9 Gases reais Johannes Diderik van der Waals (1837-1923) Físico holandês nascido em Leyden, cujo nome ficaria para sempre ligado à mais famosa equação de estado de líquidos e gases. Em 1873 obteve o seu doutoramento pela Universidade de Haia, com uma Tese intitulada Over de Continuïteit van den Gas - en loeistoftoestand (Sobre a continuidade dos estados gasosos e líquido), na qual se deduz pela primeira vez a equação de estado de van der Waals. Em 1876 tornou-se o primeiro Professor de Física da recém criada Universidade de Amsterdão. Esteve na origem de várias teorias de importante relevo, tal como a Lei dos Estados Correspondentes em 1880 (que estabelece uma equação de estado geral para qualquer sistema, em função dos seus parâmetros críticos), a Teoria das Soluções Binárias em 1890 (na qual relaciona a sua equação de estado com o Segundo Princípio da Termodinâmica) e uma teoria sobre capilaridade em 1893. Em 1910 foi laureado com o Prémio Nobel da Física. 157
9.1 Introdução O estudo dos gases reais pode ser realizado através do factor de compressibilidade Z, o qual é um número adimensional definido como Z p nrt = p Nk B T. (9.1) A figura 9.1 representa a variação isotérmica do factor de compressibilidade de um gás típico, em função da pressão. Figure 9.1: Factor de compressibilidade em função da pressão Observando esta figura verifica-se que: Z tende para 1 quando a pressão tende para zero, qualquer que seja a temperatura. Esta propriedade geral dos gases permite explicar por que motivo os gases reais se comportam como gases perfeitos, no limite de baixas diluições lim Z = 1 p 0 lim p NK B T ; N/ 0 Z é constante e igual a 1 para temperaturas acima da temperatura crítica, qualquer que seja a pressão. Esta propriedade geral dos gases permite explicar porque motivo os gases reais se comportam como gases perfeitos, no limite fluido de muito altas temperaturas lim Z = 1 lim p NK B T. T T C T T C 158
9.2 O desenvolvimento do virial As observações anteriores permitem estabelecer uma equação de estado para qualquer gás real, obtida como uma correcção à equação de estado dos gases perfeitos, através de um desenvolvimento polinomial de Z em torno de N/ = 0 Z p Nk B T = 1 + B ( ) N + C ( ) 2 N +.... (9.2) A equação (9.2) designa-se por desenvolvimento do virial e os coeficientes B, C,... recebem respectivamente o nome de primeiro, segundo,... coeficientes do virial. Se o gás for perfeito tem-se naturalmente B = C =... = 0. Se o gás não for perfeito, mas tiver uma densidade pouco elevada, podem desprezar-se os termos de ordem superior à segunda no desenvolvimento do virial, escrevendo ou ainda p Nk B T 1 + B p k B T N [ 1 + B ( ) N ( )] N,. (9.3) Em geral, o coeficiente B é uma função da temperatura e o seu comportamento pode ser estimado com base em considerações microscópicas. A baixas temperaturas, a energia cinética microscópica ε m k das moléculas é pequena. Nessas condições, as fracas interacções atractivas de longo alcance entre as moléculas 32 são dominantes, conduzindo a uma separação intermolecular inferior à que se obteria num gás perfeito (isto é, na ausência de interacções). Esta atracção tende a reduzir a pressão do gás 33 abaixo do seu valor num gás perfeito, permitindo concluir que B é negativo a baixas temperaturas. A temperaturas mais elevadas, a energia cinética microscópica das moléculas torna-se suficientemente importante para que se possa ignorar a 32 Os resultados apresentados neste capítulo são obviamente também aplicáveis ao caso em que as partículas constitutivas do gás são átomos. 33 Recorde-se que a pressão de um gás corresponde à força média por unidade de área, exercida pelas suas partículas constitutivas sobre as paredes do recipiente onde se encontra. Assim, é de esperar que a pressão de um gás seja tanto menor quanto maiores forem as suas forças atractivas intermoleculares. 159
fraca energia potencial atractiva intermolecular. Nessas condições, a forte interacção repulsiva de curto alcance entre as moléculas torna-se dominante (as moléculas têm agora energia suficiente para se aproximarem muito umas das outras), conduzindo a uma separação intermolecular superior à que se obteria num gás perfeito. Esta repulsão tende a aumentar a pressão do gás acima do seu valor num gás perfeito, permitindo concluir que B é positivo a altas temperaturas 34. Os efeitos anteriores podem ser descritos graficamente, representando a energia potencial intermolecular ε p,in em função da distância relativa r entre moléculas. A figura 9.2 foi obtida para a chamada energia potencial de Lennard-Jones, a qual obedece à expressão [ (r0 ) 12 ( r0 ) ] 6 ε p,in (r) = u 0 2, (9.4) r r onde u 0 representa o valor mínimo da energia potencial, correspondente à posição r = r 0. A equação (9.4) fornece uma expressão semi-empírica para a energia potencial intermolecular, a qual pode ser obtida no quadro da Mecânica Quântica. Figure 9.2: Energia potencial de Lennard-Jones em função da distância relativa intermolecular 34 Alternativamente, pode argumentar-se que o aumento de energia cinética microscópica, associado a um aumento de temperatura, conduz a um incremento das colisões das moléculas com as paredes do recipiente que as contém, isto é a um aumento da pressão. 160
Nesta figura representaram-se duas linhas horizontais a traço interrompido, correspondentes a dois valores extremos da energia total ε = ε m k + ε p,in do sistema. Os pontos de intersecção dessas linhas com a curva de energia potencial definem as posições r para as quais se verifica ε ε p,in, (9.5) o que implicitamente significa ε m k 0. Essas posições dependem naturalmente da temperatura do sistema: a alta temperatura verifica-se ε alta temp. ε p,in (r min ) 1, confirmando-se que existe um domínio de interacções repulsivas de curto alcance; a baixa temperatura verifica-se ε baixa temp. ε p,in (r max ) < 0, confirmandose que existe um domínio de interacções atractivas de longo alcance. As considerações qualitativas anteriormente feitas permitem que se proponha a seguinte dependência funcional com a temperatura, para o primeiro coeficiente do virial: B < 0, se T é baixo; B > 0, se T é elevado; B é uma função crescente de T. Na secção seguinte obteremos uma expressão de B que obedece a esta dependência funcional, utilizando uma forma simplificada da energia potencial intermolecular de Lennard-Jones. 161
9.3 O gás de van der Waals amos admitir que a energia potencial de interacção ε p,in (r) entre um par de moléculas é do tipo Lennard-Jones, verificando {, r = r ε p,in (r) = ( 0 u r0 ) s (9.6) 0 r, r > r 0. A forma desta energia potencial supõe que as moléculas se comportam como esferas rígidas de raio r 0 /2. Deste modo, quando r = r 0 (correspondendo à separação mínima entre moléculas - ver figura 9.4) a energia potencial tende para infinito; e quando r > r 0 a energia potencial cresce lentamente (geralmente seguindo uma lei de potência com s = 6), traduzindo uma fraca atracção intermolecular. Na figura 9.3 representa-se graficamente esta energia potencial em função da distância relativa entre moléculas. Figure 9.3: Energia potencial de Lennard-Jones para um modelo de esferas rígidas, em função da distância relativa intermolecular Utilizando o formalismo da Física Estatística, para a energia potencial de interacção intermolecular (9.6), pode mostrar-se que 35 B = b a (9.7) k B T ( ) 3 a b u 0 (s > 3) (9.8) s 3 b 2π 3 r3 0, (9.9) 35 Este resultado será demonstrado no Capítulo 13. 162
onde a e b, são coeficientes relacionados com a existência de interacções atractivas intermoleculares e com o facto das várias moléculas terem dimensões não nulas, respectivamente. Repare-se que a é uma função dos parâmetros u 0 e s, característicos da energia potencial intermolecular, enquanto que b é uma função da distância mínima r 0 de aproximação entre moléculas. Note-se que a expressão (9.7) garante que B é uma função crescente da temperatura, sendo negativo a baixas temperaturas e positivo a altas temperaturas, tal como previsto na secção 9.2. O significado físico exacto do coeficiente b pode ser facilmente analisado, recorrendo a considerações puramente geométricas. No modelo das esferas rígidas cada molécula tem raio r 0 /2 o que permite definir, para cada par de moléculas, um volume inacessível a cada molécula ideal (isto é sem dimensões, suposta representada pelo seu centro geométrico), devido à presença da outra molécula (ver figura 9.4). Figure 9.4: Aproximação máxima entre duas esferas rígidas de raio r 0 /2. A zona sombreada representa o volume inacessível ao par de moléculas Tem-se pois, sucessivamente: volume inacessível devido a um par de moléculas (correspondente ao volume de uma esfera de raio r 0 ) 4 3 πr3 0 ; número total de pares de moléculas (para um sistema com N 1 moléculas) N(N 1) 1 2! 2 N 2 ; 163
volume total inacessível (devido às dimensões das moléculas) ( ) 1 4 2 N 2 3 πr3 0 = 2π 3 r3 0N 2 ; volume inacessível por molécula (devido a todos os pares de moléculas) 2π 3 r3 0N b N, concluindo-se assim que b é aproximadamente igual ao volume total inacessível por par de moléculas. Substituindo a expressão (9.7), do primeiro coeficiente do virial, na equação de estado (9.3) obtém-se ou seja p + a ( N p k B T N [ 1 + (b a k B T ) 2 = N ( k BT 1 + b N ) ) ( )] N N k BT 1 b ( N, ). (9.10) No último passo suposémos que b (N/ ) 1, o que equivale a admitir que o volume inacessível por molécula b N é muito pequeno comparado com o volume do recipiente ou, de forma equivalente, que o volume médio disponível por molécula /N é muito grande comparado com o volume b ocupado por cada par de moléculas. Esta aproximação, válida no limite de baixas densidades do gás, permite escrever a equação de estado (9.10) na forma da chamada equação de van der Waals (obtida em 1873) [ ) ] 2 p + a ( N ( Nb ) = Nk B T, (9.11) ou em termos do número n de moles do gás ) (p + a n2 ( nb) = nrt, (9.12) 2 164
onde (note-se que nb representa o volume total inacessível por mole de moléculas) a N 2 Aa (9.13) b N A b. (9.14) A equação (9.11) fornece uma correcção à equação de estado dos gases perfeitos, supondo uma pressão manométrica p mais reduzida, devido à presença de forças atractivas intermoleculares, e um volume do recipiente superior ao volume acessível às moléculas, isto é p perfeito = p + a ( N ) 2 p < p perfeito perfeito = Nb > perfeito p perfeito perfeito = NRT. Os coeficientes a e b da equação de van der Waals podem ser não só calculados a partir das expressões (9.8)-(9.9) e (9.13)-(9.14), mas também ajustados empiricamente a partir de transformações isotérmicas. A tabela 1 apresenta valores destes coeficientes para diferentes gases. Gás a (J m 3 mol 2 ) b (m 3 mol 1 ) He 3, 44 10 3 23, 4 10 6 H 2 24, 8 10 3 26, 6 10 6 O 2 138 10 3 31, 8 10 6 N 2 130 10 3 38, 0 10 6 CO 2 366 10 3 42, 9 10 6 H 2 O 553 10 3 30, 4 10 6 Table 1: Coeficientes de van der Waals para vários gases 9.3.1 Diagrama de isotérmicas de van der Waals A dedução antes apresentada para a equação de estado de van der Waals apoiou-se no pressuposto de que o sistema em estudo apresenta um elevado grau de diluição. É no entanto habitual encarar (9.11) como uma equação 165
fenomenológica, utilizando-a num largo espectro de valores de T e, em clara contradição com o pressuposto anterior. Os resultados obtidos são em geral muito bons, como se pode comprovar a partir do diagrama de isotérmicas de Andrews para o gás de van der Waals, representado na figura 9.5. Figure 9.5: Diagrama de isotérmicas de Andrews para o gás de van der Waals Uma análise desta figura mostra que a equação (9.11) é inclusivamente capaz de prever a mudança de estado líquido-gás, possuindo apenas algumas limitações na descrição do seu comportamento isobárico (ver também a figura 8.8). Deve no entanto referir-se que é possível corrigir a dupla mudança de concavidade observada nessa zona de transição, utilizando argumentos físicos que acentuam a coerência da equação de van der Waals. Esta análise está fora do âmbito deste livro introdutório de Termodinâmica, podendo encontrar-se em diversas obras de referência [F. Reif, Fundamentals of Statistical and Thermal Physics, McGraw-Hill (1983)], [J.-P. Perez, Thermodynamique. Fondements et applications, Dunod (2001)]. Note-se também que, no limite de altas temperaturas T T c e elevadas diluições nb, a equação (9.12) de van der Waals conduz à equação de estado dos gases perfeitos p nrt, o que justifica a forma hiperbólica da sua isotérmica supercrítica (ver curva T > T c da figura 9.5). 166
9.3.2 Coordenadas do ponto crítico da equação de van der Waals As coordenadas do ponto crítico da equação de van der Waals podem ser calculadas, procurando o ponto de inflexão da isotérmica crítica. Assim, mediante imposição das condições ( ) p = 0 T =T ( ) C 2 p 2 = 0 T =T C p C = nrt C C nb n2 a C 2, obtém-se C = 3nb T C = 27Rb 8a p C = a (9.15) 27b 2. A partir dos resultados anteriores é possível calcular o factor de compressibilidade Z C de um gás de van der Waals no seu ponto crítico Z C = p C C nrt C = 3 8 = 0, 375, (9.16) o qual concorda com o intervalo de valores de Z C (entre 0,2 e 0,9) observado para a maioria dos gases reais. 167