Criptorquia: compreendendo os benefícios da cirurgia precoce

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2238-0450/17/06-01/14 Copyright by Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul Artigo de Revisão Criptorquia: compreendendo os benefícios da cirurgia precoce Cryptorchidism: understanding the benefits of early surgery Nicolino César Rosito 1, Taismar Liliane da Silva Oliveira 2 RESUMO A criptorquia é a anomalia do desenvolvimento sexual mais frequente nos meninos. Afeta 3% dos neonatos a termo no nascimento e 30% dos neonatos pré-termo. Apesar da alta taxa de incidência, a maioria dos testículos retidos desce naturalmente. Estudos têm demonstrado que a descida ocorre geralmente até o terceiro mês de vida. A criptorquia tem sido associada a um risco aumentado de desenvolvimento de câncer testicular. Embora estudos apontem que o tratamento cirúrgico precoce dos testículos criptorquídicos possa reduzir esse risco, não há consenso sobre a idade ótima para realizar a orquidopexia. Além disso, a criptorquia está associada à redução da fertilidade e à diminuição do número de células germinativas, células de Leydig e túbulos seminíferos, causadas por alterações histológicas induzidas pela exposição contínua a alterações endocrinológicas e a altas temperaturas. Uma vez diagnosticado pelo exame físico, o testículo retido deve ser tratado precocemente, com encaminhamento ao cirurgião para programar cirurgia entre os 3-9 meses de vida. Os benefícios da cirurgia precoce, ao redor dos 6 meses, incluem o melhor desenvolvimento testicular, não só no volume testicular, como no epitélio germinativo, melhorando o potencial de fertilidade e a redução do risco de malignização. Descritores: Testículo retido, criptorquia, descida espontânea, fertilidade, câncer testicular, orquidopexia precoce. ABSTRACT Cryptorchidism is the most frequent sexual development anomaly in boys. It affects 3% of full term boys and 30% of preterm boys at birth. Despite the high incidence rate, in most cases undescended testicles descend naturally. Studies have evidenced that natural descent usually occurs by the third month of life. Cryptorchidism has been associated with an increased risk of developing testicular cancer. Even though studies have shown that early surgical treatment of undescended testicles can reduce this risk, there is no consensus about the optimal age to undergo orchiopexy. Furthermore, cryptorchidism is associated with reduced fertility and a decrease in the number of germ cells, Leydig cells, and seminiferous tubules, caused by histological changes induced by continuous exposure to endocrinological alterations and high temperatures. Once diagnosed on physical examination, undescended testes should be treated early, with immediate referral to the surgeon so that surgery can be scheduled to take place between 3 and 9 months of life. The benefits of early surgery, around 6 months, include improved testicular development, not only in terms of testicular volume, but also of germinal epithelium, improving fertility potential and reducing the risk of malignancy. Keywords: Undescended testis, cryptorchidism, spontaneous descent, fertility, testicular cancer, early orchiopexy. Criptorquia significa testículo escondido, e é a anomalia do desenvolvimento sexual mais frequente nos meninos. Embora os testículos normalmente sigam o curso para o escroto, ocasionalmente podem ficar retidos nos espaços retroperitoneal ou intra-abdominal, no canal inguinal ou então seguir para uma localização ectópica - perineal, suprapúbica ou femoral 1,2 (Figura 1). A falha da descida testicular através do canal inguinal durante o terceiro tri- 1. Professor Adjunto da Faculdade de Medicina, Supervisor do Programa de Residência Médica e da Disciplina de Cirurgia Pediátrica da UFCSPA, Coordenador do Centro de Aperfeiçoamento de Urologia Pediátrica do HCPA - UFRGS e da Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica - CIPE, Mestre em Cirurgia, Doutor em Medicina e Pós-Doutor em Cirurgia - UFRGS. 2. Cirurgiã Pediátrica do Hospital Moinhos de Vento, MBA em Auditoria em Saúde. Como citar este artigo: Rosito NC, Oliveira TLS. Criptorquia: compreendendo os benefícios da cirurgia precoce. Bol Cient Pediatr. 2017;06(1):14-8. 14

Criptorquia: benefícios da cirurgia precoce Rosito NC & Oliveira TLS Boletim Científico de Pediatria - Vol. 6, N 1, 2017 15 mestre pode estar relacionada à insuficiência dos hormônios gonadotrópicos, falha da resposta testicular ao estímulo hormonal materno, inadequada tração do gubernáculo, ou vários outros fatores 1,3. Algumas correlações indiretas com a criptorquia foram encontradas na exposição materna a desreguladores endócrinos, tais como antiandrogênicos, ou efeitos estrogênicos de componentes químicos de pesticidas, dietilestilbestrol, fixadores e tintura de cabelos (ptalatos) 2,4. Outros fatores de risco sugeridos para a criptorquia são: idade avançada, obesidade e diabetes maternas; nascimento prematuro, baixo peso ao nascer ou pequeno para idade gestacional, devido à restrição de crescimento intrauterino; apresentação pélvica; paracetamol e nicotina durante a gravidez; história familiar de criptorquia (15%) 2-5. A descida espontânea dos testículos ocorre até os três meses em 90% dos casos nos recém-nascidos a termo, e até os seis meses nos prematuros. Após os seis meses de idade, o testículo não descerá espontaneamente 2. Testículos impalpáveis O diagnóstico por imagem do testículo impalpável não é totalmente confiável, menos ainda quando se trata de ausência testicular. A ecografia com doppler colorido, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética têm tido aplicação limitada e com baixa sensibilidade 2. A laparoscopia é o melhor método para diagnóstico do testículo impalpável, com 95% de sensibilidade (padrão ouro), e tem especial importância na localização do testículo, na observação de seu aspecto, na visualização dos vasos testiculares e do deferente (Figura 2), ou quando há ausência de testículo 1,5. Além de permitir o diagnóstico, possibilita a orquidopexia videolaparoscópica estagiada ou em um só tempo. Quando os vasos espermáticos são curtos e ligados para orquidopexia, há redução das células germinativas, que pode comprometer a fertilidade futura 6. Os neonatos que apresentam testículos impalpáveis ou criptorquia uni ou bilateral associada à hipospádia ou micropênis devem ser avaliados por equipe multidisciplinar, com exames laboratoriais, cariótipo, perfil hormonal e exames de imagem, e são inicialmente considerados como portadores de ADS 2. Figura 1 - Testículo criptorquídico Testículo ectópico Um terço dos meninos tem testículos retidos bilateralmente; dois terços são unilaterais - 70% do lado direito e 30% do lado esquerdo. O testículo retido tem sido encontrado nas regiões: intra-abdominal em 8%, no canal inguinal em 72%, e pré-escrotal em 20%. Aplasia ou anorquia em 2,6%. Nos impalpáveis, 15% está na região inguino-escrotal, 55% intra-abdominal, e 30% pode estar ausente ou vanishing 1. A incidência é de 3% nos neonatos a termo, 30% nos prematuros, sendo 70% nos prematuros com menos de 1.500 g e 100% com menos de 900 g de peso ao nascimento. Figura 2 - Testículo intra-abdominal: visão pela videolaparoscopia

16 Boletim Científico de Pediatria - Vol. 6, N 1, 2017 Criptorquia: benefícios da cirurgia precoce Rosito NC & Oliveira TLS Para detectar a presença de tecido testicular funcionante, dosar FSH, LH e testosterona. Se o FSH e o LH estiverem três desvios acima do normal, o diagnóstico de anorquia é o mais provável. Nos demais casos, fazer a estimulação hormonal com HCG, dosar novamente a testosterona que, se estiver elevada (5 vezes acima da média), indica a presença de testículo funcionante 2,5. Testículos retráteis São testículos que estão na bolsa escrotal e eventualmente sobem para o canal inguinal pela contração do músculo cremáster. Esta função do músculo regula a temperatura dos testículos e protege de trauma extrínseco. A retração ocorre como resultado de baixa temperatura ou estimulação do ramo cutâneo do nervo genitofemural. Este reflexo contrátil está diminuído ou ausente no recémnascido. Após os 10 anos de idade, o reflexo torna-se menos pronunciado devido aos níveis de andrógenos, com o início da puberdade 1. Os pacientes com testículos retráteis devem ser acompanhados a cada 6 meses ou anualmente até a adolescência, pois alguns estudos demonstram que os testículos retráteis podem ascender para o canal inguinal e resultar no diagnóstico tardio de criptorquia (testículos ascendentes) e os danos histológicos são semelhantes aos testículos critporquídicos 1,7. Na presença de hérnia inguinal, os testículos retráteis devem ser fixados no escroto (orquidopexia) no momento da herniorrafia, pois a cicatrização da hérnia pode deixar o testículo fora da bolsa 1. Criptorquia adquirida Após a constatação que o cordão espermático deve dobrar seu comprimento entre o nascimento e a puberdade, a criptorquia adquirida ocorre quando esse alongamento falha. O testículo descido na bolsa escrotal move-se para a região inguinal durante o crescimento do menino, sugerindo ser secundário à fibrose do processo vaginal remanescente. É comum em meninos com paralisia cerebral com espasmo adutor, que afeta o músculo cremaster 7,8. Histologia e fertilidade O testículo na bolsa escrotal apresenta temperatura de 33 C e, quando retido, fica exposto à temperatura mais elevada, que desencadeia degeneração do testículo. Com o aumento da idade, o testículo retido exposto a temperaturas elevadas 37 C na cavidade abdominal e 34 C a 35 C na região inguinal desenvolve progressiva fibrose intersticial e apresenta pouco desenvolvimento tubular e redução do volume testicular 7. A espermatogênese diminui devido à atrofia dos túbulos seminíferos, ao desenvolvimento da fibrose intersticial e pela expansão do tecido conectivo causadas pela diminuição da vascularização 7,8. A lesão histológica dos testículos retidos inicia a partir dos seis meses de idade, e é irreversível 9. A partir dos dois anos, há intensificação dessas alterações histológicas, que se agravam com o aumento da idade. Os testículos com localização mais alta (intra-abdominal) são os mais afetados, apresentam histologia normal até os seis meses de idade, mas desenvolvem atrofia tubular grave aos dois anos 10. O achado mais consistente na avaliação histológica do testículo criptorquídico é o desenvolvimento anormal das células germinativas. O número total de células germinativas e Leydig dos testículos criptorquídicos estão normais durante os primeiros 6 meses de vida. Outro fato é que há redução do número de células de Leydig e intersticiais nos testículos retidos em comparação com o testículo tópico contralateral com o aumento da idade 10,11. A idade da orquidopexia está associada com a depleção de células germinativas e de Leydig. Cada mês de testículo retido foi associado com o desenvolvimento de moderada/ grave depleção de células germinativas (OR 1,02 para cada mês de idade, p < 0,005) e perda de células de Leydig (OR 1,01 para cada mês de idade, p < 0,02). Testículos impalpáveis foram associados com a depleção grave de células germinativas. As crianças com testículos palpáveis têm menor chance de depleção de células germinativas do que aqueles com testículos não palpáveis (OR 0,46, p < 0,005). Esta constatação corresponde a um risco significativo de 2% ao mês de grave perda de células germinativas, e risco de 1% por mês de depleção de células de Leydig para cada mês no testículo não descido, e um um risco de 50% maior de depleção de células germinativas nos testículos impalpáveis 10. Assim, os testículos não descidos, com o aumento da idade, estão associados à progressiva perda de células germinativas e de Leydig, sendo maior nos testículos intra-abdominais 2,6,10. As células de Sertoli apresentam distúrbios da morfologia, fracasso de maturação na puberdade e redução do número de células depois dos 4 meses de idade, e se acentuam a partir do primeiro ano de vida nos testículos criptorquídicos 10. Um terço a 50% dos testículos criptorquídicos têm anomalias do epidídimo (Figura 3), aumentando o potencial de infertilidade por obstrução. A lesão tubular se correlaciona diretamente com parâmetros de fertilidade e inversamente com a idade da orquidopexia 8.

Criptorquia: benefícios da cirurgia precoce Rosito NC & Oliveira TLS Boletim Científico de Pediatria - Vol. 6, N 1, 2017 17 - Hérnia inguinal 25%, mas só 12% são diagnosticados antes da cirurgia; - Criptorquia gastrosquise (15%), onfalocele (30%), defeitos do tubo neural (25%), retardo mental, anencefalia, hipopituitarismo; - Doenças genéticas ou cromossômicas: trissomias 13 e 18, síndrome de Klinefelter (XXY), Prune-Belly, Kallmann, Prader-Willi, deficiência de 5 alfa-redutase. Figura 3 - Dissociação testículo/epidídimo Risco de malignização Na criptorquia, o risco de malignização é 2,5 a 8 vezes maior de desenvolver tumor do que a população geral. Estudos com o risco relativo demonstram que o risco atual de tumor é 2 a 3 vezes maior que a população normal, e de 1,7 vezes no testículo contralateral eutópico 12. Quando não operados e nos intra-abdominais o risco de desenvolver tumor é ainda maior, e os tumores são mais agressivos seminomas. Os testículos pós-orquidopexia desenvolvem tumores de células germinativas não seminomatosos carcinoma in situ, teratocarcinoma e carcinoma embrionário. Há controvérsias se a cirurgia modifica o risco de malignização. Sabe-se que o diagnóstico precoce de tumor de testículo pela palpação é facilitado se o testículo está no escroto. Estudos sugerem que a orquidopexia precoce, em torno dos seis meses de idade, reduziria a possibilidade de tumor, igualando-se à população geral e que, o risco de degeneração maligna pode ser de 2 a 6 vezes maior em homens que realizaram a orquidopexia após a puberdade 3,9-11,13. Diagnóstico O diagnóstico deve ser realizado ao nascimento pelo exame de rotina do neonatologista. A ausência do testículo pode ser diagnosticada pelo pediatra nos exames de rotina ou pelos pais, devido ao aspecto vazio ou pouco desenvolvido da bolsa escrotal e, quando unilateral, apresenta assimetria do escroto 2 (Figura 4). O diagnóstico é clínico, pela inspeção e palpação cuidadosa da região inguinoescrotal bilateral para verificar o tamanho, a posição e a consistência dos testículos. O escroto vazio ou pouco desenvolvido é um sinal da ausência do testículo em sua posição anatômica. Em aproximadamente 89% dos casos, o testículo criptorquídico é palpável na região pubiana ou no canal inguinal. Geralmente, o testículo retido tem tamanho menor que o testículo eutópico contralateral 7. Os testículos ectópicos ocorrem em 3% dos casos de distopias testiculares e são palpados em posições anômalas (femoral, perineal, raiz do pênis ou hemiescroto contralateral). Em 15-20% dos casos, não se palpa o testículo retido. Nesse caso, o testículo pode estar dentro do abdômen ou não existir (agenesia, atrofia) 1,8. Problemas associados - Persistência do conduto peritoneovaginal 90%; - Anomalias do epidídimo 50% - Poliorquidismo mais de 2 testículos localizados na região intra-abdominal, inguinal ou ectópico; - Anomalias do trato urinário superior 15%: agenesia renal, rim em ferradura e refluxo vesicoureteral; - Anomalias do trato urinário inferior: hipospádia (9%), classificado como ADS, válvula de uretra posterior, extrofia de bexiga e de cloaca; Figura 4 - Assimetria de bolsa escrotal, criptorquia esquerda

18 Boletim Científico de Pediatria - Vol. 6, N 1, 2017 Criptorquia: benefícios da cirurgia precoce Rosito NC & Oliveira TLS O testículo no canal inguinal pode não ser palpável por estar sob a aponeurose do músculo obliquo externo. Deve-se tentar ordenhá-lo com a mão espalmada no sentido do anel inguinal externo para facilitar sua identificação e palpação. Outra manobra (Bunce) é colocar o paciente agachado com as costas encostadas na parede. Nessa posição, o cremaster se relaxa e a pressão intra-abdominal aumenta, que pode facilitar a palpação do testículo na região inguinal 2. Tratamento hormonal Geralmente, o tratamento hormonal não é recomendado, devido ao pobre resultado imediato (< 20%) e a possibilidade de efeitos adversos na espermatogênese em longo prazo 2,5. Tratamento cirúrgico Nos últimos anos tem-se discutido muito sobre qual o melhor momento em relação à idade das crianças para indicar a cirurgia para o tratamento dos testículos criptorquídicos. Vários relatos apontam para indicação de cirurgia mais precoce, onde os lactentes teriam maior benefício 2,7-9,11,13 15. Os testículos podem descer ao escroto sem nenhum tratamento até os 3 meses de idade e o reconhecimento do mal desenvolvimento das células germinativas e hormonal após 6 meses de idade sugere a cirurgia aos 6 meses. Outro fator que vem ganhando mais adeptos é a indicação da orquidopexia mais precoce, em torno dos 6 meses, que poderia prevenir tumor testicular 3,13. As principais indicações da orquidopexia precoce são: aumentar o potencial de fertilidade, reduzir a possibilidade de torção, efetuar concomitante reparo da hérnia inguinal, prevenir trauma ou dor, reduzir a possibilidade de tumor, pelo efeito psicológico e cosmético ocasionado pela bolsa escrotal vazia 1. Uma vez diagnosticado, pelo exame físico, o testículo retido deve ser tratado precocemente, com encaminhamento ao cirurgião para programar cirurgia entre os 3-9 meses de vida 3,10,11,15. Os benefícios da cirurgia precoce, ao redor dos 6 meses, incluem o melhor desenvolvimento testicular, não só no volume testicular, como no epitélio germinativo, melhorando o potencial de fertilidade e a redução do risco de malignização 3,8 11,13,14. Referências 1. Rosito NC, Oliveira TLS. Problemas cirúrgicos mais comuns. In: Pediatria: diagnóstico e tratamento. Ferreira JP e cols. Artmed; 2005. p. 549-61. 2. Kolon F T, Hendron A, Baker LA, Baskin LS, Baxter CG, Cheng EY, et. al. Evaluation and treatment of cryptorchidism: AUA Guideline. 2014;192,1-9. 3. Hutson JM, Southwell BR, Li R, Lie G, Ismail K, Harisis G, et al. The regulation of testicular descent and the effects of cryptorchidism. Endocrine Reviews. 2013;34(5):725-52. 4. Bay K, Main KM, Toppari J, Skakkebaek NE. Testicular descent: INSL3, testosterone, genes and the intrauterine milieu. Nat Rev Urol. 2011;4:187-96. 5. Braga LH, Lorenzo AJ. Cryptorchidism: A practical review for all community healthcare providers. Can Urol Assoc J. 2017;11(1-2Suppl1):S26-32. 6. Rosito NC, Koff WJ, Oliveira TLS, Cerski CT, Salle JLP. Volumetric and histological findings in intra-abdominal testes before and after division of spermatic vessels. J Urol. 2004;171:2430-3. 7. Kollin C, Granholm T, Nordenskjöld A, Ritzén EM. Growth of spontaneously descended and surgically treated testes during early childhood. Pediatrics. 2013;131:1174-80. 8. Hutson J.M. Undescended testis: The underlying mechanisms and the effects on germ cells that cause infertility and cancer. J Ped Surg. 2013;48:903-8. 9. Hadziselimovic F, Herzog B. The importance of both an early orchidopexy and germ cell maturation for fertility. Lancet. 2001;358:1156-7. 10. Tasian GE, Hittelman AB, Kim GE, DiSandro MJ, Baskin LS. Age at orchiopexy and testis palpability predict germ and leydig cell loss: clinical predictors of adverse histological features of cryptorchidism. J Urol. 2009;182(2):704-9. 11. British Association of Paediatric Surgeons. Commissioning guide: Paediatric orchidopexy rundescended testis, 2015 http://www.baus.org. uk/_userfiles/pages/files/publications/commissioning%20guide%20 for%20orchidopexy%20final%20v7.pdf. Acessado em 17.02.17. 12. Wood HM, Elder JS. Cryptorchidism and testicular cancer: separating fact from ficti on. J Urol. 2009;181:452. 13. Hutson JM, Thorup J. Evaluation and management of the infant with cryptorchidism. Curr Opin Pediatr. 2015;27:520-4. 14. Thomas RJ, Holland AJA. Surgical approach to the palpable undescended testis. Pediatr Surg Int. 2014;30:707-13. 15. Radmayra CD, Dogan HS, Hoebeke P, Kocvara R, Nijman R, Stein R, et al. Management of undescended testes: European Association of Urology/European Society for Paediatric Urology Guidelines. J Pediatr Urol. 2016;12(6):335-43. Correspondência: Nicolino César Rosito E-mail: nrosito@hcpa.edu.br ou nicolinorosito@hotmail.com