Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação Profa. Dra. Brasilina Passarelli Resenha de obra Maurício Barbosa da Cruz Felício Nro USP 5392651 São Paulo 2013
A Condição Pós-Moderna Os pontos mais evidentes dentro da obra A Condição Pós-Moderna, de Jean-François Lyotard, reúnem a questão do saber, a ciência e a legitimação de seus discursos e postulados. Situando-se no pós-segunda guerra, o autor delineia os contornos de sua obra a fim de tratar da mudança no campo do saber que se passa em tempo correlato à idade pós-industrial no campo das sociedades, e na chamada idade pós-moderna no âmbito da cultura. Esta resenha, então, envolve-se no objetivo de oferecer os traços mais relevantes da obra citada para a construção de um corpus referencial para o debate acerca do contexto e condições que teriam dado condições ao surgimento do prossumidor na sociedade contemporânea. Assim, em seu primeiro capítulo, o autor se pauta pela questão do saber, indicando suas duas grandes vertentes, a saber a pesquisa e a transmissão do conhecimento, avaliando tanto o campo da produção do saber quanto de sua utilização, indicando de modo objetivo que a égide do conhecimento indissociável da formação do espírito está a ruir-se, enquanto entra em cena a relação de uso deste conhecimento como mercadoria, e como tal, sendo produzido com o fim de apresentar seu valor venal. Para o autor, O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde o seu valor de uso. (Lyotard, 1979, p. 5). É neste momento que a interferência do Estado passa a ser non grata para aqueles que circundam o campo do conhecimento e da produção científica, já que seu controle interviria negativamente na manutenção da comercialização dos saberes. Em seguida, o autor se permite a escrita de um breve capítulo sobre a legitimação que será resgatada em momentos fortuitos de sua obra. Neste momento, destaca que o saber científico, encarado por muitos como único, não está só, e em seu percurso, ele próprio se vale do saber narrativo. Longe de preconizar
um duelo, Lyotard já traz a indicação de que em diversos momentos estes saberes se encontram na história da ciência. Neste ínterim, chegam a baila os jogos de linguagem científicos e em seguida a forma de produzir conhecimento derivada das formas pelas quais os pesquisadores se valem para conduzir seus estudos. A obra conduz seus leitores a concluir que não se poderá elevar este conhecimento específico à categoria global, quando poderia apenas se este fosse o resultado da compreensão plena da sociedade ou mesmo do problema científico sendo que, nestes casos, ambos objetos precisariam ser maquinais, sistêmicos, ou seja, determinados dentro de uma estrutura rígida que, em grau maior de intelecção, estaria apenas oculta aos saberes humanos. Assim, havendo uma lógica una e totalizante, fatalmente se perceberia que os seus princípios trariam respostas sobre seus desdobramentos, e como tal, poder-se-ia determinar prescrições específicas para formar-lhe os traços desejados. É aqui que se percebe as construções discursivas que se utilizam de termos como o desenvolvimento, encarando o conhecimento e também a sociedade como algo cumulativo. Temos aqui claramente o pensamento positivista e seus reflexos mais evidentes. Ao passo que vemos a materialização destas transformações no campo do saber, Lyotard apresenta, neste novo cenário onde o conhecimento não trata mais de si para si, mas responde ao mercado, a percepção de que está a cargo dos experts a difusão das informações, mas em mesmo campo onde os decisores já não são mais sequer os próprios catedráticos, mas a iniciativa privada e das grandes instituições, povoada por presidentes, altos dirigentes, políticos etc. Conquanto se transformam os jogos de linguagem, tanto o fazem os lances que se produzem dentro destes meios a fim de garantir-lhe a legitimidade. Para tanto, vê-se que a transformação indicada acima, que traz o mercado para dentro do saber, oferece e exige uma nova régua para mensurar a produção científica, que não mais se pautará pela verdade, pelo ético, mas pela sua performance. Serve, então, o conhecimento ao poder, como fonte legitimadora e como produto desejado. Ainda que a ciência peça para si a prerrogativa legítima de tratar do conhecimento, ela se apresenta como auto-referente ao indicar seus métodos testáveis, mas ao mesmo tempo, na outra vertente do saber, o narrativo está a produzir novas narrativas pelo seu caráter inclusivo, já que o produtor da narrativa é
a evidência viva de que me dado momento ele foi objeto ou mesmo destinatário do saber narrativo, e só então se colocou em produção. Faz-se cabível que não me demore nos pontos da legitimação do método e da pesquisa conquanto se mantenha o objetivo citado desta resenha. Assim, vale também trazer a palavra do autor, que ao tratar do Estado, pode nos clarificar a visão sobre o sujeito e sobre o uso narrativo para a sua legitimação. [...] que fazem os cientistas chamados à televisão, entrevistados nos jornais após alguma descoberta? Eles contam a epopeia de um saber que, entretanto, é totalmente não-épica. Satisfazem assim às regras do jogo narrativo, cuja pressão não somente junto aos usuários da mídia, mas em seu foro interior, permanece considerável. Ora, um fato como este não é trivial nem secundário: diz respeito à relação entre saber científico e saber popular ou o que disto resta. O Estado pode despender muito para que a ciência possa figurar como uma epopeia: através dela ele ganha credibilidade, cria o assentimento público de que seus próprios decisores têm necessidade (grifo nosso). (Lyotard, 1979, p. 51) Em passo que o discurso narrativo é construído para a legitimação, levanta-se aqui a dúvida, a ser respondida em trabalho fortuito, se da mesma forma que age o Estado nesta nova configuração dos saberes, não poderia fazê-lo o sujeito social, em busca de legitimação, incorporando discursos maiores e se miscigenando com as estruturas de poder dentro de seu círculo, levando, talvez, ao então pesquisado prossumidor. Retomando o debate interno da obra, Lyotard nos indicará ao final de seu oitavo capítulo, a saber intitulado A função narrativa e a legitimação do saber, que nem mesmo a narrativa é suficientemente plena para dar respostas a todos os apelos ao conhecimento, colocando-nos frente à encruzilhada pela qual temos o saber das pesquisas, dito científico, questionado e se pautando em muitos momentos pela narrativa, e esta, pela outra esquina, não oferecendo o complemento resultante ou a completude. Dentro deste aparente conflito entre o saber científico e o narrativo, é coerente trazer a interpretação que o autor faz das palavras de Fichte sobre a legitimação do sujeito e da ciência, onde Lyotard apontará que a pesquisa das verdadeiras causas na ciência não pode deixar de coincidir com a persecução de justos fins na vida moral e política. O sujeito legítimo constitui-se desta última
síntese (Lyotard, 1979, p.60). Assim, é de se perguntar, na mesma medida, se o sujeito que estaria em busca da participação no processo criativo daquilo que ele próprio consome não buscaria a mesma coisa ou, de modo contrário, estaria longe dos ditos justos fins na vida moral e política. Da mesma forma, se mostra ponto passivo de estudos, ao mesmo peso, que se avalie a situação da produção pelas empresas e Estado, se seguiram ou perseguiram os mesmos ideais, principalmente nos momentos anteriores à tentativa mais sólida da tomada de poder e ação que teria o sujeito. Falando do sujeito e do relato, Lyotard vai rumar para a definição tanto do metarrelato quanto do metassujeito. Para ele, o metarrelato se constitui pois o que conta este relato não deve ser um poço estrangulado na positividade particular de seus saberes tradicionais, e tão pouco o conjunto dos cientistas que são limitados pelos profissionalismos correspondentes às suas especialidades. Este não pode ser senão um metassujeito em vias de formular tanto a legitimidade dos discursos das ciências empíricas, como a das instituições imediatas das culturas populares. Este metassujeito, revelando seu fundamento comum, realiza seu fim implícito. O lugar me que habita é a universidade especulativa. A ciência positiva e o poço não são outra coisa senão suas formas brutas. O próprio Estado-nação não pode exprimir validamente o povo a não ser pela mediação do saber especulativo. (Lyotard, 1979, p. 61-62). Esta é, então, uma forma de retomar a crítica ao saber positivo que, como citado anteriormente, pretende olhar sistematicamente a uma sociedade em pretenso desenvolvimento. O saber já, nesta altura do relato lyotardiano, deixara de ser o fim da ciência para ser o meio de legitimação e de poder. O discurso totalizante da narrativa libertadora do conhecimento já se esvazia a tempos curtos. Tanto o é que, para o autor, O grande relato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido: relato especulativo, relato da emancipação. Pode-se ver neste declínio dos relatos um efeito do desenvolvimento das técnicas e das tecnologias a partir da Segunda Guerra Mundial, que deslocou a ênfase sobre os meios da ação de preferência à ênfase sobre os seus fins; [ ] que valorizou a fruição individual dos bens e dos serviços. (Lyotard, 1979, p.69) Grifo nosso.
Deita-se, então, o debate não apenas sobre o indivíduo, mas ainda, acima disso, sobre o sujeito produtor do conhecimento científico, e como não, também da ciência, na sua busca constante pela legitimação, que leva o campo deste saber a se tornar autorreferente, entre jogos de linguagem, seus lances passam a ser avaliados pelo mesmo grupo de experts que pretendem se sagrar distinto. Assim, como se poderia provar um saber sem se provar a prova antes de mais nada? Este é um grande jogo no qual seus participantes se bastam a indicar se aceitam os lances, e antes disso, se aceitam os jogos de linguagem que são condição inalienável. Assim, quando se torna mais evidente que os pressupostos estão também embasados em uma aceitação que, a despeito da ciência asséptica, recai sobre o grupo, e assim, sobre o sujeito, permitimo-nos entender também a citada quebra da grande narrativa, apresentando uma pluralidade de sistemas formais axiomáticos capazes de argumentar enunciados denotativos, sendo estes sistemas descritos numa metalíngua universal mas não consistente. O que passava por paradoxo e mesmo por paralogismo no saber da ciência clássica e moderna pode encontrar em algum desses sistemas uma força de convicção nova e obter o assentimento da comunidade dos experts. (Lyotard, 1979, p. 79-80) Quebra-se, também, a este ponto, o determinismo e a visão sistêmica. Percebe-se que tanto não somos mais imparciais quanto a natureza também não chegou a ser constante. Reconhecemos, então, no máximo, a perpetuidade, dentro deste jogo de poder, de algumas ilhas de determinismo que ainda possam resistir à estas avaliações. Isso pois, conquanto pensemos ainda em um sistema, a ciência não poderia lhe abarcar sem ter o mesmo esforço despendido para recriar-lhes todos os detalhes. Ao pensar em ambientes controlados para experimentos de menor porte já nos deparamos com um número considerável de variáveis, então, da mesma forma, percebe-se o difícil trabalho de tentar retroagir aos primórdios sociais para encontrar os fatores causadores e motivadores da sociedade atual. Com isso, ao reavaliarmos a forma de legitimação, seja da ciência, seja dos lances dados dentro dos jogos de sentido, mostramos, analisando a pragmática científica, que o consenso não é senão um estado das discussões e não o seu fim. [ ] O consenso tornou-se um valor ultrapassado, e suspeito. A justiça, porém, não o
é. É preciso então chegar a uma ideia e a uma prática da justiça que não seja relacionada à do consenso. O reconhecimento da heterogeneidade dos jogos de linguagem é um primeiro passo nesta direção. Ela implica evidentemente a renúncia ao terror, que supõe e tenta realizar sua isomorfia. O segundo é o princípio que, se existe consenso sobre as regras que definem cada jogo e os lances que aí são feitos, este consenso deve ser local, isto é, obtido por participantes atuais e sujeito a uma eventual anulação. Orienta-se então para as multiplicidades de metaargumentações versando sobre metaprescritivos e limitadas no espaço-tempo. (Lyotard, 1979, p. 118-119). Bibliografia: LYOTARD, Jean-François; A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008; 10ª edição.