A&C. Revista de Direito Administrativo & Constitucional

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Transcrição:

A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional A&C R. de Dir. Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, ano 6, n. 23, p. 1-253, jan./mar. 2006

A&C REVISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL IPDA Instituto Paranaense de Direito Administrativo Direção Geral Romeu Felipe Bacellar Filho Direção Editorial Paulo Roberto Ferreira Motta Direção Executiva Emerson Gabardo Conselho de Redação Edgar Chiuratto Guimarães Adriana da Costa Ricardo Schier Célio Heitor Guimarães Conselho Editorial Adilson Abreu Dallari Alice Gonzáles Borges Carlos Ari Sundfeld Carlos Ayres Britto Carlos Delpiazzo Cármen Lúcia Antunes Rocha Celso Antônio Bandeira de Mello Clèmerson Merlin Clève Clóvis Beznos Enrique Silva Cimma Eros Roberto Grau Fabrício Motta Guilhermo Andrés Muñoz (in memoriam) Jaime Rodríguez-Arana Muñoz Jorge Luís Salomoni José Carlos Abraão José Eduardo Martins Cardoso José Luís Said José Mario Serrate Paz Juan Pablo Cajarville Peruffo Juarez Freitas Julio Rodolfo Comadira Luís Enrique Chase Plate Lúcia Valle Figueiredo Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (in memoriam) Marçal Justen Filho Marcelo Figueiredo Márcio Cammarosano Maria Cristina Cesar de Oliveira Nelson Figueiredo Odilon Borges Junior Pascual Caiella Paulo Eduardo Garrido Modesto Paulo Henrique Blasi Paulo Neves de Carvalho (in memoriam) Paulo Ricardo Schier Pedro Paulo de Almeida Dutra Regina Maria Macedo Nery Ferrari Rogério Gesta Leal Rolando Pantoja Bauzá Sérgio Ferraz Valmir Pontes Filho Yara Stropa Weida Zancaner A246 A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional. ano 3, n. 11, jan./mar. 2003. Belo Horizonte: Fórum, 2003. Trimestral ano 1, n.1, 1999 até ano 2, n.10, 2002 publicada pela Editora Juruá em Curitiba ISSN: 1516-3210 1. Direito Administrativo. 2. Direito Constitucional. I. Fórum. CDD: 342 CDU: 33.342 Editora Fórum Ltda. 2006 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos xerográficos, de fotocópias ou de gravação, sem permissão por escrito do possuidor dos direitos de cópias (Lei nº 9.610, de 19.02.1998). Editora Fórum Ltda Av. Afonso Pena, 2770-15º/16º andar - Funcionários CEP 30130-007 - Belo Horizonte/MG - Brasil Tel.: 0800 704 3737 Internet: www.editoraforum.com.br e-mail: editoraforum@editoraforum.com.br Editor responsável: Luís Cláudio Rodrigues Ferreira Projeto gráfico e diagramação: Luis Alberto Pimenta Revisora: Olga M. A. Sousa Pesquisa jurídica: Fátima Ribeiro - OAB/MG 74868 Bibliotecária: Nilcéia Lage de Medeiros CRB 1545/MG 6ª região Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Impressa no Brasil / Printed in Brazil Distribuída em todo Território Nacional

Teoria geral da ordem jurídica internacional 101 Teoria geral da ordem jurídica internacional Alexandre Coutinho Pagliarini Membro do NUPECONST Núcleo de Pesquisa em Direito Constitucional da UniBrasil. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Coordenador de Pós-Graduação e Professor da UniBrasil Palavras-chave: Teoria geral da ordem jurídica internacional ; Organizações Internacionais; Teoria Geral do Estado; Direito Internacional Público; Personalidade Jurídica Internacional Preliminarmente, deve-se firmar o entendimento de que o direito internacional, por impor atos de violência veiculados pela sanção, é dotado de inegável caráter jurídico, ou seja, nele se encontra o deôntico. Tanto a norma internacional costumeira quanto aquela introduzida por tratado são portadoras de obrigações, permissões e proibições, podendo-se identificar que, dado o fato de um Estado não cumprir o previsto na hipótese da norma internacional, deve-ser uma conseqüência consubstanciada numa sanção. Veja-se o seguinte exemplo referente a um delito por inobservância de norma costumeira de direito das gentes: suponha-se que uma hipotética Cidade- Estado chamada Zubatão faça fronteira com a Cidade-Estado hipotética denominada Pasárgada. As centenas de indústrias estatais localizadas em Zubatão emitem, em conjunto, uma massa poluidora tão grande que provoca dois danos no território de Pasárgada: malefícios pulmonares identificados em 95% das crianças e dos idosos de Pasárgada, e isto traz prejuízo àquele Estado visto que gasta dinheiro para tratar os enfermos pelo sistema de saúde pública; corrosão incorrigível nos centenários monumentos artísticos em pedra-sabão, localizados ao ar livre em diversos sítios daquela Cidade-Estado. Existe a norma costumeira que diz que um Estado não pode causar prejuízo a outro por atitude ilícita. A partir dessa norma, dado o fato de Zubatão poluir Pasárgada, causando-lhe prejuízo material e malefícios à saúde de seu povo, deve-ser a aplicação de sanção. Veja-se, agora, um exemplo abstraído de uma hipótese advinda de norma posta por tratado: os Estados X e Y, há duas décadas, puseram fim aos atos beligerantes que se sucediam, firmando tratado que prescrevia ao Estado X a obrigação de retirar suas tropas da área Y do Estado Y. Dias atrás, o novo governo do Estado X viola aquele tratado, instalando naquela área

102 Alexandre Coutinho Pagliarini Y um pequeno contingente de membros de seu exército. Assim, verificado o fato de o Estado X haver instalado no território proibido o contingente militar, deveser a sanção que, neste caso, se consubstanciará na represália ou na própria guerra. As regras internacionais mesmo que não haja no mundo a mesma caracterização de unicidade institucionalizada verificável no direito nacional são normas jurídicas que impõem a represália ou até a guerra, no caso de violação de seus preceitos hipotéticos e dependendo do grau da violação. Com tais dizeres, quer-se afirmar que a inobservância da regra relacional contida no antecedente da norma internacional implica uma conseqüência, quer dizer, uma sanção. Desta maneira, não há como se vislumbrar a menor hipótese de se deixar de ver a ordem jurídica internacional como sistema normativo veiculador de um dever-ser, razão pela qual a fórmula lógica da norma jurídica se amolda também ao direito internacional: D [ ( p q ). ( - q S ) ]; leia-se: deve-ser (D) que, dado o fato p, então deve-ser a conduta q (se p então q ), e, não se observando a conduta q, então deve-ser a sanção. Se é verdade que a produção do complexo doméstico de normas se dá dentro de um contexto fechado, burocratizado e absolutamente institucionalizado que é o Estado soberano, não é verdadeira a mesma assertiva quanto à produção do complexo de normas internacionais, fato esse que fez com que Kelsen comparasse o direito internacional ao direito estatal dos tempos primitivos, época em que se praticava a vingança privada. 1 Ao contrário do que se vê no direito interno de um Estado, de fato não se constata no direito internacional a existência (i) de um Estado mundial institucionalizado e fechado, (ii) de um órgão legislativo mundial produtor de normas válidas, a se verem eficazes perante todos os Estados soberanos do planeta, (iii) de um tribunal global cujas decisões façam res iudicata perante todos sujeitos de direito internacional público, e, por fim, (iv) de um órgão de execução internacional que imponha aos Estados que praticarem condutas delituosas as sanções impostas pelo também inexistente tribunal total mundial. O complexo de normas costumeiras (direito internacional geral) 1 Em tempos de direito nacional primitivo, o de que a imposição da sanção devia se dar pela intermediação de um órgão executor institucionalizado,

Teoria geral da ordem jurídica internacional 103 ou convencionais (direito internacional particular) parece positivar-se só e tão somente pelas somas dos costumes e pelas vontades específicas dos Estados, sendo o que se depreende do ensinamento do jusfilósofo argentino Ricardo Guibourg 2 que, apesar de se referir somente à formação do direito costumeiro internacional, só podia ter também em mente a produção normativa internacional por tratados. No direito interno, verifica-se o processo legislativo de produção normativa geral e abstrata, não havendo tal processo institucionalizado no plano internacional, visando à produção de normas de direito das gentes; denota-se em tais dizeres aquele primitivismo aludido por Kelsen, pois, classicamente, as normas de direito das gentes parecem ser criadas pelos próprios sujeitos de direito internacional e aplicadas pelos mesmos, dependendo eles, os sujeitos de direito internacional, para a aplicação da sanção internacional, única e exclusivamente de suas vontades, ao passo que no complexo estadual se verifica (a) a criação escalonada de normas por agentes autorizados do Estado, (b) o julgamento dos delitos e a dicção do direito iuris dictio pelas autoridades judiciárias competentes e (c) a aplicação da sanção pelo órgão estatal pré-determinado. E quando foi dito, linhas acima, que o direito internacional é criado pelas práticas reiteradas dos Estados e pelas manifestações de vontade dos mesmos, pode-se incluir o entendimento de que, principalmente no que diz respeito aos tratados, o consentimento dos Estados se faz necessário, pois, como ensina Francisco Rezek, 3 No estágio presente das relações internacionais, é inconcebível que uma norma jurídica se imponha ao Estado soberano e à sua revelia. Para todo Estado, o direito das gentes é o acervo normativo que, no plano internacional, tenha feito objeto de seu consentimento, sob qualquer forma. Se, por um lado, não há como se fechar os olhos ao caráter internacional da sociedade de nossos dias, por outro é de se notar a inafastável necessidade de os Estados soberanos criarem instituições e foros coletivos a fim de que seus problemas tenham tratamento que faça afastar o primitivismo do direito internacional, pois, como ensina Dalmo de 2 GUIBOURG. Derecho, Sistema y Realidad, p. 24: (...) las normas consuetudinárias del derecho internacional dependen según parece de la voluntad concurrente de los Estados (o, al menos, de aquellos que tienen importancia decisiva en el concierto mundial). 3 REZEK. Direito Internacional Público: Curso Elementar, p. 77.

104 Alexandre Coutinho Pagliarini Abreu Dallari, 4 (...) tecnicamente, os Estados vivem em situação de anarquia, pois embora exista uma ordem jurídica em que todos se integram, não existe um órgão superior de poder, a que todos se submetam. Este aspecto, aliás, já foi percebido no começo deste século, e pelo reconhecimento dessa deficiência é que, nos últimos tempos, têm sido criadas muitas organizações internacionais dotadas de órgão de poder. Esta é uma inovação importante, que modifica profundamente os termos do relacionamento entre os Estados. Os dizeres de Dalmo de Abreu Dallari transcritos acima fornecem, com precisão, os rumos que o direito internacional deve seguir nos próximos tempos, rumos esses que já são verificáveis em vista do enorme número de organizações internacionais que existem desde a criação da Liga das Nações. Com a evidente internacionalização que vem ocorrendo e ligando pessoas de diferentes nacionalidades e constantes trocas comerciais e de tecnologia, pode-se profetizar que o futuro do direito internacional está centrado nos tratados e nas organizações internacionais, principalmente pelo fato de que os dois institutos acabam se fundindo em atos de concepção consubstanciados no tratado-fundação que cria o organismo transnacional. Só com o advento de organizações internacionais voltadas à mundialização se poderá manter a perspectiva de se ver uma comunidade centrada na isonomia, de Estados iguais em direitos e deveres, sem que um se sobreponha ao outro, contexto esse que já é verificável na União Européia e em seu direito comunitário. O que se busca aqui neste artigo é passar o entendimento de que o complexo jurídico internacional, mesmo que não dotado dos órgãos legislativos, judiciais e de execução verificáveis no direito doméstico, já é portador de inegável poder coercitivo, poder este que se efetivará com muito maior eficácia na hipótese de se confirmar a multiplicação de organizações internacionais amplas e de tratados definidores de condutas a serem observadas. No que diz respeito às organizações internacionais, 5 o desenvolvimento do direito das gentes foi tão acentuado na última década que tais organismos passaram a ser considerados, ao lado dos Estados, como 4 DALLARI., p. 264. 5 A multiplicação das Organizações Internacionais tem propiciado uma verdadeira revolução na conquista além-fronteiras dos direitos humanos, pois é no seio destas Organizações que se constituem Comissões

Teoria geral da ordem jurídica internacional 105 pessoas de direito internacional, ou seja, eles passaram a ser detentores de personalidade jurídica de direito das gentes, fato esse que se deve pioneiramente à disposição contida na Constituição da Organização Internacional do Trabalho OIT 6, de 1919. Desde o reconhecimento das organizações internacionais como pessoas de direito internacional público, as mesmas têm podido celebrar tratados em seus próprios nomes. Quanto à abrangência das organizações internacionais, Francisco Rezek 7 assim classifica: - alcance universal, finalidade política (Rezek exemplifica com a Sociedade das Nações e a Organização das Nações Unidas); - alcance universal, finalidade técnica específica (cita como exemplos as agências especializadas da ONU: a já citada Organização Internacional do Trabalho, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNESCO, o Fundo Monetário Internacional FMI, etc.); - alcance regional, finalidade política (exemplificando: Organização dos Estados Americanos OEA, Liga dos Estados Árabes LEA); - alcance regional, finalidade técnica específica (Comunidade Econômica Européia CEE, Associação Latino-Americana de Integração ALADI, Acordo de Livre Comércio da América do Norte NAFTA, etc.). Mesmo que o desenvolvimento evolutivo das organizações internacionais se tenha dado de forma fragmentada, pode-se notar os traços característicos elencados por Marcus Rector Toledo Silva, 8 quais sejam: multilateralidade, permanência e institucionalização. Traduzindo a essência existencial de tais traços, temos que a multilateralidade se explica pelo fato e Cortes que pautam suas atuações pela defesa das garantias fundamentais, tendo poderes investigatórios e jurisdicionais, na medida do consentimento dos Estados. Antônio Augusto Cançado Trindade dá conta do desenvolvimento dos instrumentos de proteção aos direitos humanos nas Organizações Internacionais: (...) supra), mesmo antes da entrada em vigor da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em nosso continente, coaduna-se com as experiências paralelas da Comissão Européia de Direitos Humanos (sob a Convenção Européia) e da Comissão de Direitos Humanos da ONU (sob o sistema da resolução 1.503 do ECOSOC), apontando todas no sentido de facilitar gradualmente o acesso dos particulares lesados às instâncias internacionais, e oferecer assim sua posição no plano internacional, em experimentos providos seja de base (resoluções de organismos internacionais), mas que nem por isso deixam de exercer efeitos jurídicos em relação aos Estados-membros. CANÇADO TRINDADE., p. 639. 6 Organização Internacional do Trabalho OIT,, artigo 19: a organização internacional do trabalho deve possuir personalidade jurídica; ela tem, especialmente, capacidade (a) de contratar, (b) de adquirir bens móveis e imóveis, e de dispor desses bens, (c) de estar em juízo. 7 REZEK. Direito Internacional Público: Curso Elementar, p. 255-260. 8 SILVA. as Relações Externas do Bloco Sub-regional Pós- Ouro Preto, p. 9.

106 Alexandre Coutinho Pagliarini das organizações internacionais serem instituídas juridicamente, com personalidade de direito internacional público, por intermédio de tratados celebrados por vários Estados soberanos, enquanto a característica da permanência se explica pelo desejo de que estas organizações internacionais, ao serem criadas, tenham longevidade e, por último, a institucionalização é o processo de burocratização personificada que deve ser inerente à condição de organização internacional detentora do direito de produzir tratados e de veicular normas. Aliás, no que atine à veiculação de normas, é este exatamente o ponto que está sendo tratado neste artigo, ou seja, a existência de normas jurídicas válidas e dotadas de eficácia no complexo jurídico internacional. Não tem consistência lógica o temor de que a mundialização institucionalizada do direito internacional público propicie a institucionalização do poder do Estado mais forte sobre o mais fraco, do mais rico sobre o mais pobre, do mais politizado sobre o menos. A ocorrência de tal sobreposição é uma pressuposição que foge dos domínios do sistema jurídico, o que não nos impede de fazer a seguinte comparação metafórica: no ordenamento nacional do Estado moderno, todos os indivíduos devem se respeitar, não podem se maltratar, estão obrigados a observar os limites da propriedade privada etc. Contudo, mesmo assim as pessoas se desrespeitam, maltratam-se e ultrapassam os limites da propriedade privada. Mas ainda assim, subsiste o direito interno com as suas prescrições; e continuará existindo. Logo, se é verdade que o delito ocorre no âmbito interno, e mesmo assim se verifica coexistente o direito local, então também é verdade que o delito ocorre no âmbito externo, e mesmo assim se verifica coexistente o direito internacional. Para que se evite que na mundialização vincenda se produzam normas internacionais que, por baixo da capa, sirvam somente aos interesses dos mais fortes, há que se intensificar o entendimento de que o consentimento dos Estados é conditio sine qua non para a veiculação de normas por tratados, como pensa Rezek. Pergunta-se: mas e se o Estado mais robusto forçar o consentimento do mais fraco? Em resposta, lançamos outra pergunta: mas e se o inquilino assinar o contrato por ter sido forçado pelo proprietário? Com as perguntas trocadas, infere-se: num trabalho jurídico, não cabe ao autor analisar temores que tenham sede meramente psicológica. Referências CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das Organizações Internacionais. 2. ed.

Teoria geral da ordem jurídica internacional 107 Belo Horizonte: Del Rey, 2002. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. GUIBOURG, Ricardo A. Derecho, Sistema y Realidad. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1986. REZEK, J. Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. SILVA, Marcus Rector Toledo. Mercosul e Personalidade Jurídica Internacional: as Relações Externas do Bloco Sub-regional Pós-Ouro Preto. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. de Normas Técnicas (ABNT): PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Teoria geral da ordem jurídica internacional. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, ano 6, n. 23, p. 101-107, jan./ mar. 2006.