Resenha. Ênio José da Costa Brito *

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Resenha REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: Irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011. 416p. ISBN 978-85-7939-082-1 Ênio José da Costa Brito * As pesquisas envolvendo as irmandades no período da Colônia e do Império espelham o dinamismo e a evolução da pesquisa historiográfica no Brasil. Olhar o percurso feito e o perfil interpretativo presente nas publicações relacionadas com o tema é surpreender-se sempre. O horizonte analítico tem se alargado desde o segundo quartel do século XX, tentando detectar os aspectos sóciopolítico e religiosos da única instituição organizada e dirigida por escravos e libertos nas sociedades escravistas. Para J.R. Russell Wood, as irmandades eram uma instituição portadora das aspirações e demandas dos negros. Os Rosários dos Angolas. Irmandades de Africanos e Crioulos na Bahia Setecentista, (REGINALDO, 2011) de Lucilene Reginaldo, insere-se na ponta desse longo processo interpretativo da natureza, das características e das funções das irmandades. Beneficiando-se dos estudos anteriores e dialogando com as pesquisas recentes sobre tema, coloca a pesquisa sobre as irmandades num novo patamar, o do horizonte Atlântico. Organizado em cinco capítulos, respectivamente: Devoções e Irmandades da gente de cor no Reino e nas Conquistas d África; Na Bahia não há lugar aonde Resenha recebida em 21 de maio de 2013 e aprovada dia 22 de maio de 2013. * Doutor em Teologia (PUC-SP, 1979). Professor Titular do Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências da Religião da Ponficia Universidade Católica de São Paulo. País de origem: Brasil. E-mail: brbrito@uol.com.br Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 814

Ênio José da Costa Brito esta gente não tenha Igreja sua ; Os Rosários dos angolas; Outros africanos: os angolas da Bahia e Irmãos e Irmãs do Rosário das Portas do Carmo. Os Rosários dos Angolas tem origem na tese de doutorado defendida por Lucilene Reginaldo na UNICAMP. Esta Nota Bibliográfica [ou Resenha] tem uma intencionalidade bem definida: colher e apresentar os dados essenciais do texto e tecer um breve comentário realçando a interpretação inovadora da autora. Para Silvia Hunold Lara: Lucilene tempera com sabedoria e elegância a análise de um tema fulcral para a compreensão da experiência de escravos e libertos na Bahia dos séculos XVIII e meados do XIX. (LARA apud LUCILENE, 2011, p. 12). 1 Irmandades na África, em Portugal e na Bahia No diálogo de surdos, expressão de Wyatt Mac Gaffey, entre portugueses e africanos a religião mediou. Os líderes africanos tinham consciência de que a amizade dos reis de Portugal passava pela aceitação de uma nova religião, da religião católica. Todavia, o Mani Congo estava disposto não apenas a aceitar a religião dos portugueses, mas também em obter acesso às inúmeras maravilhas tecnológicas dos homens brancos (p. 32). Para os soberanos do Congo, os novos ritos e objetos sagrados reforçavam seus poderes: além disso, ao insistirem na formação de um clero nativo, visavam controlar a nova religião. O fato de não abandonarem as antigas crenças e costumes tradicionais gerou muitas tensões com os missionários Jesuítas e Capuchinhos. Os primeiros chegaram em 1548 (primeira missão) e retornaram em 1552 (segunda missão). Em 1645 chegaram os capuchinhos, italianos e espanhóis, enviados por Roma (Propaganda Fidei), que visava retirar de Portugal e Espanha a prerrogativa de protagonista na expansão do catolicismo (p. 48). Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 815

Resenha: REGINALDO, Lucikene. Os Rosários dos Angolas. Irmandade de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011 A primeira fundação urbana européia no ocidente, em 1576, recebeu o sugestivo nome de São Paulo de Assunção de Luanda, foi elevada a cidade em 1605. Cidade mestiça, com densa população de cor, principalmente pardos, em 1648 já se tornara o maior porto negreiro do Atlântico e um polo de expansão do catolicismo. Empenhada em resgatar a história atlântica das confrarias, a autora procura identificar a presença e a importância das devoções negras na diáspora ainda em solo africano (p. 60). Os jesuítas se encarregaram de propagar a devoção à Virgem do Rosário no Congo e em Angola. Para alguns historiadores, a devoção, graças aos processos de ressignificação, pode ter se tornado nos séculos XVI e XVIII uma ponte entre a cosmovisão africana e a cosmovisão cristã, um veiculo de elaboração e propagação destas concepções cristãs africanizadas (p. 72). Entre as práticas devotas, as irmandades revestem-se de importância por expandirem o catolicismo e se constituírem em espaços de reelaborações à luz das visões do mundo africano. A presença negra em Portugal no decorrer dos séculos XVII e XVIII foi notável, nos primórdios eram vistos como gentios e mais tarde como escravos, identificados a partir de laços étnicos de procedência. A primeira irmandade de negros de Lisboa nasceu na Igreja do Convento de São Domingos (p. 70), dissidente de uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, criada por pessoas brancas. As irmandades, em Portugal, desvelam o protagonismo social dos irmãos na defesa e resgate dos irmãos. A mais popular delas foi a de Nossa Senhora do Rosário, seu culto se espalhou por todo o Portugal. A identificação foi se dando na experiência cotidiana da escravidão (p. 95). Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 816

Ênio José da Costa Brito A cidade de Salvador, segunda capital do Atlântico português, viveu sua idade de ouro entre 1650 e 1700. No século XVIII, já contava com uma população de 60.000 habitantes. Além de Salvador, outras cidades se destacavam na Bahia como Vila Santo Amaro da Purificação, Cachoeira e Maragogipe. Desde o século XVII, inúmeras confrarias católicas foram criadas na cidade de Salvador e em menor número na zona rural. Escolhiam seus oragos, entre os santos de devoção negra, como Nossa Senhora do Rosário, São Benedito de Palermo, Santa Efigênia, Santo Elesbão, Santo Rei Baltazar e Santo Antônio do Catageró. As devoções aos santos negros, propagadas pelas ordens religiosas, com o tempo escaparam do controle das mesmas, ao serem apropriadas pelos próprios negros, constituindo um espaço significativo para as reinterpretações da mensagem católica. A autora relembra várias interpretações dadas pelos estudiosos para explicar essas devoções entre os negros, desde as mágicas às que consideravam os santos como parentes. Nossa Senhora e São Benedito tiveram uma ampla acolhida entre os negros. A devoção a Nossa Senhora do Rosário data do inicio do século XVII e a irmandade foi ereta em 1695, uma das mais antigas da cidade de Salvador. Os pardos cativos e forros também erigiram as suas irmandades apropriando a devoção a Nossa Senhora de Guadalupe, em Cachoeira criaram até uma ordem terceira. A reunião dos pardos em irmandades distintas das dos pretos africanos e crioulos, bem como a divisão do grupo segundo a condição escrava ou livre, chama a atenção para a complexidade deste grupo nas sociedades coloniais (p. 148). A historiografia clássica, ao explicar a criação das irmandades de pretos, afirmava que eram organizadas segundo as diferentes nações africanas, isto é, segundo as origens africanas. A divisão étnica das confrarias negras surge como Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 817

Resenha: REGINALDO, Lucikene. Os Rosários dos Angolas. Irmandade de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011 um dado que precede a própria história destas organizações, já que determinado pelas origens africanas dos confrades (p. 152-153). Essa visão vê a cristalização étnica como uma expressão máxima de africanidade. É verdade que não se pode negar o referencial africano na gestão de novas identidades na diáspora mas, como afirma Maria Inês Côrtes de Oliveira, as nações africanas no Novo Mundo, não guardavam, nem no nome nem em sua composição social, uma correlação com as formas de autoadscrição correntes na África (OLIVEIRA, 1995/1996). Conflitos entre africanos e crioulos existiram, mas não podem ser absolutizados. As inúmeras alianças que ocorriam no dia-a-dia negam os exclusivismos radicais. Angola e crioulos erigiram irmandades de Nossa Senhora do Rosário na cidade de Salvador. 2 Angolas e crioulos Um fato chama a atenção nas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário edificadas por angolas e crioulos em Salvador e em outras cidades da Bahia: a reserva de cargos de juiz e de juíza. Para a autora, não se tratava da exclusão de outros grupos, mas da garantia de privilégios, sobretudo, na definição dos cargos mais importantes (p. 169). Fato que se repete em Pernambuco e Minas Gerais. Quanto aos cargos ocupados por mulheres, havia mais flexibilidade, efetivamente controlada por homens, africanos e/ou crioulos, as irmandades de pretos na Bahia setecentista costumavam tratar as irmãs, de qualquer cor ou etnia, de forma muito mais cortês que os irmãos estrangeiros (p. 184). As eleições ocorriam no período da festa da padroeira, principal atividade da irmandade, e geravam muita preocupação nas autoridades. A festa com a missa, o sermão e a procissão devocional possibilitavam às irmandades se visibilizarem Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 818

Ênio José da Costa Brito socialmente, além de auxiliarem na saúde física e espiritual dos escravizados. Não resta dúvida de que as festas das confrarias negras foram ocasiões ímpares de manifestações culturais dos africanos e seus descendentes na Bahia (p. 203). Na festa ocorria a coroação do Rei e da Rainha, exemplo de preservação de manifestações culturais africanas, que mesmo combatidas por autoridades civis e religiosas e em muitos casos até retiradas dos Compromissos, permaneceu por toda a parte no decorrer no do século XVIII e XIX. Lucilene Reginaldo concorda com Elisabeth Kiddy que afirma: os centroafricanos continuaram no Brasil um processo de síntese cultural que começou combinando criativamente elementos culturais que os ajudaram em seu novo lar (novo mundo). Eles escolheram símbolos transculturais que fizeram a mediação entre o seu mundo antigo e o mundo novo. Os reis e rainhas nas irmandades serviram como mediadores. Eles também serviram como mediadores em um sentido africano, entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (KIDDY, 2002). Como explicar a aliança entre angolas e crioulos e essa identificação com as irmandades? Pela procedência, pela importância do catolicismo na África Central? Esses fatores podem ter influído, mas não explicam plenamente. Para a autora, a identificação dos angolas com as irmandades do Rosário foi um processo paralelo e conectado com a formação de uma identidade angola na Bahia (p. 227). Até recentemente, o traço que separava bantos e sudaneses era a capacidade de assimilação e adaptação dos primeiros e as habilidades especiais dos segundos para desenvolver certas tarefas. A raiz dessa separação está no tráfico, que visando manter a hegemonia do comércio forjou representações desses grupos, muitas delas perduram até hoje. Traficantes baianos exaltavam os minas e os portugueses os angolas. Para Luis Viana Filho, a propagação do culto aos santos pretos e à Senhora do Rosário, através das irmandades e confrarias formadas por negros, estaria Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 819

Resenha: REGINALDO, Lucikene. Os Rosários dos Angolas. Irmandade de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011 diretamente vinculada aos centro-africanos, muito mais abertos às ressignificações religiosas que os africanos da costa ocidental (VIANA FILHO, 1988). Tal sincretismo será explicado por Nina Rodrigues como fruto da incapacidade racional; por Arthur Ramos, como fruto da adaptação; e, para Bastide, como um elemento de resistência ativa. Bastide destaca, ainda, a importância dos centro-africanos na formação do catolicismo negro. Para a autora, é plausível considerar que a formação do catolicismo negro na Bahia foi profundamente marcada pela visão de mundo e pela ação dos primeiros grupos de imigrantes centro-africanos (p. 264). Nina Rodrigues, pioneiro nos estudos da religiosidade afro, questiona o exclusivismo banto, afirma serem os nagôs os mais numerosos e influentes na Bahia. O mundo dos centro-africanos que ainda viviam na Bahia de seu tempo não despertou nele qualquer curiosidade, sua crença na superioridade intelectual e social dos sudaneses foi certamente decisiva para este afastamento (p. 273). Para Lucilene Reginaldo, Nina Rodrigues foi influenciado pelo escritos de M. d Avezac sobre a multiplicidade das raças humanas, que herarquizava os grupos humanos. Os bantos ocupavam o lugar inferior entre os próprios negros. Os estudantes brasileiros retornados da África, onde internalizaram a teoria da superioridade ioruba, criada por uma elite africana, também exerceram sua influência. O estereótipo criado com relação aos bantos era de serem dóceis, com enorme capacidade de adaptação, mas de uma extrema pobreza mítica estereótipos mantidos nos escritos de Arthur Ramos, Roger Bastide e Edison Carneiro. Nestes autores, aos povos bantos permeáveis e dóceis diante da cultural ocidental, apenas restou a magia e o sincretismo, enquanto os iorubas foram capazes de criar uma verdadeira religião (p. 284-285). Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 820

Ênio José da Costa Brito Registros documentais dos séculos XVIII e XIX sinalizam para a presença de angolas, benguelas e congos na cidade de Salvador, arredores e sertões da Bahia. Presença, em parte, explicada pelos ciclos do tráfico, no entanto, não se pode esquecer que na Bahia, o etnônimo angola tornou-se um termo genérico utilizado para designar diferentes grupos centro-africanos (p.309). Vocabulário e herança cultural religiosa comum marcada pelo conceito de ventura-desventura contribuíram para a gestação de novas identidades. As confrarias dedicadas a Nossa Senhora do Rosário tornaram-se, na diáspora africana, espaços privilegiados de criação de identidades de origem centroafricanas nas Américas (p. 312). 3 A Irmandade de Nossa Senhora A autora finaliza seu texto olhando de perto e de dentro a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, uma das primeiras da América Portuguesa. Erigida em 1683, reformou seu compromisso em 1769, aprovado por Provisão Régia em 10 de outubro de 1781. Construiu sua capela entre 1703/1704, na proximidade do Castelo das Portas do Carmo. O Livro dos antigos associados (1750-1800) compilação de antigos livros de assentos revela um pouco da dinâmica organizacional da irmandade. Os registros trazem dados relacionados com o sexo, a condição jurídica, a procedência étnica e a cor dos 5058 irmãos e irmãs. Os dados não são homogêneos, refletem o interesse e as preocupações da época, indiciando assim uma prática sob a qual, num período, a procedência étnica era anotada com cuidado, noutro não. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo era constituída fundamentalmente por escravos, com claro predomínio das mulheres, que ocupavam cargos de direção (juízas) contrastando com o padrão dominante da sociedade, e também por libertos e irmãos brancos, muitos dos quais exerceram Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 821

Resenha: REGINALDO, Lucikene. Os Rosários dos Angolas. Irmandade de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011 cargos de escrivão, tesoureiro e procurador. O Livro dos Irmãos registra homens de cor das corporações militares. Tendo em vista a procedência dos angolas na formação das primeiras irmandades na Bahia e a superioridade numérica deste grupo na população escrava baiana, até princípios do século XVIII, é evidente que a maioria ingressa era de centros africanos e seus descendentes crioulos (p. 354). No início do século XVIII, um grupo significativo de jeges entrou na irmandade, reflexo da intensa convivência entre centro-africanos e povos da África ocidental na Bahia. Para a autora, os irmãos e irmãs do Rosário, que emergem do Livro dos Irmãos, nos remetem a um complexo universo de formação de identidades negras no setecentos baiano ( p. 356). À guisa de conclusão Pesquisar irmandades do século XVIII requer paciência e constância, pois, exige trabalho para localizar fontes. Observação, que explica em parte o número significativo de estudos sobre as irmandades do século XIX, este, rico em fontes. Para superar essa dificuldade, a autora ampliou o horizonte da pesquisa, indo buscar documentação em Portugal, África e Brasil. Nesses espaços vasculhou arquivos e levantou documentação relativamente ampla para respaldar sua pesquisa, o que deu ao texto uma particularidade difícil de se encontrar em outros estudos sobre as irmandades, além de convidar o leitor a interagir, a estabelecer nexos comparativos para perceber semelhanças e dessemelhanças nos três vértices do Atlântico Negro. Esta perspectiva Atlântica deu à tese de doutorado, em História Social, defendida em 2005 na Unicamp, um perfil renovador que contribui para um novo olhar sobre as irmandades. De perfil inovador, Os Rosários dos Angolas possibilita Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 822

Ênio José da Costa Brito resgates importantes no âmbito historiográfico. Primeiramente, o resgate da presença banto na Bahia, presença relegada para um segundo plano desde os estudos de Nina Rodrigues. A consequência imediata desse resgate é a necessidade de se relativizar a supremacia na Bahia dos grupos sudaneses. O que foi realizado pela autora, com competência, sem cair na armadilha de uma inversão, isto é, dar supremacia aos bantos. Na verdade, bantos e sudaneses contribuíram na formação cultural da Bahia. No entanto, deve-se ter presente que a diuturna presença banto nas terras baianas, ao longo de todo o século XVIII, deixou marcas indeléveis no âmbito cultural e religioso. Os Rosários dos Angolas deixa claro como angolas e congos souberam aproveitar do espaço das irmandades para uma inserção na sociedade colonial e para reconstruir suas identidades sociais. Na reconstrução da identidade, a dimensão religiosa na sua dupla face, religiosidade nativa e cristã, desempenhou um papel marcante. A presença da religiosidade cristã pode gerar perplexidade para os que desconhecem a longa presença cristã no Congo e em Angola. O catolicismo nesses países exerceu um papel mediador entre africanos e portugueses. Muitos escravizados, ainda na África, tiveram contato com ritos e símbolos cristãos. Por outro lado, um olhar atento para as práticas e cerimônias religiosas organizadas pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo, possibilita constatar um sinal da presença viva da religião africana em terras baianas. Na esteira de James Sweet, Os Rosários dos Angolas confirma que religião e religiosidade se constituíram na pedra de toque da resistência de africanos e seus descendentes na diáspora (SWEET, 2007). O leitor pode pedir à autora, num trabalho futuro, a ampliação da influência da cosmovisão afro na religiosidade popular brasileira ou na gestação de um catolicismo ladinizado. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 823

Resenha: REGINALDO, Lucikene. Os Rosários dos Angolas. Irmandade de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011 Pela amplidão da pesquisa, consistência teórica e perspicácia analítica, Os Rosários dos Angolas, certamente, agradará aos futuros leitores e leitoras. A Editora Alameda oferece um texto com uma diagramação impecável, trazendo as notas de rodapé ao pé da página, o que facilita e muito a leitura. REFERÊNCIAS REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011, 416p. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de Oliveira. Viver e morrer no meio dos seus. Nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX. Revista USP, São Paulo, n. 28, p.174-193, dez./fev. 1995/1996. KIDDY, Elisabeth. Who is the King of Congo. In: HEYWOOD, Linda M. (Ed.) Central Africans and cultural transformations in American Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. SWEET, J. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007. VIANA FILHO, Luís. O Negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 814-824, abr./jun. 2013 ISSN 2175-5841 824