Análise fonológica da entoação: estudo constrastivo entre o português e o espanhol Kelly Cristiane Henschel Pobbe de Carvalho (FCL/ UNESP-Assis) Introdução Este trabalho consiste na apresentação de um breve estudo de natureza contrastiva e instrumental da entoação do português e do espanhol, com fins de aplicações didáticas. A entoação é normalmente definida como a curva melódica que acompanha os segmentos fônicos nos enunciados. Em termos fonético-acústicos, a entoação corresponde às variações de freqüência fundamental, que determinam a altura musical do tom dos segmentos ao longo do enunciado. Suas funções, segundo Quilis (1981), encontram-se em três níveis: lingüístico (funções distintiva, integradora e demarcativa), sociolingüístico e expressivo. Sosa (1999), nesse mesmo sentido, distingue dois tipos de significados que podem ser transmitidos pela entoação: um denominado lógico, com implicações semânticas nas orações; e outro emocional, baseado nos estados emocionais do falante: os falantes têm representações mentais da composição dos contornos melódicos das locuções que utilizam em sua língua e a entoação não é unicamente um veículo para expressar estados emotivos (SOSA, 1999, p. 24). Embora não seja muito simples estabelecer os limites entre o lingüístico e o não-lingüístico em termos entonativos, tencionamos, com este trabalho, observar algumas configurações melódicas do português e do espanhol, seguindo uma 2833
orientação fonológica, ou funcional-distintivo-sistemática, com o objetivo de descrever, caracterizar e comparar alguns contornos melódicos nas duas línguas. Interessa-nos definir quais são as unidades propriamente tonais que caracterizam a entoação em alguns exemplos de interrogativas totais. Além disso, nosso objetivo é descrever, caracterizar e comparar esses contornos melódicos nas duas línguas, com o intuito de observar semelhanças e diferenças entre os dois sistemas. Para tanto, nos baseamos, pois, na teoria fonológica da entoação proposta por Sosa (1999), que parte das seguintes premissas: a) a entoação é significativa, pode diferenciar significados (semântico ou pragmático) em enunciados idênticos formalmente; b) a entoação é sistemática: existe um número limitado de padrões entonacionais em cada língua, que são usados para produzir efeitos semânticos definidos; c) a entoação é característica: padrões melódicos usados para certos tipos oracionais, muitas vezes, diferem de um dialeto para o outro ou de uma língua para outra; e d) o texto ou discurso divide-se em unidades melódicas ou grupos melódicos, que, por sua vez, são definidos pelos tonemas e tons de juntura. Essa teoria procura explicar a competência, que por meio de representações formais e certas convenções e regras, permite gerar os contornos melódicos das línguas. Como parte essencial de todo estudo sobre a entoação, utilizamos a análise acústica e computadorizada fornecida pelo programa Multi-Speech. Esse programa computadorizado possibilita a obtenção das ondas sonoras representadas graficamente em forma de curvas, que revelam as variações de altura da voz durante a emissão dos enunciados. Os enunciados que constituem o corpus de análise deste trabalho foram obtidos por meio de gravações de textos lidos por informantes das duas línguas. Este estudo, obviamente, tem aplicações práticas no ensino do espanhol como língua estrangeira, pelo contraste que estabelece em relação a alguns padrões 2834
melódicos do português e do espanhol e pelo uso de uma notação fonológica da entoação, acompanhada de meios visuais. 1. Análise A comparação que propomos, a seguir, baseia-se, como já mencionamos anteriormente, no trabalho de Sosa (1999) que, por sua vez, parte dos princípios teóricos do modelo auto-segmental propostos por Pierrehumbert (1980). Nesse modelo, a análise fonológica da entoação deve considerar, além das quatro premissas mencionadas em nossa introdução, três parâmetros básicos: 1) a maneira como se dividem as orações em grupos melódicos unidades prosódicas cujos domínios limitam à direita com um tonema, que, por sua vez, é o conjunto de tons que marcam o final do enunciado e que coincide com as sílabas finais a partir daquela sobre a qual recai o último acento ; 2) quais são as sílabas acentuadas e não acentuadas em um grupo melódico; 3) a representação dos tons ou da melodia que constitui o contorno melódico; para isso é necessário distinguir entre os tons associados às sílabas acentuadas e as adjacentes não acentuadas ( acentos tonais ) e os tons dos extremos do grupo melódico ( tons de juntura ) (SOSA, 1999, p. 31 e 33). Nesse modelo, o sistema abstrato das representações subjacentes equivalentes aos contornos melódicos consiste de apenas dois níveis tonais: alto (H) e baixo (L). Os tons H e L, individualmente ou conjugados, integram os chamados acentos tonais, que estão associados unicamente às sílabas acentuais do texto. Assim sendo, todas as seqüências tonais e padrões entonacionais associados às sílabas proeminentes do discurso são descritas a partir desses elementos. Os contornos finais de cada grupo melódico, os tonemas, também são descritos a partir dos mesmos acentos tonais, com o auxílio de um tom extra, designado por Sosa de tom de juntura (H% e L%). 2835
De acordo com Sosa, pois, para que a teoria da entoação do espanhol seja adequada, do ponto de vista descritivo, deve incluir, além de uma especificação dos tipos de tons possíveis, informações sobre quais são as sílabas acentuadas e uma caracterização de qual é o material tonal associado a essas sílabas proeminentes. Como ilustração, contrastamos, a seguir, um modelo entonacional do português e do espanhol o das interrogativas totais, que revela alguns aspectos importantes a serem considerados no processo de ensino/ aprendizagem ou do português para hispano-falantes ou do espanhol para luso-falantes. A comparação também revela como a teoria proposta pode facilitar a compreensão da entoação nas duas línguas. Nas figuras abaixo, é necessário observar que: na primeira janela das figuras, são apresentados os oscilogramas (a forma da onda sonora correspondente ao enunciado); na segunda janela, é apresentada a análise espectrográfica; e, finalmente, na terceira janela (C), estão as curvas de entoação. Fig. 1: Você está contente? Fig. 2: Estás contento? 2836
As interrogativas absolutas (ou totais) são aquelas que não possuem partículas interrogativas (pronomes interrogativos); são as perguntas para as quais esperamos apenas uma reposta do tipo sim/ não (em espanhol) ou a retomada do verbo em forma pessoal (em português). A entoação aqui desempenha sua função significativa, pois, na falta do pronome, ela indica que o enunciado é interrogativo e não declarativo. Podemos observar, a partir das configurações melódicas ou representações fonéticas (figs. 1 e 2) dos enunciados acima, um marcado contraste entre o português e o espanhol: em português, temos finalização do movimento com fundamental ascendente-descendente; em espanhol, temos finalização com fundamental apenas ascendente. Numa descrição fonologicamente orientada, podemos, a partir dos dados, estabelecer a seguinte representação de tons, com base no modelo proposto por Sosa (1999): português brasileiro: Você L+H* está contente? L+H*+L% espanhol colombiano: Estás contento? L*+H L*+H H% 2837
Nos exemplos seguintes, também de interrogativas absolutas ou totais, esse contraste parece anular-se; o que se explica, segundo Quilis (1988, p. 64), pela mudança de tonicidade na última palavra do enunciado: quando a última sílaba do enunciado interrogativo absoluto é tônica, observamos, pela representação fonética, tanto para o português como para o espanhol, a finalização do movimento melódico com fundamental ascendente. Nessa perspectiva, orações terminadas em oxítonas e paroxítonas, em português, apresentam configurações melódicas distintas: final descendente nas paroxítonas, e ascendente nas oxítonas. Fig. 3: Você mora aqui? Fig. 4: Vives aquí? 2838
No entanto, como bem adverte Sosa (1999, p. 105), numa descrição fonológica da entoação é mais coerente interpretar que o tom de juntura baixo (L%), presente nas interrogativas totais (do português), se reduz foneticamente, do que afirmar que é aleatório e que somente se evidencia em determinadas circunstâncias, quando há sílabas não acentuadas depois do núcleo, ao contrário do que ocorre, como se observa, com palavras oxítonas. Assim sendo, seguindo a interpretação fonológica aqui proposta, consideramos que tanto os enunciados terminados em oxítonas como em paroxítonas apresentam, em português, contornos finais descendentes, marcados pelo tom de juntura (L%), que na ausência de material silábico não se manifestam claramente na curva melódica. Numa representação fonológica, mantém-se, portanto, o contraste entre as duas línguas: português brasileiro: Você mora aqui? L+H* L+H*+L% espanhol colombiano: Vives aquí? L*+H L*+H H% 2. Considerações finais A descrição com base em modelos fonológicos, como vimos, contribui para a compreensão de aspectos da entoação que não se explicam simplesmente pela consideração de sua representação fonética. Esse estudo, obviamente, não pretende ser conclusivo, mas aponta para a necessidade de se considerar, no contexto de ensino aprendizagem de língua espanhola, especificamente no que diz respeito à habilidade da expressão oral ou aquisição da pronúncia, os aspectos prosódicos, tão importantes quanto os segmentos 2839
fônicos, e que constituem elementos fundamentais para garantir melhor proficiência oral, pois desempenham importantes funções lingüístico-expressivas. Como bem afirma D Introno (em sua apresentação à obra de Sosa (1999, p. 13)): Falar uma língua não implica somente concatenar sons, morfemas e palavras em orações e entender o significado de cada morfema, palavra ou oração formada, implica também cantar nessa língua: ao falar uma oração o falante não só articula os sons consonânticos e vocálicos nela contidos, também lhe confere uma melodia e um ritmo. Referências D INTRONO, Francesco et al. Fonética y fonología actual del español. Madrid: Cátedra, 1995. QUILIS, Antonio. Funciones de la entonación. BFUCh, v. 31, p. 443-460, 1980/ 1981.. Fonética acústica de la lengua española. Madrid: Gredos, 1981.. Estudio comparativo entre la entonación portuguesa (de Brasil) y la española. Revista de Filología Española, Madrid, tomo 68, n. 1-2, 1988. SOSA, Juan Manuel. La entonación del español: su estructura fónica, variabilidad y dialectología. Madrid: Cátedra, 1999. 2840