Francisco Tavares de Melo ¹ ² ³ Thiago Santa Rosa de Moura ¹ ² ³ Lourival Luiz dos Santos Júnior ¹ ² ³ Universidade Federal de Pernambuco - UFPE ¹ Centro de Filosofia e Ciências Humanas - CFCH ² Curso de Licenciatura em Geografia ³ Emails: Chicotavares1@hotmail.com Thi.santa.rosa@gmail.com Lourivalluis_20@hotmail.com O EXERCÍCIO DA AUTONOMIA POPULAR NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: UM ESTUDO DE CASO DA COMUNIDADE DE RODA DE FOGO EM RECIFE PE. 1. INTRODUÇÃO A produção do espaço urbano, que apresenta-se de forma hegemônica como um reflexo dos interesses das classes dominantes, mostra-se como uma indução, pela lógica que segue, à também produção de desigualdades sócio-espaciais. O problema da habitação nos centros urbanos brasileiros apresenta-se como mais uma conseqüência do modelo sócio-econômico imposto, sendo esse o principal veículo que possibilita tais desigualdades. A moradia, que constitui um direito e uma necessidade básica ao ser humano, apresenta-se, então, como um produto a ser consumido dentro de um mercado, tornando-se susceptível às mais diversas formas de especulação imobiliária, impossibilitando assim, seu acesso à parcela da população incapaz de consumi-la. O simples ato de nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Direito a um teto, a comida, a educação, a saúde, proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, a justiça, a liberdade, e a uma existência digna (Santos, 1987, p. 7). Contudo, uma vez impossibilitado o direito a moradia, a parcela pobre da população, que não faz parte desse mercado consumidor, passa a buscar alternativas que lhe garanta o acesso à habitação e também à cidade, por essa ser concentradora de atividades e serviços de interesse da população como um todo. 1
A consciência gerada por suas necessidades leva, muitas vezes, indivíduos de baixa renda a exercer sua autonomia produzindo o seu próprio espaço, consistindo uma racionalidade alternativa à racionalidade hegemônica dos atores com maior poder de transformá-lo. A cidade do Recife apresenta-se como um exemplo marcante no que diz respeito a atuação popular na produção do espaço urbano através de ativismos, sobretudo os de bairro, que foram responsáveis por significativas conquistas. Seguindo uma tendência nacional nos anos de 1970 e 1980, Recife vive uma efervescência na luta das camadas mais pobres por melhorias urbanas, principalmente em relação a habitação. Considerando esse contexto, surge em 1987 a comunidade de Roda de Fogo através de uma mobilização popular articulada e organizada entre indivíduos, que até então não possuíam moradia, desencadeando assim um processo de luta, ocupação de terras e acesso à habitação. 2. OBJETIVOS Os objetivos gerais consistem na compreensão da produção do espaço urbano capitalista, sua responsabilidade na produção de desigualdades sócio-espaciais, sobretudo no que diz respeito à problemática da habitação. Compreender como se dá o exercício do poder das camadas populares no que concerne a apropriação de áreas e produção de moradias. Os específicos referem-se ao entendimento do processo de luta, apropriação e transformação da área ocupada em 1987 na Zona Oeste do Recife, que originaria, por conseguinte, a comunidade de Roda de Fogo, com o intuito da viabilização do acesso à moradia. 3. METODOLOGIA Para a execução da pesquisa foi realizada revisão bibliográfica. Temas como, o espaço urbano capitalista, a habitação em centros urbanos, mais especificamente em Recife, formas de mobilização popular, serviram de base para a pesquisa, tendo em vista a apropriação teórica necessária. Também foram realizados trabalhos de campo na área de estudos para a observação de suas características e levantamento de dados por meio de entrevistas com moradores da localidade. 2
4. RESULTADOS A produção espacial em centros urbanos segue, de forma hegemônica, uma lógica que preza pelos interesses referentes aos dos atores detentores de um maior poder econômico. A viabilidade da promoção de maiores lucros reflete-se direta e indiretamente no espaço. A partir dessa racionalidade são criadas, ao longo do tempo, áreas cuja localização,..., é funcional para os desígnios dos atores sociais capazes de uma ação racional (SANTOS, 2008, p.30). A vigência dessa racionalidade conta com a conivência do Estado que, por sua postura, encontra-se como parte integrante da mesma. Nesse sentido, áreas que são de interesse ao poder econômico são valorizadas através de investimentos públicos pela instalação de infra-estruturas e melhores serviços, leis de uso e ocupação do solo urbano que favorecem as classes mais abastadas da sociedade, incentivos fiscais, dentre outros. E privados, ocupando áreas próximas a amenidades naturais e ao centro financeiro da cidade, além de outros atrativos que possam viabilizar alguma forma de retorno financeiro. Sendo assim, a parcela da população que não detém recursos suficientes para usufruir desses espaços é condicionada a ocupar áreas periféricas e desprestigiadas pelo poder público no que diz respeito às necessidades básicas necessárias ao bem estar humano, e que, sendo espaços de reprodução de classes sociais, visto a função que essas ultimas exercem enquanto à disponibilidade de força de trabalho, demonstra o controle ao qual são submetidas. Em um processo de periferização característico da expansão das grandes cidades brasileiras, a população pobre se desloca na busca de condições de acesso à terra e à moradia. Tal periferização caminha, contudo, em dois sentidos: avança para as bordas da malha urbana e densifica o núcleo metropolitano, ocupando os terrenos que se situam às margens do mercado imobiliário (SOUZA, 2007, p.118). Tal processo consiste em um dos reflexos da segregação sócio-espacial, um meio de reprodução social (CORRÊA, 1995, p.65), causada pela racionalidade hegemônica da produção do espaço. A Região Metropolitana do Recife (RMR) não foge a essa regra. Considerando um histórico de dezenas de anos de produção de desigualdades no que diz respeito à produção do espaço urbano nesta cidade, as décadas de 1970 e 1980 destacam-se como um período de maior intensidade de movimentos. 3
A partir da segunda metade dos anos 70, porém, os ativismos urbanos foram sendo cada vez mais retomados, e retomadas foram também as discussões sobre a reforma urbana. Em meados da década de 80, o termino do governo do general Figueredo, a eleição (indireta) do primeiro presidente civil desde 1964 e a perspectiva de uma nova Constituição para o país serviram para unir os movimentos sociais, as organizações e as instituições que lutavam pela reforma urbana. (SOUZA e RODRIGUES, 2004, p. 64) No que diz respeito ao acesso à moradia, pode-se registrar a ação estatal materializada na construção de conjuntos habitacionais com o incentivo dado ao setor da construção civil pela política habitacional implantada por meio do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) (SOUZA, 2007, p.121) que contemplava uma parcela da população que, apesar de possuir um baixo poder aquisitivo, era capaz de ter acesso à habitação através da mesma. Ainda assim, uma grande gama de indivíduos permanecia alheia a tal política, sendo obrigada a buscar outras alternativas que lhe garantisse o direito à moradia. Através de centenas de ocupações de terras no município e adjacências, segundo FALCÃO NETO (1984 apud SOUZA, 2007, p. 122) mais de 80 invasões envolvendo cerca de 150 mil pessoas entre 1978 e 1983 e mais de 200 invasões na RMR, envolvendo cerca de 80 mil pessoas entre 1987-89 segundo SOUZA (1991 apud SOUZA, 2007, p. 122), viabilizaram, mesmo que de modo precário, o acesso à moradia a parte da população pobre. É nessa conjuntura que surge no ano de 1987, na zona oeste da cidade do Recife, através de uma mobilização popular articulada e organizada entre indivíduos, que até então não possuíam moradia, a comunidade de Roda de Fogo, desencadeando assim um processo de luta e ocupação de terras de modo a viabilizar o acesso à moradia. A necessidade de morar levou cerca de três mil famílias a exercer sua autonomia em relação ao estado como forma de negação de seu poder, legitimador da racionalidade dominante, a se organizar e ocupar uma área de 60 hectares pertencente na época à união que estava em comodato aos previdenciários que eram representados no Estado de Pernambuco pela Comissão da Casa Própria dos Servidores Previdenciários (COMCAP). A partir deste momento passaram a exercer poder sobre essa área e, através de uma racionalidade fundada no bem estar construído pela promoção da satisfação de necessidades básicas ao ser humano, principalmente no que concerne ao acesso a habitação, na construção 4
de sua cidadania, foram capazes de atuar na produção do seu próprio espaço. Não era uma coisa de uma única pessoa, era um sentimento de um grupo de pessoas que queriam moradia... fala de Fernando Lima, morador da comunidade de Roda de Fogo. Com a ocupação, os indivíduos envolvidos na mesma e organizados por meio de uma comissão de lutas, que teve o apoio do centro social do Sítio das Palmeiras, bairro vizinho, que já era uma entidade organizada, buscavam, através dessa comissão, desenvolver as discussões referentes à Roda de Fogo e fazer com que os ocupantes permanecessem na terra de forma definitiva... Fala de Moradora. Foi através dessa comissão que os moradores planejaram o modo como seria ocupado o espaço. Cada família procurou demarcar sua área de modo que todos fossem beneficiados com terrenos que possuíam mais ou menos as mesmas dimensões dividindo a área total em quadras e estas em lotes para as famílias ocupantes. Visando uma futura estruturação da comunidade no que diz respeito acessibilidade e a posterior implantação de serviços de urbanização, foram projetadas ruas que possibilitassem essas futuras ações. (Fig. 01.) 5
Fig. 01. Perímetro do Atual Bairro de Roda de Fogo delimitado em vermelho. Fonte: Google Earth. 2009. Pressionados pelo Estado junto a COMCAP por vias judiciais, pois, durante o período da ocupação houveram várias ações de despejo como forma de desmobilização e reintegração de posse da área ocupada, os indivíduos intensificaram as lutas pela regularização do acesso à terra (Fig. 02 e 03), para a produção de suas moradias, tendo 6
conseguido, em 1992, pelo governo do Estado de Pernambuco, o título de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) com um prazo de cinco anos de validade. Entretanto, não satisfeitos com tal resolução, os ocupantes entraram com recursos na justiça pressionando o Estado contestando o título de cinco anos. Com isso, em 1994, foi concedido aos já moradores da área um novo título que permitia a utilização das terras por um prazo de 50 anos. Fig. 02 e 03. Manifestações no centro do Recife realizada pelos ocupantes de Roda de Fogo. Fonte: Agência de Noticias de Roda de Fogo. Através das concessões cedidas pelo Estado, resultado da luta dos moradores, a comunidade de Roda de Fogo consolida-se como um espaço produzido por meio do poder popular que contraria a racionalidade dominante. É a partir do exercício da autonomia dos ocupantes que é desencadeado o processo de produção do espaço baseado na promoção da dignificação da existência humana. Uma vez alcançado o acesso à habitação, os moradores da Roda de Fogo, que hoje constituem uma população de cerca de vinte e cinco mil habitantes, não limitaram seus esforços e enfrentamentos em ralação ao Estado apenas no que diz respeito ao acesso a habitação. Continuam se mobilizando, sobretudo nos dias atuais, de forma que possam garantir melhor qualidade nos serviços existentes na comunidade como educação, saneamento básico, calçamento de ruas, saúde, dentre outros. 7
5. BIBLIOGRAFIA ANGOLA, Catarina de. BORGES, Bruna. PINILLA, Nara. Roda de Fogo Cidade Encantada. Universidade Católica de Pernambuco. Projeto experimental em jornalismo. Mídia áudio/visual. 2008. CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço Urbano. 1 ed. São Paulo: Ática, 1995. 65 p. SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. 7 p. SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnico-científico-informacional. 5.ed. São Paulo: Edusp, 2008. 30 p. SOUZA, Marcelo Lopez de. RODRIGUES, Glauco Bruce. Planejamento Urbano e Ativismos Sociais. São Paulo: Unesp, 2004. SOUZA, Maria Ângela de Almeida. Política habitacional para os excluídos: o caso da Região Metropolitana do Recife in: Habitação social nas metrópoles brasileiras: Uma avaliação das políticas habitacionais em Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX / organizador Adauto Lucio Cardoso. Porto Alegre, 2007. 118, 121, 122 p. 8