O MITO DO CONCEITO DE HERÓI RESUMO ABSTRACT



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O MITO DO CONCEITO DE HERÓI Cléa Fernandes Ramos Valle 1 e Verônica Telles 2 RESUMO Nesse artigo são discutidos os vários conceitos de herói, sua construção histórica, e de como exerce seu papel de protagonista em diversos textos literários e em outras mídias, como o cinema. Também são ressaltados os aspectos convergentes e divergentes que se relacionam a um determinado grupo, conhecidos por protagonizarem narrativas de feitos ditos heróicos. Palavras-chave: herói. mito. literatura inglesa. ABSTRACT This article discusses some concepts of the hero, its historical construction, and how the hero performs the role of protagonist in literary texts as well as in other kinds of medias, such as the cinema. The convergent and divergent aspects which relate to a certain group known for playing the role of protagonist in narratives of so-called heroic deeds are highlighted. Key words: hero. myth. English literature. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986), define-se o termo herói como um homem extraordinário pelas suas qualidades guerreiras, triunfo, valor ou magnanimidade. Diante dessa definição, algumas interrogações surgem. Quais são as características universais imutáveis que têm definido o heroísmo ao longo dos tempos? O que é considerado grandeza heroica? Quais são os méritos da nossa admiração? Em um estudo mais detalhado pode-se perceber que o conceito de herói está intimamente ligado à sociedade que o criou, bem como à época de sua criação. Isso porque as qualidades inerentes a um determinado herói devem estar intimamente ligadas aos valores de sua época e às necessidades de um povo. Na Europa da Idade Média, por exemplo, não se valorizavam as realizações humanas. Vivendo tolhidos pelo pecado do homem, os escolásticos católicos romanos da Europa medieval enfatizavam a vida após a morte. A grandeza vinha de Deus, não do homem, e os verdadeiros heróis cristãos eram os mártires, os missionários e os padres. No século do Iluminismo, mudaram novamente os conceitos. Seria privilegiada a razão humana universal, a humanidade seria por si só heroica, pois havia grande uniformidade nas ações dos homens, em todas as nações e idades. O heroísmo democratizou-se no século 20, e desde então se acredita intrinsecamente que todo ser humano é heroico, de acordo com Joseph Campbell em O Heróis de mil faces (2007); o 1 Pós-doutora em Literatura Comparada (UERJ); Doutora em Literatura Comparada (UERJ); Mestre em Teatro (UNIRIO); Especialista em Literaturas de Língua Inglesa (UFF) e graduada em letras inglês-português (UFF). 2 Aluna do curso de Letras do ISAT.

2 poderoso herói, dotado de poderes extraordinários capaz de levantar o monte Geovardhan com um dedo e de se preencher a si mesmo com a terrível glória do universo, é cada um de nós: não o eu físico, que podemos ver no espelho, mas o rei que se encontra em nosso íntimo. Hoje, na aurora do século 21, ser um herói ainda é mais complexo. A transparência que os meios de comunicação exigem significa que falhas pessoais podem por vezes ensombrar as grandes ações aos olhos do público. E uma cidadania educada e multicultural raramente partilha de um padrão unificado de heróis. Por isso, o conceito de heroísmo atual reflete as areias movediças da história, baseando-se no mérito e na humanidade, valorizando as vitórias, enaltecendo assim atos altruístas. De fato, desde o surgimento dos meios de comunicação modernos e da transformação da indústria cultural numa entidade global e quase onipresente, através da televisão ou mais recentemente da internet, os heróis com os quais lidamos têm se modificado drasticamente. Não é de hoje que os heróis têm perdido um pouco daquela aura sagrada que os cercava. Desde a Antiguidade, quando o conceito de herói foi estabelecido pelos gregos, muita coisa mudou. Mas, como Bruno Bettelheim em A psicanálise dos contos de fada (2007) e Jung em Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2008) apontam em seus escritos, o herói é visto como uma necessidade psicológica do ser humano, sendo uma construção simbólica que cumpre funções importantes no nosso desenvolvimento. Campbell, com seus estudos de mitologia em O Herói de mil faces (2007), identificou os passos da "Jornada Mítica do Herói", uma espécie de história oculta dentro de todas as histórias, um esquema narrativo que estaria presente em quase todas as grandes histórias contadas pelos seres humanos, desde os mitos de criação, passando pelos contos de fadas e chegando até os arrasa-quarteirões de Hollywood. A classificação de uma personagem como "herói" ou "vilão" pelos critérios consensuais dependerá do grupo em que ela esteja inserida e não somente dos ideais dela. Se suas habilidades forem usadas de acordo com os critérios considerados heroicos pelo grupo, essa personagem será um herói. Isto equivale a dizer que ele pode ter os dons necessários, mas precisará da oportunidade e da disposição de seguir esses critérios para ser considerado um herói. Assim sendo, o conceito de herói muda de acordo com o tempo e o lugar, e muitas das vezes não se pode perceber muito bem o porquê de um tipo se tornar mais ou menos popular em um dado momento. Desta forma, este trabalho tem como objetivo demonstrar como algumas personagens se colocam como espelho das inquietações,

3 angústias e desejos da sociedade em que elas se inserem. Tomando por base a obra O Herói de mil faces de Joseph Campbel (2007), esta pesquisa irá fazer um comparativo entre três heróis ingleses de diferentes épocas. De acordo com o Dicionário de Etimológico da Língua Portuguesa (2007), a palavra mito (derivada do grego mytho) surgiu em nossa língua em 1858, e se trata de uma narrativa, geralmente de origem popular, sobre seres que encarnam simbolicamente as forças da natureza, aspectos da condição humana, fábula, representação idealizada de um estado da humanidade em um passado remoto ou num futuro fictício, coisa inacreditável, sem realidade. Carl G. Jung, em Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2008), sugeriu que pode existir um inconsciente coletivo, ou seja, os mitos seriam como sonhos de uma sociedade inteira, o desejo coletivo de uma sociedade. Os mesmos tipos de personagens parecem ocorrer nos sonhos tanto na escala pessoal quanto na coletiva. Esses personagens são os chamados arquétipos humanos. Os arquétipos são impressionantemente constantes através dos tempos nas mais variadas culturas, nos sonhos e nas personalidades dos indivíduos, assim como no mito do mundo inteiro. O Herói é uma figura arquetípica que reúne em si os atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica. O termo se destina originalmente a um protagonista de uma obra narrativa ou dramática. Para a mitologia grega, o herói estava na posição intermediária entre os deuses e os homens, sendo, em geral, filho de um Deus com uma mortal ou vice-versa. Portanto, o herói tinha dimensão semidivina. Exemplo perfeito é o de Hércules, que, segundo Thomas Bulfinch em O livro de ouro da mitologia (2007), é considerado um dos maiores heróis da mitologia grega (e romana). Hércules era filho de Zeus e Alcmena. Ao nascer, Zeus, para torná-lo imortal, pediu a Hermes (Deus mensageiro) que o levasse para junto do seio de Hera (Deusa do casamento) quando esta dormia, e o fizesse mamar. A criança sugou com tal violência que, mesmo após Hércules ter terminado, o leite da deusa continuou a correr, e as gotas caídas formaram no céu a Via Láctea e na Terra, a flor-de-lis. Hércules era símbolo do homem em luta contra as forças da natureza. A sua primeira façanha deu-se quando se dirigiu à Beócia, cidade próxima de Tebas, perseguiu e matou com apenas as mãos um enorme leão que devorava os rebanhos de Anfitrião e de Téspio. A maior e mais famosa façanha desse herói foram os seus doze trabalhos. A principal característica que define o arquétipo do herói é a capacidade que ele tem de se sacrificar em nome do bem- estar comum. Nas obras literárias e nos filmes de

4 ação, estes arquétipos são personificados, preferencialmente, pelo protagonista. É ele que vai conduzir a história aos olhos do espectador. O desenvolvimento da trama está pautado nas ações do herói perante o ambiente que lhe é apresentado e no resultado destas ações. Portanto, para um roteiro ser bem aceito pelo público, é preciso que este tenha uma identificação com o herói. Quanto mais humana a feição do seu herói, mais provável será a identificação. É preciso que ele tenha suas qualidades louváveis e desejadas pelo espectador e ao mesmo tempo possua fraquezas que o tornem mais humano e mais próximo. Com o herói sendo o protagonista, o roteiro se torna um relato da aventura deste. Uma jornada onde ele deixa o seu mundo comum e cotidiano e parte para novas descobertas e desafios. O estímulo para esta jornada é a mudança de algo em seu mundo comum, fazendo com que ele parta para buscar a restauração deste, ou por uma insatisfação em seu mundo parta para provocar uma mudança. Em ambos os casos o motivo da jornada é a falta de alguma coisa. O herói se sente incompleto e vai à busca de sua plenitude. O resultado é a transformação do próprio herói. O confronto com a morte é outra característica deste arquétipo. A morte pode ser física ou simbólica, mas está presente. Na maior parte dos casos o herói se depara com a morte eminente e triunfa sobre ela; quando morre, se torna um mártir, quando renasce a partir de sua própria destruição, o herói triunfa do mesmo jeito. O arquétipo do herói não é exclusivo do protagonista; muitas personagens podem ter atitudes heroicas. Da mesma forma, o herói pode ter características de outros arquétipos. A riqueza de uma personagem é sua complexidade, a capacidade de assumir outros arquétipos, sem se esquecer do principal, uma dimensão humana permitindo a identificação e a credibilidade. Poucos acreditam em heróis que só praticam o bem pelo bem e em vilões que só praticam o mal pelo mal. Após fazer um extenso apanhado dos diversos heróis mitológicos e de suas buscas, Campbell (2007) apresenta um argumento em que os principais mitos seguem uma estrutura comum, com pontos semelhantes em suas buscas. A este argumento Campbell deu o nome de Monomito. A partir da definição do monomito (que se subdivide nos arquétipos do herói), Campbell passa a analisar os passos de sua jornada, desde o chamado para a aventura, o encontro com o velho sábio, passando pelas missões e provas heroicas que o mito deve enfrentar até a entrada no coração das trevas para enfrentar o desafio último.

5 Antigamente, os heróis dos mitos ou dos contos de fada eram passados de pai para filho, de avó para os netos, através das histórias contadas na hora de dormir ou através de livros e compilações de autores como os Irmãos Grimm ou Hans Chris Andersen. Autores mais modernos, como C. S. Lewis, de As Crônicas de Nárnia (1950), J. R. R. Tolkien, de O Senhor dos Anéis (1954), e no Brasil nomes como Monteiro Lobato realizaram com seus trabalhos uma espécie de releitura desses mitos e heróis do passado, criando novas mitologias, novos heróis, que seguiam (ou não) as tradições antigas. (SILVA, 2005) A História desde seus primórdios possui vários tipos de heróis. Flávio René Kothe explicita em O Herói (2000) que a sociedade se constitui por classes alta e baixa, e que as mesmas refletem na literatura o modo de ser das personagens e nos enredos quanto à hierarquia dos gêneros e das obras. Segundo o autor, nas narrativas dominantes, ditas altas, há sempre a presença do herói como derivado dos gêneros trágicos e épicos e, em contrapartida, nos dominados, os ditos baixos, temos a figura de herói baixo ou do antiherói, próprio da classe popular e resultante dos gêneros cômicos e satíricos. O herói clássico, segundo Kothe, são os heróis da classe alta, que procuram demonstrar a classe desta classe (2000, p. 12). Entenda-se por herói clássico o herói apresentado nas epopeias gregas e latinas, como a Ilíada e a Odisséia, de Homero, e a Eneida, de Virgílio. O modelo básico desses heróis é Aquiles, o grande herói da Guerra de Tróia, que, podendo escolher entre viver muitos anos, desde que não tomasse parte na guerra, ou morrer muito jovem, se viesse a se tornar um herói da guerra, escolheu tornar-se herói. O herói trágico, assim como na epopeia, é retratado na tragédia, situa-se entre os deuses (divindade) e o homem. O herói trágico não é o mesmo que o herói da epopeia, ele não é um exemplo a ser seguido, não representa um ideal de homem como o herói épico. Ele representa a falta de comedimento e acaba em sofrimento. O homem grego vê no herói trágico a sua própria dor; portanto, serve de um alerta para não cair no mesmo erro que ele. Podemos tomar como exemplo de herói bíblico Moisés, que foi o homem escolhido pelo Criador para liderar os hebreus rumo à Terra Prometida. Para cumprir essa missão divina, ele desafiou o império egípcio e enfrentou vários obstáculos para tentar conduzir seu povo em segurança. Para Kothe (2000), o herói picaresco que advém do pícaro, que é a personagem com características daquilo que hoje chama-se malandragem, beira o trágico e se assume como um épico às avessas. O pícaro é de extração social baixa e se comporta de modo

6 pouco elevado, mas se eleva literariamente e conta até mesmo com a complacência e a simpatia do leitor. Ele é o modo pelo qual a classe baixa consegue entrar no picadeiro da literatura. O pícaro é um herói cuja grandeza é não ter grandeza nenhuma. Ele é o reverso dos grandes heróis épicos e trágicos. Utiliza-se da classificação de anti-herói para precisar a personagem pícaro apresentando-o como uma antítese do herói cujas ações-funções são descritas como modelares, pensadas no bem comum e pautadas pela ética. Uma das características do pícaro é obter o máximo trabalhando o mínimo possível. A sátira ou o cômico surge a partir das ações absurdas de seus heróis. Tal perspectiva pode ser observada na personagem João Grilo em O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1957), que, a fim de "ganhar um dinheirinho extra", burla uma mulher, vendendo um gato que "descome dinheiro". O herói nacional é a personagem da história de um povo que lutou em prol de seus cidadãos e praticou atos de autossacrifício pelo seu país e trabalhou em um grande feito no campo de batalha, ou ainda numa força de trabalho. Apesar da ausência de heróis na memória dos brasileiros, algumas figuras ilustres se destacam e parecem ter seus feitos históricos bem claros para a maioria dos cidadãos. É o caso de Tiradentes, um herói com direito a feriado nacional, o que torna mais fácil a sua memorização e valorização. Não se pode deixar de notar nesse ponto a influência da ideologia dominante na construção destes personagens. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008. CAMPBEL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Editora Pensamento, 2007. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon Editora Digital, 2007. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A, 1986. JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Maria Luiza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008. KOTHE, Flávio R. O Herói. São Paulo: Editora Ática, 2000. SILVA, Alexander Meireles da. Literatura Inglesa para Brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna Ltda, 2005. SUASSUNA, Ariano. O Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Editora Teatro Moderno, 1979.