360 10.187.798 7.918.344 7.430.661 2.812.557 2.078.001 2.776.782 5.003.228 40.6 30.9 29.2 20.6 18.7 17.0 15.4 11.6 11.1 10.9 10.5 9.7 9.2 8.1 PB MT BA AP AL PA RR PI SE RO MA TO AC 266.665 190.675 984.225 27.118 150.545 316.492 16.088 112.770 66.682 50.002 168.271 31.930 13.790 3.443.825 2.504.353 13.070.353 477.032 2.822.621 6.192.307 324.397 2.843.278 1.784.475 1.379.787 5.651.475 1.157.098 557.526 7,7 7.6 7.5 5.7 5.3 5.1 5.0 4.0 3.7 3.6 3.0 2.8 2.5 M S R N G O Brasil 32.728.219 169.799.170 19.3 Fonte: Cadastro de Beneficiários abril de 2002 (BRASIL, 2002a) A implantação da regulação pública na Saúde Suplementar O debate sobre o tema da regulação na Saúde Suplementar é ainda muito incipiente no Brasil, dado o recente tempo de efetiva publicação da Lei 9.656/98, que constituiu um importante instrumento de regulação pública. A Lei introduziu novas pautas no mercado como: a ampliação de cobertura assistencial, o ressarcimento ao SUS, o registro das operadoras, o acompanhamento de preços pelo governo, a 9

obrigatoriedade da comprovação de solvência, reservas, técnicas, a permissão para a atuação de empresas de capital estrangeiro, dentre outras. Segundo Bahia (2001), existem divergências quando se discute qual é o objeto e a intensidade dessa regulação. Para alguns, a regulamentação visa corrigir/atenuar as falhas do mercado com relação à assimetria de informações entre clientes, operadoras e provedores de serviços. A regulação deveria então atuar minimizando a seleção de riscos, por parte das empresas de planos, que preferem propiciar cobertura aos riscos lucrativos e por parte de clientes, que tendem a adquirir seguros/planos, em razão de já apresentarem alguma manifestação do problema de saúde pré-existente. Os grandes embates posteriores à criação da ANS têm se dado em função da ampliação da cobertura e ameaças de quebra das operadoras de menor porte, face às exigências de demonstração de solvência. As críticas produzidas dentre os diversos atores variam conforme a sua origem, inserção social e defesa dos interesses que representam. Nesse sentido, os órgãos de defesa dos consumidores, como o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), pontuam, por exemplo, a armadilha aos idosos, apontada como a permissão da adoção de preços diferenciados entre os mais jovens e mais velhos, e a permissão de não coberturas. Os órgãos de defesa do consumidor conjuntamente com as entidades médicas, questionam a não cobertura de todas as patologias, a autonomia na solicitação dos procedimentos, a remuneração dos profissionais, dentre outros. As cooperativas médicas questionam os prazos de adaptação às Leis, a obrigatoriedade e constitucionalidade do ressarcimento, as dificuldades impostas aos pequenos planos e empresas regionais, no que se refere às exigências de coberturas. As medicinas de grupo pontuam os prazos de adaptação às Leis, a ilegalidade quanto à retroatividade, as inúmeras exigências que levam ao aumento dos custos dos produtos. As seguradoras criticam que o modelo criado tornou-se muito expandido com regras de difícil execução (FIGUEREDO, 2002). Os embates sobre a regulamentação pública se estenderam para dentro do aparelho de estado, enquanto o Ministério da Fazenda defendia uma regulação governamental de menor intensidade através da SUSEP, onde o centro era a regulação econômica e financeira, o Ministério da Saúde defendia uma ação mais efetiva do Estado, colocando a regulação também no aspecto assistencial. O modelo da regulação 10

bipartite, feita pela SUSEP e pelo MS se arrastou até a criação da ANS, através da Lei 9961/00, que definiu por um órgão regulador único, saindo vitoriosa a tese do Ministério da Saúde (BRASIL, 2000c; MESQUITA, 2002). A Agência de Saúde Suplementar (ANS) foi criada com autonomia orçamentária e decisória e assemelha-se às demais agências reguladoras quanto a estrutura organizacional e autonomia. Sua criação significou um importante passo na regulação do mercado, revelando diversos abusos das operadoras contra os clientes e ampliando o papel de regulação e controle da assistência. Ainda permanecem muitas lacunas no processo regulatório que precisam ser aperfeiçoadas. Um grande avanço nos mecanismos de regulação constituiu-se na implantação do ressarcimento ao SUS, em 2000. Este foi concebido para desestimular o atendimento de clientes de planos de saúde em estabelecimentos da rede pública e privada conveniada. A cobrança tem se dado através de uma terceira tabela para a remuneração dos procedimentos, a Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos (TUNEP), que foi concebida com valores intermediários entre os praticados pelas operadoras e pelo SUS (BRASIL, 2000a). O ressarcimento ainda é polêmico entre as operadoras, que se defendem dizendo que seus clientes optam espontaneamente pelo SUS e por isso estariam desobrigadas em ressarcir tais despesas. Ainda existem inúmeras dificuldades no processo de retorno do recurso desembolsado aos cofres públicos, demonstrados pelos dados de desempenho do ressarcimento: dos 364.242 procedimentos identificados até dezembro de 2002, 193.014 haviam sido impugnados, 145.349 cobrados e apenas 33.935 efetivamente pagos (BRASIL, 2003). O processo de regulação ainda é incipiente e torna-se necessário o enfrentamento de temas mais complexos e estruturantes como o desafio de entender a natureza dessa regulação, seus avanços e limites, a dimensão da organização do subsetor, o financiamento da oferta de serviços, as modalidades assistenciais, suas redes e a complexidade dessas relações. A compreensão do Modelo Assistencial praticado só se faz na medida que entendemos o processo de regulação existente. Modelo Assistencial e regulação são as duas faces da mesma moeda. Visando facilitar a compreensão da dimensão do processo regulatório, buscamos a contribuição de Cecílio (2003), que propõe um diagrama para 11

facilitar a visualização da cartografia do campo regulatório da ANS, possibilitando o mapeamento dos campos de intervenção e abrindo a discussão de como atuar visando a transformação na melhoria da atenção à saúde (Figura 2). Cecílio (2003) designa o campo A (regulação da regulação ou macroregulação), como o campo constituído, pela legislação e regulamentação (Legislativo, Executivo/ANS, CONSU), ou seja, a Lei 9656/98 e 9.961/2000, as resoluções normativas, operacionais, instruções, dentre outras, ou seja, "O braço do Estado que se projeta sobre o mercado" (BRASIL, 1998; BRASIL, 2000b). O campo B constitui o campo da auto-regulação ou regulação operativa, isto é, as formas de regulação que se estabelecem entre operadoras, prestadores e compradores/beneficiários. Sendo que no espaço relacional 1, ocorrem as relações entre operadoras e prestadores, o espaço relacional 2 é aquele onde se estabelecem as transações entre as operadoras e os compradores/beneficiários, o espaço relacional 3 marca o encontro dos beneficiários com os prestadores. Figura 2 A cartografia do campo regulatório da ANS Campo A - Regulação da Regulação ANS Operadoras 1 3 2 Compradores/ Beneficiários Campo B - autoregulação operativa Fonte: Cecílio (2003) 12

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Mapeando essas relações torna mais fácil a caracterização do espaço regulatório. Discutiremos as hipóteses do estudo, visando a compreensão do modelo regulatório e do modelo de assistência praticado. Essas hipóteses são fruto de um trabalho coletivo, de um grupo de pesquisadores da Saúde Suplementar 2 (JORGE; 2003; CECÍLIO, 2003). As hipóteses do estudo A regulação pública praticada atualmente na Saúde Suplementar tem ocorrido, em geral, a partir da premissa da regulação da saúde financeira das operadoras, ou seja, da capacidade de se estabelecer no mercado, honrando os compromissos na prestação da assistência à saúde dos seus beneficiários, conforme o que foi contratado, sob a perspectiva do direito dos consumidores. Esse modelo de regulação tem sido praticado nos diversos países, inclusive no Brasil, mesmo que timidamente e ele se refere à regulação no Campo A, do diagrama proposto por Cecílio (2003). Após a aprovação da Lei 9656/98, abriu-se uma disputa dentro do aparelho de estado, onde alguns setores defendem uma nova perspectiva no processo regulatório do Estado, entendendo uma nova atribuição no papel regulatório, ou seja, a regulação da produção do cuidado à saúde. Esses setores entendem que as operadoras podem ser gestoras da saúde dos seus beneficiários, ou não, e que essa prática precisa ser regulada pelo Estado. Essa perspectiva abre uma nova frente de ação do Estado. No que se praticava até então no processo regulatório, amplia-se para o entendimento que se deve intervir também na regulação do cuidado à saúde, praticado pelas operadoras. Coloca-se um outro patamar de intervenção, onde as políticas públicas indicam as diretrizes desse novo formato regulatório, ou seja, intervir também no campo B, ou no campo da auto-regulação ou regulação operativa. A regulação do Estado nesse nível deverá ser precedida por um processo de apreensão dessa dimensão, compreendendo como esses mecanismos assistenciais ocorrem no cotidiano. Existe um déficit de conhecimento e de incorporação de ferramentas que fundem essa nova perspectiva de intervenção. 2 As pesquisas são: "Estudo e desenvolvimento de modelos e garantias assistenciais para a ANS" e Mecanismos de regulação adotados pelas operadoras de planos de saúde no Brasil. 14

O processo brasileiro é de tal complexidade, que não se consegue enxergar completamente o subsetor Saúde Suplementar, criando limites na eficácia do processo regulatório. O mercado tem atuado livremente, e uma nova prática do estado implica em se adquirir saberes e competências que subsidiem essa nova forma de operar. Uma outra hipótese importante levantada é que, para fazer frente à Lei 9656/98, as operadoras e prestadores têm desenvolvido mecanismos micro-regulatórios para sobreviver ao mercado e à regulação da ANS. Alguns desses mecanismos são conhecidos, como a instituição de protocolos, de mecanismos de referência e fluxos que dificultam a solicitação de alguns procedimentos, o co-pagamento, fatores moderadores, dentre outros. Ainda há muito que se investigar para melhor compreensão desses mecanismos. A existência desses mecanismos de micro-regulação resultam na fragmentação do cuidado, que se tornam centrados na lógica da demanda e da oferta do que foi contratado e não na lógica da produção da saúde, do cuidado. O modo de operar a assistência passa a se tornar centrado na produção de atos desconexos, não articulados. Assim as operadoras trabalham, não com a produção da saúde, mas sim com a idéia de evento/sinistralidade. Assim a saúde torna-se para o mercado um produto e não um bem. Mesmo quando se investe em atividades de promoção e prevenção, esse componente entra mais como produto de marketing do que como diretriz do modelo assistencial, visando de fato o cuidado à saúde. Neste contexto, quando se avalia a hipótese de que as operadoras/prestadores na Saúde Suplementar podem ser gestores do cuidado e que isso pode ser regulado pelo estado, verifica-se que esta idéia não se sustenta a partir da atual configuração do mercado de saúde brasileiro e da prática regulatória vigente na Saúde Suplementar, que atua basicamente no espaço da macro-regulação. Para a viabilização desta nova perspectiva de regulação há que se repensar e intervir sobre as práticas assistenciais vigentes, instituindo uma nova forma de operar o processo regulatório, intervindo no campo B. Isso implica, portanto, investigar essas relações, mapear como as operadoras estão impondo os seus mecanismos regulatórios ao mercado (gestão por pacote, glosas, auditorias), como os prestadores reagem à esses mecanismos, buscando maior eficiência, produzindo redução de custos, ampliando a competitividade entre si ou a 15

sobrevivência no mercado. Assim estamos nos referindo a como entender o espaço relacional 1 (Figura 2). Ainda no campo B (Figura 2), cabe também mapear o espaço relacional beneficiários prestadores, ou o espaço relacional 2, principalmente considerando o micro espaço de encontro entre o usuário e a equipe de saúde, em especial, a relação médico-paciente. Cabe, portanto, compreender como os prestadores/médicos estão reagindo e instituindo outros mecanismos de microregulação, ou seja, atuando centrados no poder médico. Cabe indagar se essa relação busca se pautar pela produção da qualidade em saúde, pelo processo de informação do usuário/ beneficiário e de produção de sua autonomia, ou ao contrário, em função da pressão das operadoras, se a relação entre os prestadores/médicos e clientes tem-se pautado pela redução de custos, restrição de exames e procedimentos. Nesse espaço cabe indagar se essa relação pode se pautar por uma lógica mais cuidadora, mais relacional e resolutiva, ou por outro modelo relacional mais autoritário. No espaço relacional beneficiários-operadoras, ou espaço 3, o debate central passa por temas como a seleção de riscos (ou barreiras à entrada dos segurados no sistema, excluindo os de alto risco), risco moral ou moral hazard (aumento da utilização de serviços pelos usuários, quando coberto), a quebra da integralidade do cuidado por parte da operadora, não garantindo o cuidado contratado, e a busca da garantia de direito, por parte dos usuários (ALMEIDA, 1998). Constata-se um grande esforço regulatório da ANS na construção de uma agenda da regulação, concentrada no campo A, cabe ao Estado discutir também a atuação sobre o campo da regulação operativa, ou no campo B. Esse último constitui o centro de reflexão do atual trabalho, ou seja, como ampliar a compreensão sobre as questões que ocorrem no cotidiano dessas relações (Campo B), visando ampliar o olhar do Estado/ANS, para que estabeleça uma nova intervenção nesse espaço, atuando sobre o Modelo de Assistência praticado (Figura 2). Poderíamos sintetizar as seguintes hipóteses frente às características do modelo assistencial praticado pela Saúde Suplementar no país: 1. As operadoras podem se constituir enquanto gestoras do cuidado. 2. As operadoras e os prestadores têm desenvolvido mecanismos micro-regulatórios para sobreviver ao mercado e à regulação da ANS. 16

3. A existência de mecanismos de regulação resulta na fragmentação do cuidado centrado na lógica dos contratos. 4. Para o consumidor estes mecanismos resultam na não integralidade da assistência. 5. O mercado em Saúde Suplementar não trabalha com o conceito de produção da saúde, mas com a idéia de evento/sinistralidade. 6. A hipótese de que as operadoras podem ser gestoras do cuidado e que isto pode ser regulado, não se sustenta na atual configuração do mercado e na prática regulatória vigente na Saúde Suplementar. 7. As atividades de promoção à saúde, realizadas pelas operadoras, não são estratégias para intervenção na perspectiva de um modelo mais integral de atenção, mas predominantemente estratégias de marketing. 8. As operadoras estão operando com mecanismos de seleção de riscos, apesar da Lei 9656/98. 9. O mercado opera com variáveis para identificação de riscos, que não são as mesmas da saúde pública, dando prioridade aos cálculos econômicos e financeiros. (JORGE, 2003). A importância desse mapeamento consiste na caracterização das tendências dos atores em cena, seus tensionamentos, e disputas, fundamentando uma nova intervenção do Estado nessa relação. Pretende-se construir competência para exercer a regulação no campo da regulação operativa (que é fortemente auto-regulada), ou seja, atuar no espaço da micro-regulação do mercado de saúde. Esse campo se apresenta como um campo de disputas e negociações, configurando um território instável e em constantes deslocamentos (CECÍLIO, 2003). Implica aproximar-se do objeto em questão, e propiciar o diálogo com as hipóteses formuladas. Para esse percurso, iremos buscar discutir o conceito de Modelo Assistencial, enfocando as disputas colocadas, o desenho da linha de cuidado esperada e a micropolítica do trabalho em saúde. A revisão pretende ampliar a compreensão dos atores em disputa, possibilitando a perspectiva futura de atuar no processo de micro-regulação da produção do cuidado, visando a melhoria do acesso, da integralidade e da qualidade da assistência prestada. 17

Modelo Assistencial na Saúde Suplementar Modelo Assistencial, na literatura que trata especificamente da Saúde Suplementar, é um assunto pouco discutido e investigado, embora a temática esteja presente na legislação que regulamenta o subsetor, onde o modelo assistencial aparece como atribuição do Conselho Nacional de Saúde Suplementar (CONSU). A Lei 9656/98 traz no seu "Art. 35", o seguinte texto: "Fica criado o Conselho Nacional de Saúde Suplementar CONSU, órgão colegiado integrante da estrutura regimental do Ministério da Saúde, com competência para deliberar sobre questões relacionadas à prestação de serviços de Saúde Suplementar nos seus aspectos médico, sanitário e epidemiológico e, em especial: I - regulamentar as atividades das operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde, no que concerne aos conteúdos e modelos assistenciais, adequação e utilização de tecnologias em saúde (BRASIL, 1998). Na Lei 9.961/00, alterada pela MP No. 2.097-36, de 26.01.01, o tema de modelos assistenciais aparece novamente, no Capítulo I - artigo 4 o. que trata da competência da ANS, há o seguinte texto: XLI fixar as normas para constituição, organização, funcionamento e fiscalização das operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o parágrafo 1 o. do art. 1 o. da Lei 9656, incluindo: a) conteúdos e modelos assistenciais (BRASIL, 2000b). Verifica-se, portanto, que é objeto tanto do CONSU, quanto da ANS, a regulação dos modelos assistenciais da Saúde Suplementar, embora os textos publicados, que tratem do tema, se preocupem, principalmente, com as discussões relacionadas ao financiamento, gestão e regulação geral. A despeito desta situação, a Saúde Suplementar não deixa de determinar e operar modelos de atenção. Modelo assistencial consiste na organização das ações para a intervenção no processo saúde-doença, articulando os recursos físicos, tecnológicos e humanos, para enfrentar e resolver os problemas de saúde existentes em uma coletividade. Podem existir modelos que desenvolvam exclusivamente intervenções de natureza médico-curativa e outros que incorporem ações de promoção e prevenção; e ainda há modelos em que seus serviços simplesmente atendem às demandas, estando sempre aguardando os casos que chegam espontaneamente ou outros que atuam ativamente sobre os usuários, independentemente de sua demanda (PAIM, 1999). 18

Autores como Merhy et al (1992) discutem a dimensão articulada dos saberes e da política na determinação da forma de organizar a assistência: "Modelo Técnico Assistencial constitui-se na organização da produção de serviços a partir de um determinado arranjo de saberes da área, bem como de projetos de ações sociais específicos, como estratégias políticas de determinado agrupamento social. Entendemos desse modo, que os modelos tecnoassistenciais estão sempre apoiados em uma dimensão assistencial e tecnológica, para expressar-se como projeto de política, articulado a determinadas forças e disputas sociais (MERHY et al, 1992). Merhy et al (1992) consideram que os modelos tecno-assistenciais se apresentam como projetos de grupos sociais, formulados enquanto projetos tecno-assistenciais, para serem implementados enquanto estrutura concreta de produção de parte das ações de saúde, realizando-se de forma pura ou incorporando propostas de outros projetos. Esses projetos tecno-assistenciais apóiam-se em conhecimentos e saberes que definem o que é problema de saúde, como devem ser as práticas de saúde, para que servem e como devem ser organizadas tais práticas, quais serão os trabalhadores necessários e para quais pessoas estão dirigidas. A conformação desses modelos expressa uma dada forma de poder político e, portanto, uma dada conformação do Estado e de suas políticas, que pressupõem a construção de uma visão dos outros modelos, seja para a disputa enquanto projeto, seja como estratégia de sua manutenção. Campos (1992) considera modalidade assistencial ou modelos tecnológicos, como partes integrantes de um certo modelo tecno-assistencial. Por sua vez, modalidades assistenciais ou modelos tecnológicos se prestarão para designar as várias partes constitutivas de um dado modo de produção, sempre combinadas segundo um sentido determinado pela totalidade do modelo. Combinações que, por sua vez, tenderiam alterar as características arquetípicas (tipos ideais) de cada modalidade ou modelo tecnológico: clínico ou epidemiológico, estatal ou privado, produção de serviços segundo a lógica liberal ou assalariado, da pequena produção ou de empresas etc (CAMPOS, 1992:37). Para efeito desse trabalho adotaremos a compreensão de Merhy et al (1992), assumindo que os modelos assistenciais incorporam uma dimensão articulada de 19

saberes e tecnologias de dados grupos sociais que, apoiados na dimensão política, disputam dada forma de organizar a assistência. Visando analisar os modelos assistenciais a partir da sua matriz discursiva, tomamos os autores Silva Jr (1998) e Reis (2002) que se referenciam na compreensão de Merhy et al (1992) sobre o tema. O primeiro analisando os modelos tecnoassistenciais formulados pelo campo da Saúde Coletiva Brasileira (SILOS - Bahia, Cidade Saudável de Curitiba e Em Defesa da Vida do LAPA - UNICAMP), estabelece uma comparação com o modelo tecno-assistencial hegemônico (liberalprivatista/neoliberal) e propõe uma matriz analítica. Nessa matriz, o autor compara os modelos segundo as seguintes dimensões: concepção da saúde e doença, integralidade na oferta das ações, regionalização e hierarquização de serviços e articulação intersetorial. Reis (2002), por sua vez, analisa os modelos tecno-assistenciais em Belo Horizonte, desde o início do século XX e propõe uma matriz analítica com o objetivo de caracterizar cada um dos modelos ao longo desse período, abordando o ator (quem institui o modelo), os objetivos, as políticas, saberes e tecnologias, organização e assistência. Na visão do autor, a matriz proposta, não pode ser tomada como um somatório de partes que caracterizam os modelos tecnoassistenciais. Essas dimensões não teriam vida própria, mas constituiriam práxis sociais, de sujeitos sociais, em constante processo de interação (disputas, criação de consensos, hegemonia). As dimensões se interpenetram e se condicionam mutuamente, constituindo articulações concretas, sociais e históricas, das dimensões política, tecnológica, organizativa e assistencial que possibilitam analisar os modelos tecnoassistenciais constituídos. Visando analisar os modelos assistenciais em Saúde Suplementar propõe-se uma matriz comparativa dos segmentos (Cooperativas Médicas, Empresas de Medicina de Grupo, Auto-gestões e Seguradoras), que aborda o ator (quem institui o modelo), os objetivos, as políticas, saberes e tecnologias, organização e assistência prestada. O Quadro 1 apresenta a matriz com as dimensões analíticas propostas. Os objetivos são entendidos como a definição dos propósitos que instituem o segmento. A dimensão da política pretende caracterizar os atores implicados em cada segmento e seus interesses disputantes, estabelecendo um mapa das relações entre os diversos atores e verificando os graus de tensão entre os mesmos e as pactuações existentes 20