Factores preditivos de cicatriz renal após pielonefrite em crianças com menos de dois anos de idade

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Transcrição:

0873-9781/07/38-4/133 Acta Pediátrica Portuguesa Sociedade Portuguesa de Pediatria ARTIGO ORIGINAL Factores preditivos de cicatriz renal após pielonefrite em crianças com menos de dois anos de idade Sónia Pimentel, António Figueiredo, Laura Oliveira, Luís Varandas Unidade de Primeira Infância, Hospital de Dona Estefânia, Lisboa Resumo Objectivos. Identificar factores laboratoriais e imagiológicos associados ao desenvolvimento de cicatriz renal sequelar após pielonefrite em doentes com menos de dois anos de idade e avaliar o papel da ecografia no estudo não invasivo de pielonefrite. Local. Hospital pediátrico universitário de nível III. População. Crianças com idade inferior a dois anos hospitalizadas com o diagnóstico de primeira pielonefrite. Métodos. Avaliação prospectiva do risco de cicatriz renal, através de parâmetros laboratoriais e imagiológicos. Estudo de efectividade da ecografia renal e vesical para identificar pielonefrite aguda e refluxo vesico-ureteral (RVU). Admite-se como método padrão para detecção de pielonefrite aguda e cicatriz renal a cintigrafia renal com DMSA e para detecção de RVU, a cisto-uretografia permiccional (CUM). Resultados. Estudaram-se 134 crianças, com mediana de idades de 3 meses (p 25 -p 75 : 1-9 meses) sendo 60% do sexo masculino. A cintigrafia em ambulatório evidenciou a presença de cicatriz renal em 42% das crianças. Valores de proteína C reactiva superiores a 5 mg/dl estiveram associados a alterações da cintigrafia em ambulatório [RR 2,7 (IC95% 1,1-7), VP + 64,3%, VP 76,5%]. A presença de RVU grau II esteve associada a cicatriz renal na cintigrafia em ambulatório [RR 2,6 (IC95% 1,7-4,2), VP + 100%, VP 51,7%]. Vinte por cento das crianças tinha RVU verificado pela CUM, tendo a ecografia excluído de forma significativa a sua presença, em relação à CUM [LR + 9,9 (1,4-69,3), VP 94,4%]. Conclusões. No grupo estudado, o valor de proteína C reactiva e a presença de RVU grau II foram os principais factores preditivos de cicatriz renal. O papel da ecografia parece ser relevante no estudo de pielonefrite, sobretudo para excluir RVU. Palavras-chave: pielonefrite, cicatriz renal, refluxo vesicoureteral, cintigrafia, cisto-uretrografia. Acta Pediatr Port 2007;38(4):133-7 Predicting renal scar after pyelonephritis in children younger than two years of age Abstract Aims. To identify the possible association of laboratory and imagiologic features with renal scar in children younger than two years of age with pyelonephritis. The role of ultrasound as a non invasive method to study pyelonephritis was also investigated. Settings. Level III universitary paediatric hospital centre. Population. Inpatient children younger than two years of age with the diagnosis of first pyelonephritis. Methods: Parameters were prospectively evaluated as predictors of renal scar. Effectiveness of ultrasound to identify acute pyelonephritis and vesico-ureteric reflux (VUR) was evaluated. Renal scintigraphy and voiding cystourethrogram were considered the gold standard method to identify renal parenchymal lesion and VUR, respectively. Results: One hundred and thirthy-four children were studied: the median age was 3 months (p 25 -p 75 : 1-9), and 60% were male. Renal scar was identified in 42% children. C-reactive protein (CRP) predicted renal scarring [RR 2,7 (IC95% 1,1-7), CRP >5mg/dL]. VUR grade II was also associated with renal scarring [RR 2,6 (IC95% 1,7-4,2), VP + 100%, VP 51,7%]. VUR (identified by voiding cystourethrogram) was present in 20% infants, and it was excluded accurately by renal ultrasound [LR + 9,9 (1,4-69,3), VP 94,4%]. Conclusions. CRP and VUR grade II were predictors of renal scarring. Ultrasound seems to exclude VUR accurately. Key-words: Pyelonephritis, renal scar, vesico-ureteric reflux, scintigraphy, cystourethrogram. Acta Pediatr Port 2007;38(4):133-7 Introdução O diagnóstico de pielonefrite na primeira infância é um desafio que requer um elevado grau de suspeita 1-3 sendo a febre o Recebido: 23.08.2006 Aceite: 23.08.2007 Correspondência: Sónia Pimentel soniapimentel@yahoo.com 133

sintoma mais comum 4. Por esta razão, em crianças com menos de dois anos de idade e febre não explicada, deve ser sempre considerada a presença de pielonefrite 1. A pielonefrite, sobretudo na criança com menos de cinco anos de idade, pode originar cicatriz renal sequelar 5,6. Embora raramente, esta pode causar hipertensão arterial e insuficiência renal crónica 7-9. Para evitar esta evolução, para além de estabelecer antibioterapia adequada, é necessário reconhecer indicadores e factores de risco associados a atingimento renal 5. A cintigrafia renal com Tc-99m-DMSA ( 99m Tc-ác. dimercapto-succínico) é considerada o exame padrão para identificar o local da infecção e detectar a presença de cicatriz renal, sendo a cisto-uretrografia permiccional (CUM) o método de eleição para o diagnóstico de refluxo vesico-ureteral (RVU) 10. A identificação de parâmetros laboratoriais ou ecográficos que sirvam de indicadores de lesão renal ou de factores de risco associados a esta, poderá diminuir o número de doentes submetidos a exames mais invasivos. O objectivo deste estudo foi estudar características laboratoriais e imagiológicas em doentes com idade inferior a dois anos com pielonefrite e a sua possível relação com o desenvolvimento de cicatriz renal. Pretendeu-se ainda avaliar o papel da ecografia na identificação de pielonefrite aguda e RVU. População e Métodos Local: Enfermaria de pediatria de primeira infância num hospital pediátrico universitário de nível III. Critérios de inclusão: Crianças com idade inferior a dois anos, internadas entre Janeiro de 1998 e Abril de 2002, com o diagnóstico de primeira pielonefrite aguda conhecida. O diagnóstico de pielonefrite foi feito com base em duas uroculturas positivas (prévias ao início de antibioterapia) colhidas por saco colector ou uma urocultura positiva colhida por cateterismo vesical. Amostragem: Sistemática, de conveniência. Critérios de exclusão: Crianças com outra situação infecciosa concomitante à pielonefrite. Métodos: Estudo observacional prospectivo clássico, tendo a colheita de dados sido iniciada no internamento e concluída até aos doze meses após a alta. As intervenções diagnósticas faziam parte da avaliação de rotina no caso de pielonefrite na enfermaria do estudo. Analisaram-se os seguintes parâmetros: Parâmetros laboratoriais: hemograma, concentração plasmática de proteína C reactiva, ureia, creatinina. Realizaram-se duas colheitas de sangue, uma no dia de internamento e outra entre as 48 horas de terapêutica e a alta hospitalar. Parâmetros imagiológicos: ecografia renal e vesical no dia de internamento ( ecografia à entrada ) e antes da alta ( ecografia na alta ). Consideraram-se como sinais de alteração do parênquima renal: alteração da ecogenicidade, má diferenciação cortico-medular renal, diâmetro do parênquima renal abaixo do percentil adequado para a idade, volume renal acima do percentil adequado para a idade ou assimetria renal. Considerou-se como sinal ecográfico sugestivo de possível RVU a dilatação da árvore pielo-calicial. Cintigrafia renal com DMSA realizada durante o internamento ( cintigrafia no internamento ) e/ou entre seis a nove meses após a alta ( cintigrafia em ambulatório ). A presença de défice focal, afilamento polar, rim pequeno hipocaptante, múltiplas cicatrizes, assimetria renal foram interpretadas como lesão do parênquima renal. CUM realizada até seis semanas após a alta. O RVU identificado na CUM foi classificado como graus I-V (Classificação Internacional de Refluxo Vesico-Ureteral). Análise estatística: Realizada com os programas SPSS 10.0 for Windows (SPSS Inc., Chicago, Il, EUA) e StatCalc - Epi- Info 3.2.2 (CDC, Atlanta, Ga, EUA). Os dados referentes a variáveis contínuas são apresentados como mediana (p 25 -p 75 ). Avaliação dos parâmetros laboratoriais e imagiológicos como preditores da presença de cicatriz renal: Avaliou-se o risco relativo (RR) e respectivo intervalo de confiança de 95% [apresentados como RR(IC95%)] associado aos parâmetros laboratoriais e imagiológicos para presença de lesão renal na cintigrafia em ambulatório. Para as variáveis contínuas procedeu-se a uma avaliação inicial por curva de ROC (Receiver Operating Characteristic Curve), para estudo dos limiares de diagnóstico. A área abaixo da curva de ROC foi considerada como significativa se >0,5, sendo a sua acuidade classificada como fraca (]0,6-0,7]), moderada (]0,7-0,8]), boa (]0,8-0,9]) e excelente (]0,9-1]). A área abaixo da curva de ROC é apresentada como: área (IC95%). Calculou-se ainda o respectivo valor preditivo positivo e negativo (VP + e VP ). Parâmetros de efectividade da ecografia renal para identificação de pielonefrite aguda e de RVU: Calculou-se a razão de verosimilhança positiva e negativa (LR + e LR ) e respectivo intervalo de confiança de 95% [apresentados como LR (IC95%)], VP + e VP para identificação de lesão do parênquima renal por ecografia renal considerando como teste padrão a cintigrafia renal com DMSA no internamento e, para identificação de RVU por ecografia renal e vesical considerando como teste padrão a CUM. Resultados Foram recrutadas para o estudo 134 crianças com o diagnóstico de primeira pielonefrite. A mediana de idades foi de 3 meses (1-9 meses), sendo 60% dos casos correspondentes a crianças do sexo masculino. Vinte e oito crianças (14,4%) eram recém-nascidos com mais de uma semana de vida. Dos parâmetros laboratoriais analisados no dia do internamento mostraram alterações: o leucograma com mediana de leucócitos de 14.220 (10.990-19.300) células/μl, mediana de neutrófilos de 7.631 (4.382-10.754) células/μl e mediana de proteína C reactiva de 4,4 (1,1-11,2) mg/dl. Os parâmetros laboratoriais analisados na altura da alta encontravam-se dentro dos valores normais, pelo que não são apresentados. Os Quadros I-III sumariam o resultado da avaliação imagiológica. A ecografia renal e vesical à entrada mostrava anomalias 134

em 43% (55/128) dos casos (Quadro I). No grupo de doentes em que a ecografia foi repetida antes da alta hospitalar (n=48) houve desaparecimento da lesão em quinze casos (15/48, 31,3%), nomeadamente desaparecimento de: dilatação dos bacinetes, quistos, espessamento do urotélio, diminuição da diferenciação cortico-medular, assimetria renal e cistite. Evidenciou-se aparecimento de lesão em apenas dois casos: alteração da ecogenicidade do parênquima renal e dilatação do bacinete. Quadro I Diagnósticos imagiológicos da ecografia renal e vesical. Ecografia renal Entrada (n) Total 128 Normal 73 (57%) Alterada 55 (43%) Alteração do parênquima renal 28 Dilatação da árvore excretora 29 Quistos renais 1 Espessamento do urotélio 2 Litíase renal 2 Cistite 1 Nota: um caso pode ter mais que uma alteração no exame ecográfico. A cintigrafia renal com DMSA apresentou alterações no internamento em 40% (36/89) das crianças (Quadro II) e em ambulatório em 42% (14/33). Nos doentes que realizaram duas cintigrafias, a lesão normalizou em oito casos. A lesão renal modificou-se em dois casos, num caso com aparecimento de défice focal num doente com assimetria renal de base, e noutro caso, com evolução de défice focal para assimetria com défice focal. A CUM evidenciou RVU em 20% das crianças (19/94), sendo a maioria de grau I e II (Quadro III). Avaliação dos parâmetros laboratoriais e imagiológicos como preditores da presença de cicatriz renal: A área ROC foi estatisticamente significativa para número de leucócitos, neutrófilos e proteína C reactiva, efectuados no dia do internamento, em relação à presença de cicatriz renal na cintigrafia em ambulatório. Os seus valores foram de 0,75 (0,58-0,92), 0,8 Quadro II Diagnósticos imagiológicos da cintigrafia renal com DMSA. Cintigrafia renal com DMSA Internamento (n) Ambulatório (n) Total 89 33 Normal 53 (60%) 19 (58%) Alterada 36 (40%) 14 (42%) Afilamento polar 18 6 Assimetria renal 12 4 Défice focal 8 5 Cicatrizes múltiplas 5 2 Rim pequeno hipocaptante 4 3 Nota: um caso pode ter mais que uma alteração num exame. Quadro III Diagnósticos imagiológicos da cisto-uretrografia permiccional. Casos (n) Total 94 Normal 75 (80%) Alterada 19 (20%) RVU grau I 4 RVU grau II 8 RVU grau III 2 RVU grau IV 3 RVU grau V 2 RVU - refluxo vesico-ureteral. (0,64-0,95) e 0,83 (0,67-0,99), respectivamente. Valores de proteína C reactiva superiores a 5 mg/dl predisseram com boa acuidade a presença de cicatriz renal. A presença de alterações em qualquer ecografia no internamento e na cintigrafia no internamento estiveram associadas, embora sem significado estatístico, a alterações na cintigrafia no ambulatório. (Quadro IV). Efectividade da ecografia renal para identificação de pielonefrite aguda e de RVU: A ausência de dilatação da árvore pielocalicial na ecografia renal à entrada excluiu de forma significativa a presença de RVU (CUM como teste padrão). A ecografia renal à entrada não identificou a presença de pielonefrite (cintigrafia no internamento como padrão) de forma significativa. (Quadro V). Quadro IV Relação entre parâmetros laboratoriais e imagiológicos e a presença de lesão renal na cintigrafia em ambulatório. n RR VP (%) IC95% + - PCR >5 vs cintigrafia ambulatório 31 2,7 1,1-7 64,3 76,5 RVU II vs cintigrafia ambulatório 31 2,6 1,7-4,2 100 51,7 Qualquer ecografia vs cintigrafia ambulatório 18 4,5 0,7-27,7 75 83,3 Cintigrafia internamento vs ambulatório 24 4,4 0,7-28,7 55,6 100 IC - intervalo de confiança; n - número; PCR - proteína C reactiva; RR - risco relativo; RVU - refluxo vesico-ureteral; VP - valor preditivo. Quadro V Parâmetros de efectividade da ecografia renal e vesical para a detecção de presença de refluxo vesico-ureteral (cisto-uretrografia permiccional, teste padrão) e de lesão do parênquima renal (cintigrafia em internamento, teste padrão). n LR+ VP (%) + IC95% - IC95% + - Ecografia entrada vs CUM 38 9,9 1,4-69,3 0,1 0,01-0,7 55 94,4 Ecografia entrada vs cintigrafia internamento 37 1,3 0,7-2,4 0,8 0,4-1,5 60 52,9 CUM - cisto-uretrografia permiccional; IC - intervalo de confiança; n - número; LR - valor de verosimilhança; VP - valor preditivo. 135

Discussão A utilização de parâmetros laboratoriais como preditores de lesão renal tem sido avaliada por vários estudos 10-13 com o objectivo de ajudar a guiar decisões terapêuticas baseadas no risco de lesão renal. Dos dados laboratoriais estudados, apenas a concentração de proteína C reactiva esteve significativamente associada a cicatriz renal na cintigrafia renal em ambulatório, sendo esta associação mais relevante para valores superiores a 5mg/dL. No entanto, os valores de risco relativo e valores preditivos são moderados, pelo que devem ser interpretados com precaução. O papel da ecografia renal como preditor de cicatriz renal tem também sido estudado 10,14,15. A ecografia renal realizada à entrada mostrou atingimento do parênquima renal em 22% dos casos e alterações da morfologia da árvore excretora em 23% dos casos. O desaparecimento de lesão foi frequente, correspondendo à resolução do processo infeccioso, sendo raro o aparecimento de lesão. A ecografia renal durante o internamento não previu de forma significativa a presença de cicatriz renal na cintigrafia em ambulatório, tal como tem sido descrito 10,14. O valor preditivo negativo foi melhor que o positivo, mostrando que a ecografia é potencialmente útil para excluir o diagnóstico de cicatriz mas menos potente para o inferir 10. A presença de RVU parece ser um factor de risco para recorrência de pielonefrite e justifica a realização de cintigrafia renal em caso de pielonefrite e seguimento de rotina, sobretudo para o grau III-V 16. Neste estudo, a presença de RVU identificado pela CUM foi frequente (20%), sendo este valor consistente com outros estudos 5,17, e o RVU de grau III-V correspondeu a 7,4% (7/94) do total. Assim, outro possível preditor de cicatriz renal é a presença de RVU. Alguns estudos indicam que é um preditor inadequado 10,12,18, enquanto que noutros parece que a cicatriz renal pode ser mais frequente em crianças com RVU grave, relativamente às sem refluxo 1,11. Neste grupo de doentes, a presença de RVU de grau II esteve significativamente associada à presença de lesão do parênquima renal na cintigrafia em ambulatório. Embora o risco relativo seja reduzido, de acordo com o que tem sido descrito, o valor preditivo positivo foi elevado (100%). Em relação à presença de cicatriz renal, esta foi positiva em 42% dos casos estudados, sendo este o principal factor determinante do prognóstico destas crianças 5. Observou-se ainda desaparecimento frequente da lesão renal comparando a cintigrafia em internamento e em ambulatório. Tem-se estudado o intervalo de tempo após a pielonefrite adequado para a realização da cintigrafia 1,5,12,19. Os dados deste estudo parecem favorecer o retardar da realização de cintigrafia após a infecção aguda. Note-se que em nove crianças se evidenciaram lesões sugestivas de pielonefrite anterior sem diagnóstico clínico (cicatrizes múltiplas e rim pequeno hipocaptante), tal como já foi descrito 5. Outro objectivo deste estudo era testar a efectividade da ecografia renal para a identificação de pielonefrite aguda e de RVU. Segundo a literatura, a ecografia não é tão sensível como a cintigrafia na detecção de lesão do parênquima renal 5,11,17,20. De facto, relativamente à localização da infecção em fase aguda (em relação à cintigrafia em internamento), a razão de verosimilhança e os valores preditivos da ecografia realizada durante o internamento foram baixos, tal como tem sido descrito 10,11, 14. Por outro lado, a utilização da ecografia renal para detectar RVU é controversa 1. Neste estudo, a ausência de dilatação da árvore pielo-calicial na ecografia realizada em fase de doença excluiu de forma significativa a presença de RVU, com razão de verosimilhança e valor preditivo negativo elevados, mais elevados do que os descritos na literatura 10,21,22. Assim, os resultados deste estudo parecem favorecer a utilização precoce da ecografia renal e vesical como método de exclusão, sendo repetida posteriormente se estiver alterada 1. Conclusões Os valores de proteína C reactiva e a presença de RVU de grau II estiveram associados a cicatriz renal. A ausência de dilatação da árvore pielocalicial na ecografia renal excluiu com acuidade a presença de RVU na CUM. Agradecimentos Um agradecimento muito especial ao Dr. Ferra de Sousa, pelo apoio, empenho e entusiasmo na elaboração e concretização deste estudo. Referências 1. American Academy of Pediatrics. 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