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Transcrição:

Tratar o doente e não os factores de risco. Abordagem em diversos subgrupos Introdução Evangelista Rocha Professor convidado da Faculdade de Medicina de Lisboa. Regente de Epidemiologia/Epidemiologia Clínica na licenciatura em Medicina, na licenciatura em Microbiologia e na licenciatura em Dietética e Nutrição (FML). Cardiologista do Hospital Militar Principal Assistente Graduado (Consultor), Coordenador da Prevenção Cardiovascular da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Autor de 100 publicações. Publicação baseada na Comunicação no Curso Risco Cardiometabólico". Encontro Renal 2009. Reunião Anual do GERCV, Vilamoura 2009. Revista Factores de Risco, Nº16 JAN-MAR 2010 Pág.46-51 O tratamento é qualquer intervenção que pode incluir medicamentos, aconselhamento ou a cirurgia, com o objectivo de melhorar a evolução de uma entidade patogénica. A decisão de o instituir baseia-se na evidência científica para a qual contribuem investigações das ciências biológicas (anatomia, fisiologia, bioquímica, farmacologia, genética molecular), das ciências clínicas e da epidemiologia. Por sua vez, as Recomendações (Guidelines) que constituem um guia cada vez mais adoptado na prática clínica baseiam-se na avaliação da evidência científica, em particular nas medidas de efeito obtidas em ensaios clínicos. A decisão clínica tradicional baseia-se fundamentalmente na eficácia da terapêutica para controlar a evolução de uma doença (específica), isto é, melhorar o seu prognóstico. Este princípio continua a ser válido em muitas situações mas, quando se trata do risco cardiometabólico, a decisão clínica é influenciada por uma plêiade de factores. Com efeito, o conceito cardiometabólico define- -se por um conjunto de características que se associam ao desenvolvimento da diabetes tipo 2 e da doença cardiovascular. Neste caso, o tratamento visa reduzir a morbilidade e mortalidade das doenças cardiovasculares de natureza aterosclerótica, ou seja controlar o desenvolvimento da aterogénese. Por isso, a estratégia terapêutica e comportamental visa controlar os factores de risco modificáveis cuja presença, na base da evidência científica, aumenta a probabilidade de um indivíduo desenvolver um evento cardiovascular aterosclerótico, num período de curto ou médio prazo, em qualquer dos territórios arteriais. Risco cardiovascular global Na sequência de estudos epidemiológicos e clínicos, na área do risco e da terapêutica, foram definidas recomendações para uma melhor qualidade da prática clínica e do tratamento dos doentes na Europa, isto é, para a prevenção da doença cardiovascular (1). Uma das primeiras recomendações destas Guidelines é a avaliação do risco cardiovascular global. Em que factores se fundamenta a necessidade da sua aplicação? A doença cardiovascular é multifactorial, determinada por factores ambientais, dietéticos, biológicos, genéticos, à semelhança de outros problemas de saúde (cancro, doenças auto-imunes, perturbações mentais, diabetes). Existem evidências de que a doença cardiovascular resulta de mecanismos epigenésicos que são influenciados por factores e processos: desenvolvimento (in utero, na infância), substâncias químicas ambientais, medicamentos, envelhecimento, dieta. Estes marcadores que estão em adição à genética, base molecular tradicional da hereditariedade, são características 46 Recebido para publicação: Dezembro de 2009 Aceite para publicação: Dezembro de 2009

Revista Factores de Risco, Nº16 JAN-MAR 2010 Pág.46-51 reactivas, mais que pró-activas que definem o conceito de epigenética (epigenetics). Por isso, a medição de um factor de risco individual não permite estimar de modo adequado o risco global cardiovascular. Por outro lado, muitos indivíduos têm níveis pouco elevados de factores de risco que, em conjunto, podem representar um nível inesperadamente elevado de risco cardiovascular. Na verdade, os factores de risco, em regra, agrupam-se, interagem sinergicamente, por vezes de forma exponencial, e o risco é variável em função destes componentes. A avaliação multivariável do risco cardiovascular é, portanto, uma necessidade, importante para optimizar a decisão sobre o início do tratamento, motivar os indivíduos em risco a aderir às orientações e modular a intensidade da intervenção. Avaliação do Risco Na prática clínica é comum dizer-se que cada doente é um doente, no sentido de que os doentes com problemas de saúde comuns podem ter particularidades que os distinguem no diagnóstico, tratamento e prognóstico. Isto mesmo se aplica na avaliação do risco cardiometabólico e na decisão terapêutica, procedimentos que não se podem dissociar das boas práticas clínicas, na medida em que se inter-relacionam. Contudo, é consensual que os indivíduos de risco acrescido alto ou muito alto são os que beneficiam mais dos esforços preventivos e de uma estratégia de alto-risco. Como avaliar então o risco da doença cardiovascular, caracterização fundamental antes de se fazer a opção de tratamento, e que casos o justificam? Segundo as referidas Guidelines (1), as prioridades para a prevenção cardiovascular na prática clínica são: os doentes com doença cardiovascular aterosclerótica confirmada; os indivíduos assintomáticos com múltiplos factores de risco resultando num risco global de doença cardiovascular aumentado ( 5% risco de morte por doença cardiovascular a 10 anos); os casos de diabetes tipo 2 e tipo 1 com microalbuminúria; ou com factores de risco isolados significativamente elevados, principalmente se associados a lesão de órgão alvo, e os familiares próximos de indivíduos com doença cardiovascular aterosclerótica prematura (H <55 anos; M <65 anos). Embora alguns destes grupos, nomeadamente os casos de doenças cardiovasculares e/ou diabetes, dispensem o cálculo de risco pois já são considerados de alto risco, para avaliar o risco cardiovascular em indivíduos assintomáticos foram desenvolvidos diversos modelos, qualquer deles baseado numa análise de risco multifactorial em populações seguidas durante vários anos. Na Europa aplicam-se as tabelas SCORE (Systematic Coronary Risk Evaluation) (1,2) e a versão electrónica (HeartScore) (3), tendo sido recomendada para Portugal a tabela de baixo risco. As Recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia foram adoptadas pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia (4) e reconhecidas/recomendadas pela Direcção Geral da Saúde - Circular Normativa nº 06 /DSPCS (Direcção de Serviços de Prestação de Cuidados de Saúde/Divisão da Qualidade), de 18 de Abril de 2007. "...os indivíduos de risco acrescido alto ou muito alto são os que beneficiam mais dos esforços preventivos e de uma estratégia de alto-risco." Início e intensidade da terapêutica farmacológica Apesar das vantagens da avaliação global do risco para definir opções terapêuticas farmacológicas, como o risco é um contínuo, há, por vezes, dificuldade em definir com rigor um valor rígido limiar (cutoff) a partir do qual um medicamento deve ser iniciado, na perspectiva do controlo de um factor de risco específico. Além disso, na prática clínica é, muitas vezes, difícil, em termos de exequibilidade, atingir o objectivo terapêutico que está recomendado para cada um dos factores de risco. Isso depende principalmente do grau de risco inicial, da resposta terapêutica individual, da inércia clínica, da intensidade da prescrição, dos efeitos adversos e dos custos. Acresce que a fixação neste tipo de objectivo parece promover a prevenção baseada na abordagem de um factor de risco isolado, quando o objectivo é reduzir o risco global. É óbvio que a gestão do risco global passa pelo controlo dos diversos componentes de risco e para isso existem recomendações em que estão definidos os alvos terapêuticos. Porém, embora este tipo de gestão, baseada no controlo de um factor de risco, tenha algum impacto no risco global cardiovascular, a majoração do benefício dependerá também do controlo de outras características de risco e da intensidade terapêutica. Com base neste tipo de argumentos e limitações, a focalização do médico deve ser mais no tratamento dos doentes do que em atingir os alvos terapêuticos relativamente a um factor de risco. É segundo estes princípios e lógica que se têm definido as orientações para a prevenção cardiovascular na prática clínica, mesmo em relação aos sub-grupos, quer ao nível do escalão primário, quer ao nível do escalão secundário. Pode dizer- -se, em resumo, que o objectivo geral da prevenção, com a implementação e intensificação de medidas farmacológicas e comportamentais, é procurar atingir os valores mais próximos dos recomendados, de modo a reduzir o 47

Tratar o doente e não os factores de risco. Abordagem em diversos subgrupos mais possível o risco residual global, atribuível às limitações terapêuticas e aos factores não modificáveis. Abordagem de Subgrupos As Recomendações Europeias para a prevenção cardiovascular reconhecem diversos subgrupos, definidos segundo consumo de tabaco, obesidade e excesso de peso, actividade física (sedentariedade), pressão arterial, lípidos plasmáticos (dislipidémia), diabetes e síndrome metabólica, factores psicosociais, marcadores inflamatórios e factores hemostáticos, factores genéticos, lesões subclínicas em doentes assintomáticos de alto risco, insuficiência renal, diferenças de género (1). Na impossibilidade de abordar as orientações terapêuticas em tantos subgrupos, optou-se por seleccionar o grupo dos hipertensos e dos diabéticos, especificando alguns aspectos da avaliação diagnóstica, no âmbito de estratificação de risco, e os objectivos terapêuticos. A hipertensão arterial e a diabetes, com frequência coexistentes, pela sua dimensão (prevalência e repercussão social) justificaram a elaboração de Guidelines, embora estas duas doenças já sejam constituintes da estrutura de avaliação do risco e da estratégia de prevenção cardiovascular. Por outro lado, é de salientar que os factores de risco cardiovascular também fazem parte do algoritmo da estratificação de risco destas doenças e, por conseguinte, do processo de identificação de vários subgrupos. No Quadro I indicam-se as variáveis clínicas mais comuns Quadro I Factores que influenciam o prognóstico variáveis clínicas a utilizar para estratificar o risco cardiovascular global Factores de Risco Lesão subclínica de órgão - Níveis de pressão arterial sistólica e diastólica - Hipertrofia ventricular esquerda (ECG: Sokolow-Lyon >38 mm; Cornell > 2440 mm/ms) - Níveis de pressão do pulso (nos idosos) - Hipertrofia ventricular esquerda (ECO: Índice de massa ventricular esquerda: H>125g/m 2, M >110g/m 2 ) - Idade (H> 55 anos; M> 65 anos) - Espessamento da parede da carótida (IMT>0,9 mm) ou placa - Tabagismo - Velocidade da onda do pulso carótida-femoral > 12 m/s - Dislipidémia - Índice de pressão arterial tornozelo/braço <0,9 - Colesterol total> 190 mg/dl ou: - LDL-C> 115 mg/dl ou: - HDL-C: H< 40 mg/dl, M< 46mg/dl ou: - Triglicéridos> 150 mg/dl) - Glicémia em jejum alterada (102-125 mg/dl) - Aumento ligeiro da creatinemia: H: 1,3-1,5 mg/dl; M: 1,2-1,4 mg/dl - Teste de tolerância à glucose oral anormal - Taxa estimada de filtração glomerular baixa (<60 ml/min/1.73 m 2 ) ou depuração da creatinina <60 ml/min - Obesidade abdominal (perímetro da cintura > 102 cm(h), >88 cm(m) - História familiar de doença cardiovascular prematura (H<55 anos; M < 65 anos) Diabetes Mellitus - Glucose plasmática em jejum 126 mg/dl em doseamentos sucessivos, ou - Microalbuminúria 30-300 mg/24 h ou rácio albumina/creatinina: 22 (H); 31 (M) mg/g de creatinina Doença cardiovascular ou doença renal estabelecida - Doença cerebrovascular: acidente vascular cerebral isquémico; hemorragia cerebral; acidente isquémico transitório - Doença cardíaca: enfarto do miocárdio; angor; revascularização miocárdica; insuficiência cardíaca - Glucose plasmática pós-prandial > 198 mg/dl - Doença renal: nefropatia diabética; insuficiência renal (creatinina sérica H >133, M>124 mmol/l; proteinúria (>300 mg/24 h) - Doença arterial periférica - Retinopatia avançada: hemorragias ou exsudados; edema papilar Fonte: (5) 48

Revista Factores de Risco, Nº16 JAN-MAR 2010 Pág.46-51 que se utilizam para estratificar o risco e que integram as Recomendações para o Controlo da Hipertensão Arterial (5). São baseadas nos factores de risco (demográficos, antropométricos, história familiar de doença cardiovascular prematura, pressão arterial, consumo de tabaco, níveis da glicose e dos lípidos), medidas de lesão de órgão alvo, e diagnóstico da diabetes e outras condições clínicas associadas. Esta caracterização é importante para a decisão sobre a estratégia terapêutica (início de terapêutica farmacológica para a redução da pressão arterial, objectivos do tratamento, selecção de fármacos anti-hipertensores, utilização de terapêutica combinada, ou seja necessidade de outro tipo de fármacos para controlar os factores de risco e/ou doenças co-existentes). Na Figura 1 definem-se os parâmetros que orientam a iniciação do tratamento anti-hipertensor. O início do tratamento para a redução da pressão arterial deve decidir-se com base no nível da pressão arterial sistólica e diastólica e do nível de risco cardiovascular global. O tratamento deve ser imediato na hipertensão de grau 3, assim como nos graus 1 e 2 quando o risco global é alto ou muito alto. Com efeito, a estratégia do tratamento pode passar por não intervir na pressão arterial, por alterações do estilo de vida, isoladas, durante várias semanas ou vários meses, na tentativa de controlar a pressão arterial, ou associadas a tratamento farmacológico e por tratamento imediato. Relativamente ao controlo dos hipertensos, as recomendações mais recentes incluem elementos sobre o início do tratamento, a escolha dos medicamentos, contemplando condições especiais, ou seja subgrupos de doentes, tais como idosos, diabetes mellitus, doença renal, doença cerebrovascular, cardiopatia isquémica, insuficiência cardíaca, fibrilhação auricular, sexo feminino, disfunção eréctil (6). As Recomendações para melhorar a qualidade da prática clínica e o tratamento dos doentes diabéticos na Europa incluem sugestões para o controlo da glicose de acordo com a situação glucometabólica: hiperglicémia pós- Figura 1 Início do tratamento anti-hipertensor Fonte: (5) 49

Tratar o doente e não os factores de risco. Abordagem em diversos subgrupos Quadro II Objectivos do tratamento de doentes com diabetes e DAC Variável Objectivo Pressão arterial Controlo glicémio Perfil de lípidos mmo/l (mg/dl) Aconselhamento sobre o estilo de vida Sistólica/diastólica (mmhg) < 130/80 Em caso de disfunção renal ou proteinuria > 1g/24h < 125/75 HbA1c(%)* 6,5 Glicose plasmática mmol/l (mg/dl) Em jejum < 6,0 (108) Pós-prandial (pico) Diabetes tipo 1 7,5-9,0 (135-160) Diabetes tipo 2 < 7,5 (135) Colesterol total < 4,5 (175) Colesterol LDL 1,8 (70) Colesterol HDL Homens > 1,0 (40) Mulheres > 1,2 (46) Triglicéridos** < 1,7 (150) Colesterol total/hdl** < 3 Abandono do tabagismo Obrigatório Actividade física regular (min/dia) > 30-45 Controlo de peso IMC (kg/m 2 ) < 25 Perda de peso em caso de excesso de peso (%) 10 Cintura (óptima; consoante etnia; cm) Homens < 94 Mulheres < 80 Hábitos alimentares Consumo de sal (g/dia) < 6 Consumo de fibras > 30 g/dia Monossacarídeos e dissacarídeos Evitar Consumo de gorduras (% da energia alimentar) 30-35 Saturadas < 10 Gorduras-trans < 2 Polinsaturadas n-6 4-8 Polinsaturadas n-3 2 g/dia de ácido linolénico e 200mg/dia de ácidos gordos de cadeia longa. Fonte: (7) prandial, hiperglicémia em jejum, resistência à insulina e deficiência de insulina. Além do estilo de vida, descrito no Quadro II, indicam as opções de tratamento farmacológico em doentes com diabetes tipo 2, com indicação da eficácia média na redução da HbA1c. A abordagem do tratamento abrangente dos doentes com diabetes também inclui o controlo da dislipidémia, da pressão arterial e o tratamento da doença cardiovascular. É consensual que um diabético com uma doença do aparelho circulatório concomitante enfrenta um risco elevado de complicações. Por isso, constitui um subgrupo que justifica objectivos terapêuticos específicos relativamente ao nível da pressão arterial, do controlo da glicémia e dos lípidos Quadro II. Pode dizer-se que o objectivo da prevenção cardiovascular é conseguir que os indivíduos com baixo risco cardiovascular assim se mantenham ao longo da vida e ajudar os indivíduos com risco global cardiovascular acrescido a reduzirem-no. Nesse sentido, as Recomendações definem objectivos terapêuticos diferenciados segundo o escalão de prevenção e o grau de risco. A recomendação é para se conseguir o controlo mais rigoroso dos factores de risco nos indivíduos de alto risco, especialmente 50

Revista Factores de Risco, Nº16 JAN-MAR 2010 Pág.46-51 aqueles com doença cardiovascular aterosclerótica comprovada ou diabetes. Para isso, uma estratégia terapêutica para ter mais eficácia, além do tratamento da pressão arterial, dos lípidos e das alterações do metabolismo da glicose, tem de incluir o controlo de outros factores com impacto no risco: obesidade, sedentarismo, síndrome metabólica. Obviamente que o objectivo da terapêutica é controlar todos os componentes de risco com impacto no risco total dos nossos doentes (tabagismo, pressão arterial, lípidos, obesidade, diabetes, etc). Porém, se o controlo perfeito de um factor de risco for difícil (por exemplo, o controlo da pressão arterial nos idosos), o risco total cardiovascular ainda pode ser diminuído reduzindo simultaneamente outros factores de risco tais como o colesterol no sangue ou o consumo de tabaco. O doente e o médico devem discutir a estratégia, envolvendo os aconselhamentos, tratamentos, recursos, calendários, valores e escolhas do doente. Em suma, os médicos tratam pessoas e não factores de risco isolados. Evangelista Rocha Referências Bibliográficas: 1. Graham I, Atar D, Borch-Johnsen K, Boysen G, Burell G, Cifkova R, et al. European guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice: executive summary. Fourth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and other societies on cardiovascular disease prevention in clinical practice (constituted by representatives of nine societies and by invited experts). Eur J Cardiovasc Prev Rehabil 2007; 14 (Suppl 2):E1 E40. 2. Abreu-Lima C. Avaliação global do risco. Aplicação do sistema SCORE. Rev Factores de Risco 2009; 4(15): 86-94. 3. www.heartscore.org 4. Recomendações Europeias para a Prevenção da Doença Cardiovascular. Comissão para as Recomendações Práticas para uma melhor qualidade da prática clínica e do tratamento dos doentes na Europa. Prevenção da Doença Cardiovascular. Quarto Grupo de Trabalho conjunto das Sociedades Europeias para a Prevenção da Doença Cardiovascular na Prática Clínica. Tradução: Traversões. Revisão: Evangelista Rocha, Cândida Fonseca, Hugo Madeira. 5. Mancia G, De Backer G, Dominiczak A, Cifkova R, Fagard R, Germano G, et al. 2007 Guidelines for the Management of Arterial Hypertension: The Task Force for the Management of Arterial Hypertension of the European Society of Hypertension (ESH) and of the European Society of Cardiology (ESC). J Hypertens 2007; 25:1105 1187. 6. Mancia G, Laurent S, Agabiti-Rosei E, Ambrosioni E, Burnier M, Caulfield MJ, et al. Reappraisal of European guidelines on hypertension management: a European Society of Hypertension Task Force document. J Hypertens 2009; 27:001 038. 7. Rydén L, Standl E, Bartnik M, den Berghe V, Betteridge J, de Boer MJ, et al. Guidelines on Diabetes, Pre-Diabetes, and Cardiovascular Diseases. The Task Force on Diabetes and Cardiovascular Diseases of the European Society of Cardiology and of the European Association for the Study of Diabetes. Eur Heart J 2007; 28: 88-136. 51