CONTOS DE FADA: HISTÓRIAS DE TODOS OS TEMPOS. ORIGENS NO IMAGINÁRIO DO SUJEITO COMPLEXO RESUMO



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Transcrição:

CONTOS DE FADA: HISTÓRIAS DE TODOS OS TEMPOS. ORIGENS NO IMAGINÁRIO DO SUJEITO COMPLEXO PETRAGLIA, Izabel 1 VASCONCELOS, Maria Aparecida Flores de Cintra 2 RESUMO O objetivo deste trabalho é refletir sobre a importância das narrativas, em especial, dos contos de fada, para a constituição do ser humano complexo. Esses contos exercem a função de propiciar a auto-análise do sujeito, num ir e vir constante, entre real e imaginário, promovendo a facilitação de sua aprendizagem e, portanto a transformação da sociedade. Discorreremos sobre a origem e a história dos contos de fada que, desde tempos longínquos, lhe falam de sua vida na relação com os semelhantes ou com os deuses. Este estudo considera ainda, formas de expressar processos conscientes e inconscientes do sujeito, apontando para a perspectiva de uma educação complexa e transdisciplinar, que além de características objetivas também considere a subjetividade do estudante para uma nova compreensão da realidade. PALAVRAS CHAVE: Contos de fada; sujeito; educação complexa; transdisciplinar. ABSTRACT This paper aims to reflect upon the importance of the narratives, in particular of the fairy tales, for the constitution of the complex human being. These tales 1 Doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho São Paulo SP izabelpetraglia@terra.com.br. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho São Paulo SP cintravasconcelos@gmail.com.

operate providing the subject a self-analyses in a constant movement between the real and the imaginary facilitating learning and therefore the transformation of the society. We will write about the origin and the history of fairy tales that since distant times talk about life in relation to equal others or to gods. This study also considers the ways the subject expresses conscious or unconscious processes, indicating to the perspective of a complex and transdisciplinary education that besides the objective characteristics also considers the students subjectivity for a new comprehension of reality. KEY-WORDS: Fairy tales; subject; complex education; transdisciplinary. Como não disponho previamente de uma cultura-verdade, parto com um ardor insaciável, através da literatura, para uma vida imaginária, onde encontrarei as verdades de minha vida concreta. Edgar Morin (1997, p.19) O ser humano parece ter necessidade de se conhecer, admirar e questionar a própria existência; tarefa primordial da filosofia. Uma importante forma de refletir-se é por meio das artes, em especial a literatura que, exerce a função de propiciar a auto-análise, num ir e vir constante, entre real e imaginário, como aponta Morin, na epígrafe. Transcender a realidade e viver a fantasia e o sonho é comum aos humanos que se nutrem de sabedoria, mas também de afetos, poesia, quimeras e ilusões. De acordo com essa perspectiva, coloca-se então este trabalho, cujo objetivo é o de refletir sobre a importância das narrativas, em especial, dos contos de fada, que à luz do pensamento complexo, podem contribuir para a reflexão e a aprendizagem do ser humano, levando em conta a constituição de um sujeito complexo. Discorreremos também, sobre a origem e a história dos contos maravilhosos, tendo em vista que a filosofia da educação pode acolher e estimular tais contribuições, apontando para a necessidade de uma educação

complexa e transdisciplinar que leve em conta além dos aspectos objetivos, também a subjetividade, em sua dimensão simbólica e imaginária. Origem Desde tempos longínquos, o ser humano se deslumbra com histórias narradas e, em particular, com contos de fada e contos maravilhosos, pois, direta ou indiretamente lhe falam de sua vida, seja relacionada com seus semelhantes, ou seja, relacionada com os deuses. Essas histórias, narrativas populares são legados de um passado distante, que podem ser caracterizadas como contos de fada, romances, contos maravilhosos ou mitos. A origem dessas narrações está nas histórias ancestrais que eram relatadas oralmente pelos povos antigos e que, embora contadas e recontadas durante longos anos, assumiram contornos diferenciados, modificando-se, mas, se mantiveram vivas nos diversos cantos do mundo. São da ordem das coisas que os anos não conseguem apagar, e que voltam a encantar os sujeitos, sempre que estes permitem deixarem-se tocar. O ser humano tem sede de conhecimento e, com isso, curiosidade e mistério assumem espectros de desafios. Essas histórias, de uma maneira ou de outra, acabam por refletir a psique humana, com seus desejos e amores, com seus receios e esperanças. Os contos de fada são narrativas maravilhosas, pertencentes à Literatura Infantil Clássica, e estão contidos em livros preciosos que nos transportam para um mundo em que tudo é possível. Trata-se das interrelações do mundo mágico com o mundo real. Os contos de fada e os contos maravilhosos são formas de narração provenientes de fontes diferentes, estão de acordo com problemáticas diversas, embora ambos pertençam a um mundo imaginário. Os contos maravilhosos tiveram a sua origem a partir das narrativas do oriente, e têm como elemento principal, problemáticas sociais, no sentido do herói buscar a

própria realização no âmbito sócio-político e econômico e, incorporam também, preocupações éticas. Os contos de fada, por sua vez, constituem-se na problemática existencial, em que o ser humano está em permanente busca de realização profunda e pessoal, tendo como eixo central a busca do herói. O conto de fada também se relaciona à união dos afetos e dos encontros entre o masculino e o feminino. Assim se expressa Coelho: A efabulação básica do conto de fadas expressa os obstáculos ou provas (...) como um verdadeiro ritual iniciático, para que o herói alcance sua auto-realização existencial, seja pelo encontro de seu verdadeiro eu, seja pelo encontro da princesa, que encarna o ideal a ser alcançado. (Coelho, 1991 a: 13). Nos contos de fada encontram-se pensamentos e idéias resistentes e ricos em sapiência, que no decorrer dos séculos se mantiveram intactos, vivos em sua essência, considerando que persistem nas narrativas. Os contos sobreviveram às grandes mudanças nas civilizações, às violências e guerras, aos massacres de várias gerações, às mudanças de mentalidade e visões de mundo. Nessa direção também se manifesta Estés: (...) os sentimentos grandes e profundos gravados nos contos são como o rizoma de uma planta, cuja fonte permanece viva sob a superfície do solo mesmo durante o inverno, quando a planta não parece ter vida à superfície. A essência perene resiste, não importa qual seja a estação: tal é o poder do conto. (Estés, 2005: 11-12). Os contos de fada refletem a estrutura básica da psique; embora o conto possa ter origem a partir de uma saga local, torna-se uma abstração, que, contada inúmeras vezes e guardada na memória, atinge mais direta e profundamente as pessoas. Por meio de um conto, tanto adultos como crianças

vivenciam experiências mágicas, imaginárias e mitológicas, que correspondem à realidade subjetiva. Como a literatura primordial tem um caráter mágico e fantasista, justificase a compreensão da palavra fada. Do latim - fatum, que significa fatalidade, oráculo, destino e, tem a mesma origem semântica, tanto na França, como na Inglaterra, na Espanha, ou em Portugal. Pertencentes ao folclore europeu, as fadas representam seres fantásticos e se revestem de poderes sobrenaturais, ajudando e orientando os humanos a encontrar soluções e respostas aos seus problemas. Geralmente as fadas encarnam o Bem, mas podem ter uma natureza dual, representando também o Mal, e daí apresentam-se sob a forma de bruxas. Há de se lembrar da personagem Baba Yaga, considerada uma antifada, que, no contexto eslavo, representa uma mulher velha, feia e corcunda, que vive numa cabana que se encontra na floresta. É importante salientar que as fadas em sua origem, estavam ligadas aos cultos religiosos, como mensageiras do outro mundo. Parece não haver dúvida entre os estudiosos, de que os contos de fada têm sua origem nos povos pagãos, e em particular, nos celtas, que tiveram grande importância no processo de formação da cultura ocidental, tanto por meio de sua inteligência prática e criadora, como também pela relevância dos valores espirituais. Eles mantinham uma cultura rica em relação às artes e à espiritualidade. Os celtas surgiram na Europa Central, provavelmente advindos da Ásia Menor, em 2000 a.c., e se espalharam pela Gália; Península Ibérica; Ilhas Britânicas, sendo submetidos ao domínio romano. Aqueles que escaparam do controle de Roma fixaram-se na Bretanha e, se misturaram aos povos indígenas, os bretões. Os celtas dividiam-se em tribos e clãs, e formavam um povo sedentário, de pastores, que guerreavam apenas para defenderem suas terras; demonstravam uma facilidade para se adaptarem aos povos com os quais se

relacionavam, embora não abrissem mão da sua própria cultura e de suas crenças religiosas. Eram governados por uma casta sacerdotal, constituída pelos druidas. Como se dedicavam também à agricultura, que era considerada tarefa de mulheres, rendiam culto às divindades femininas. Havia, também, mulheres druidas, que eram consideradas sacerdotisas e profetisas. A característica mais marcante do espírito céltico era a tendência à fantasia e ao mistério, e acreditavam na imortalidade do corpo e em outra vida para além da morte. É importante ressaltar que, em função da própria cultura e visão de mundo, os celtas estabeleceram uma relação pacífica com os cristãos, o que favoreceu a existência de um sincretismo entre o espírito racional cristão e o espírito mágico céltico. Os celtas influenciaram os seus dominadores, devido à coesão mantida pela casta sacerdotal, sendo que dessa forma, a sua religiosidade forneceu elementos propícios para a instalação do cristianismo na Europa, havendo a junção da liturgia cristã com os rituais pagãos, preparando, dessa maneira, os povos bárbaros para o culto da Virgem Maria. As primeiras referências às fadas aparecem na literatura cortesã cavaleiresca 3, que surgiu na Idade Média, continuando no Renascimento, o interesse pelos contos arturianos 4 e pelos contos maravilhosos, em que sobrevivem não somente as fadas, como também as banshee irlandesas 5, as 3 Literatura cortesã cavaleiresca: romances de aventura, envolvendo o amor cortês, em que a mulher era inacessível e os amantes deveriam controlar suas paixões. A classe cavaleiresca pertencia a uma aristocracia guerreira, passando pelo ritual de sagração e investidura, significando um modelo ético-moral para o cavaleiro e canalizando a violência. O fenômeno cavaleiresco nutria o imaginário, envolvido em tom cada vez mais místico. 4 O ciclo arturiano é apresentado como um conjunto literário, vasto e fértil, com duas histórias entrelaçadas: uma de Camelot, utopia da virtude cavaleiresca, envolvendo o rei Artur e Lancelot e outra, sobre vários cavaleiros envolvidos na busca do Santo Graal. 5 Banshee são entes fantásticos da mitologia celta - da Irlanda - conhecida como fada mulher, que quando avistada por alguém, por certo essa pessoa morreria.

mouras encantadas 6, as xamãs 7 e, as damas verdes germânicas 8, representando vivências além da lógica, da racionalidade. Embora os contos de fada tivessem um sentido de verdade, ligado à realidade do cotidiano humano, tornaram-se, no decorrer dos séculos, isentos do sentido original, de sua essência arcaica, em que a fantasia acabou por substituir a magia, transformando-se em contos infantis. E, sobre o sentido de verdade que oscila entre realidade e fantasia, manifesta-se Morin, acerca de suas leituras infantis: Eu era um onívoro no universo que se chamaria hoje multimídia. Mas, juntamente com o cinema, era o romance que nutria minha substância mais íntima. Meu amor pela leitura veio desde os primeiros anos escolares, quando devorei os contos de Ségur, a coleção Nelson, os romances cujos heróis são animais, como Michael chien de cirque ou Croc Blanc. 9 (Morin, 1997: 18) O estudo da literatura nos revela que a primeira coleção de contos de fada, compilada por Charles Perrault, na França do século XVII, com o nome 6 As moiras ou mouras encantadas do folclore português - são jovens donzelas de grande beleza e perigosamente sedutoras. Seres fantásticos, com poderes sobrenaturais, que apresentam características similares às banshee. 7 De origem tunguska - da Sibéria - Xamãs eram pessoas capazes de entrar em transe transportando-se a outros mundos e dimensões. Munidos do dom da cura, também podem estabelecer contato com espíritos ancestrais São os guardiões da história oral de seu povo. 8 Damas verdes São fadas que moram em árvores - da tradição germânica; muito populares também na Inglaterra, onde são confundidas com as Dríades e com os espíritos dos bosques. 9 Os contos e romances citados pertencem à literatura infantil francesa. Sophie Rostopchine, a Condessa de Ségur (1799-1874) foi uma escritora russa reconhecida na Europa, do século XIX, pela criação de obras-primas da literatura infantil. Detentora de vasta obra criou personagens eternos e clássicos do imaginário infantil. No Brasil, os seus livros mais conhecidos são: Os desastres de Sofia e Novos contos de fadas. (Nota das autoras)

de Contos da Mãe Gansa, era constituída de oito histórias, que eram provenientes da memória popular, tais como: Chapeuzinho Vermelho; As Fadas; Cinderela ou Gata Borralheira; O Barba Azul; Henrique de Topete; O Pequeno Polegar; A Bela Adormecida no Bosque e o Gato de Botas, sendo ampliada, na segunda edição, com os seguintes textos: A Pele do Asno; Grisélidis e, Desejos Ridículos. Perrault foi considerado o iniciador da Literatura Infantil, embora seu objetivo primeiro não tenha sido o de escrever histórias para divertir crianças, mas sim, valorizar a criação moderna francesa em relação à literatura clássica dos gregos e romanos, apresentada até então, como modelo de superioridade. Outra demanda de Perrault, ao longo da vida, foi o seu empenho na defesa da causa feminina. Ainda no século XVII, nos salões elegantes de Paris, havia mulheres dotadas de certa cultura e sensibilidade artística, que se ligavam aos intelectuais e artistas a fim de compartilharem com eles discussões literárias e culturais. Era comum a leitura dos romances preciosos, cuja matéria fantástica e sentimental estava mais próxima do pensamento popular do que do clássico oficial. É importante lembrar que a época em que Perrault viveu na França, foi marcada pelo confronto entre o racionalismo (por uma nova ordem da sociedade) e o imaginário (por meio do sonho e da fantasia), que faziam parte dos romances preciosos. Eram verdadeiros contos de fada para adultos, se considerarmos que o romance precioso caracterizou-se pela aventura sentimental e pelo heroísmo da paixão. Nele, a dama inacessível e idealizada pelo amor cortês, cede lugar à dama também apaixonada, muito embora continuasse sendo respeitado o tabu da censura ao amor carnal. Na mesma época, Jean de La Fontaine resgata historietas presentes na memória popular, e as articula com pesquisas em fontes documentais. Inaugura então, a tarefa de reconfiguração de textos em versos, como, por exemplo, os que contêm pequenas histórias de animais. Por meio do trabalho de La Fontaine, o mundo culto pode conhecer as fábulas populares, tais como:

O Lobo e o Cordeiro; O Leão e o Rato, em que fica evidente o poder explorador do forte contra o fraco; A Cigarra e a Formiga, que apresenta a dicotomia entre o dever e o prazer; A Raposa e as Uvas, que propõe a reflexão sobre o desdenhar daquilo que não se pode alcançar; além de outras, como Perratte, a Leiteira; O Pote de Leite, e; etc. Embora a literatura infantil tenha surgido na França, ela foi definitivamente disseminada e expandida por toda a Europa e as Américas, somente um século depois. Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos 10 e folcloristas alemães, desenvolvem pesquisas lingüísticas dos contos de tradição oral, e concluem que muitas histórias, através de seus personagens e de suas tramas, refletem as concepções míticas do povo alemão, que foram passando por transformações para se adaptarem às novas formas de conhecimento do mundo. Esses contos constituíram-se em criações populares que alcançam até a reconstituição do sistema religioso da antiga raça germânica, que havia desaparecido nas brumas do esquecimento, tendo em vista o domínio romano-cristão. Os Irmãos Grimm, descobriram importante acervo das narrativas maravilhosas, que deu origem à coletânea conhecida como Literatura Infantil Clássica. Os contos mais conhecidos são: A Bela Adormecida; Branca de Neve e os Sete Anões; Chapeuzinho Vermelho; A Gata Borralheira; O Ganso de Ouro; Os Sete Corvos; Os Músicos de Bremen; A Guardadora de Gansos; Joãozinho e Maria; O Pequeno Polegar; As Três Fiandeiras; O Príncipe Sapo e outros que, posteriormente foram reunidos no volume intitulado Contos de Fadas para Crianças e Adultos; hoje, Contos dos Irmãos Grimm. No século XIX, início do Romantismo, o dinamarquês Hans Cristian Andersen, publica os Eventyr, constituído por cento e sessenta e oito contos, com o objetivo de transmitir às crianças os ideais românticos da fé cristã, da 10 Filologia do grego Amor ao estudo. Foi uma das primeiras ciências do século XIX, que deu lugar à lingüística, no século XX. Trata-se da ciência que estuda uma língua, literatura, cultura numa perspectiva histórica, por meio do rigor de documentos escritos.

generosidade e fraternidade humana, e propor-lhes padrões de comportamento compatíveis com esse pensamento. Assim, os contos de Andersen irão refletir a cotidianidade, em que pese a injustiça social e o egoísmo. Esses contos sinalizam o contexto em que Andersen viveu, num país sob o domínio napoleônico, e ao mesmo tempo, época de exaltação nacionalista e de grande expansão econômica, que refletia o grande fosso entre a riqueza organizada e a pobreza sem perspectivas. Percebe-se, ainda, que é grande o volume de pesquisas das diferentes áreas do conhecimento, realizadas desde o século XVIII em relação ao imenso acervo constituído pelos contos de fada, mitos, fábulas, sagas, contos maravilhosos, etc. O que resultou de todo esse trabalho, é que as narrativas maravilhosas representavam muito mais do que algo lúdico e prazeroso, mas ofereciam elementos para a formação de concepções e representações de mundo, transmitindo valores, moldando comportamentos e adequando atitudes em relação aos grupos sociais. Diferentes escolas A partir da recuperação da memória arcaica das narrativas maravilhosas, e consequentemente, das fontes vivas da tradição popular de cada nação, os estudiosos concluem que, apesar das grandes diferenças culturais dos locais de origem e das características específicas de cada povo que as inventaram, as várias histórias primitivas guardam grandes similaridades, quer sejam em relação aos personagens, quer sejam nos motivos ou argumentos. São as semelhanças que pressupõem a existência de uma origem comum, que os estudos acabaram por localizar no oriente, muito antes do aparecimento de Cristo. Assim surgiram teorias voltadas à compreensão do substrato dos contos maravilhosos, principalmente em relação ao seu significado simbólico. Tratava-

se de diferentes escolas de filólogos, psicólogos, etnólogos, antropólogos que tinham o objetivo de explicar diferentes perspectivas sobre os fenômenos. Quando os Irmãos Grimm publicaram sua coleção de contos de fada, as pessoas ficaram espantadas com o número de temas que se repetiam, tanto nas coleções da França, como nas da Rússia, Finlândia e Itália, surgindo, então, vários estudos, sendo que um objetivo significativo foi o de compreender o porquê da temática dos contos de fada se repetir. Houve, então, uma preocupação das várias ciências com os contos de fada, e conseqüentemente, com as teorias das diferentes escolas. A primeira escola denominada naturalista védica, comandada por Adalberto Kuhn e Max Muller, que surgiu na primeira metade do século XIX, baseava-se em estudos dos hinos védicos, relacionados à linguagem vinculada a antigos mitos, como também à expressão das reações do mundo arcaico em relação à natureza. Outra escola é a mitologia científica, em que também despontam novas teorias. Uma delas é a de Ottofrido Muller, que se dedicou ao estudo do conteúdo mítico narrativo, como índice da incapacidade de abstração dos povos primitivos; etapa específica dos estágios iniciais mais rudimentares da mente. Na segunda metade do século XIX, surgiu uma nova escola, então denominada Os contos maravilhosos e os pensamentos rudimentares, corrente de cunho psicológico, cujo representante é o psicólogo alemão Adolf Bastian, que faz uma ponte entre os mitos e as narrativas maravilhosas, cujas identidades seriam resultantes de um fundo psicológico comum a todos os homens. Outra corrente de pensamento intitulada O lastro animista e naturalista dos contos de fadas, foi defendida pelo etnólogo inglês, Edward Burnett Tylor, e tinha como objetivo explicar os contos de fada, por meio das interligações profundas entre folclore e mitos atmosféricos e siderais, gerados pelas religiões primitivas, sendo posteriormente, absorvidos pela religião cristã.

A escola denominada O pensamento fetichista e a simbologia dos contos apontou para os arcaicos mitos fetichistas, absorvidos pela imaginação popular, como geradores de contos e narrativas maravilhosas. Alguns dos pesquisadores desta escola basearam-se numa teoria solar. Afirma Coelho: E Max Muller aponta para a permanência dos mitos religiosos nos Vedas, Avestas e Helênicos. E destaca principalmente dois problemas permanentes da poesia védica: o raiar do sol (o triunfo cotidiano da luz sobre as trevas e o da Primavera anualmente sobre o Inverno) e a tempestade (triunfo de um deus luminoso sobre as nuvens negras, libertando as águas fertilizantes). Daí a teoria solar que tem servido para a interpretação desses Contos primordiais, como os de Perrault. (Coelho, 1991b:109). Atualmente, observa-se que as interpretações de natureza psicanalítica vão substituindo as interpretações de cunho mítico-simbólico. A interpretação psicanalítica referente aos contos de fada está baseada numa simbologia de expressividade dos processos psíquicos do inconsciente. Sigmund Freud foi o primeiro a identificar a relação da temática dos contos de fada com o psiquismo humano. Partindo da premissa que a função mais importante do mecanismo mental é a de proporcionar um alívio ao indivíduo, das tensões nele eliciadas por suas necessidades, os contos de fada, lendas e mitos, seriam realizações psíquicas sociais predestinadas à diminuição da ansiedade. Freud estabeleceu relações entre sonho e criação artística (pintura, poesia e contos maravilhosos), uma vez que, em nível do inconsciente e do imaginário, ambos são expressões de desejos reprimidos. Freud relacionou a influência da simbologia contida nos mitos e nos sonhos, particularmente, aos pacientes com problemas psíquicos. Segundo Bettelheim (2006), autor pertencente à escola psicanalista, os contos de fada transmitem importantes mensagens ao consciente, ao préconsciente e ao inconsciente, no sentido de estimular o desenvolvimento do

ego, dando vazão às pressões do id, indicando caminhos para satisfazer determinadas necessidades, conforme a requisição do ego e do superego. Para ter controle sobre problemas psicológicos de crescimento e também formar uma identidade com auto-estima e obrigações morais, a criança pode compreender, com os contos de fada, o que acontece em seu inconsciente, adequando esse conteúdo às fantasias conscientes, e passando a lidar melhor com esse material, podendo contribuir com novas dimensões à sua imaginação, estruturando seus devaneios para uma melhor direção à sua vida. Considerando que a polarização domina a mente da criança, também as personagens dos contos de fada não são ambivalentes, ou seja, não são boas e más, simultaneamente, como acontece na realidade. Este dado proporciona uma base para que seja estabelecida uma personalidade firme que possa realizar as identificações positivas, podendo também perceber diferenças entre as pessoas e realizar escolhas futuras. Para Bettelheim (2006), o conto de fada permite à criança avançar no sentido de alcançar maior independência, em desenvolver sua identidade e entrar em contato com seus conteúdos internos, que vão cooperar tanto para a formação do seu caráter, como para a existência de uma relação mais plena com o outro. Outro estudioso da relação entre contos e mitos, foi o psicólogo, médico e filósofo alemão Wilhelm Wundt (1832-1920) que deu importância psíquica ao tema, entendendo que os mitos são decorrência da fantasia coletiva e não individual, surgindo tanto como elemento catártico, como para espantar as assombrações e somente depois se transformando em mito. A partir de 1930, surgem as pesquisas de Carl Gustav Jung e seus seguidores, levando em conta os conceitos de inconsciente coletivo e de arquétipos. Inaugura uma abordagem que considera o conteúdo subjacente aos mitos e contos de fada como pertencente ao inconsciente coletivo, representando as imagens arquetípicas. Diferentemente da posição freudiana,

que demonstra uma visão de inconsciente pleno de conteúdos reprimidos, constituído de recalques e complexos, a postura junguiana apresenta o inconsciente com uma perspectiva de movimento, crescimento, renovação e profundidade. Parte de um trabalho desenvolvido com os antagônicos, a fim de favorecer o amadurecimento da personalidade; portanto, além de uma transformação em direção à saúde, com os conteúdos arquetípicos, vislumbrase um mundo tenebroso, mas também, encantador e mágico dos contos de fada. Simbologia O desenvolvimento ocidental recente deu maior importância e destaque aos aspectos racionais e cognitivos, negligenciando os aspectos emocionais e intuitivos do homem. Essa forma excludente e fragmentada de conhecimento da realidade, não é capaz de nos auxiliar na compreensão das motivações básicas de nossa existência, de nossa humanidade, uma vez que esse entendimento requer fundamentos vivenciais e, portanto, também emocionais e intuitivos. Segundo Jung, assim como conhecemos o mundo através dos órgãos dos sentidos e por meio do pensamento, a intuição e a capacidade de criar por meio de símbolos, também reflete modos fundamentais do funcionamento humano. Os símbolos são representados por imagens que surgem na mente consciente, mas que provém de conteúdos existentes nas profundezas do inconsciente, plenas de poder e significação, podendo, inclusive, descrever uma situação sob a forma de analogia ou parábola, apontando para além do que pode ser acessível à nossa observação. Essas imagens não foram criadas pela consciência, mas, surgem em conexão com uma dimensão da existência. Embora nossa mente tenha a tendência de reprimir a função simbólica, esta

continua a agir como função básica, de modo consciente e inconsciente, podendo originar vários quadros patológicos. Embora o consciente tente estabelecer o controle no mundo das coisas, através do pensamento racional, e da repressão das emoções, é o inconsciente que dá recursos para a mente consciente. As imagens que surgem no consciente possibilitam o desenvolvimento de qualidades emocionais e de imaginação que formam uma conexão com o mundo da vivência, cindido pelo processo de abstração. Assim, para a compreensão da experiência do mundo interior, e o surgimento de imagens das profundezas da psique, deve-se levar em conta, uma nova forma de percepção, que é a intuição do significado interior, a que Whitmont (1995) chama de modo simbólico de compreensão. Pode-se compreender, dessa forma, que o ser humano tenha um modo de entendimento da realidade, não somente voltado ao exterior, mas, principalmente, um modo simbólico que, no desenvolvimento da mente, é o elemento ativo na formação das imagens mitológicas. A abordagem simbólica faz parte da realidade da psique total, envolvendo tanto aspectos cognitivos, como também sentimentos e intuições. Assim temos um intelecto que para se adaptar adequadamente à realidade, deve lidar não apenas com o mundo das coisas, mas também com os aspectos da subjetividade humana, exigências de uma realidade psíquica sempre em transformação, e muitas vezes incognoscível. O Sujeito e a Educação Em conformidade com o pensamento complexo, o ser humano é indivíduo e sujeito; ser único, egocêntrico e singular, que traz em si também as marcas da alteridade, em sua condição humana. Apresenta caracteres opostos e contraditórios e, ao mesmo tempo é uno e múltiplo. É constituído de idéias,

mas também de afetividade, apresentando-se ora como sapiens, ora como demens, no contato consigo, com o outro, com o mundo. Morin define o homo complexus: O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas idéias, mas que duvida dos deuses e critica as idéias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras (...). (Morin, 2000 a: 59) Esse homem, em sua relação com o mundo, por meio de suas ações e vivências, reelabora os pensamentos, emoções e sentimentos, ampliando a consciência de si, do outro e do universo, modificando-se e ao mundo, num movimento recursivo, hologramático e dialógico do pensamento que leva em conta a capacidade de compreensão da realidade. A literatura e, em especial, os contos de fada despertam a sensibilidade e a afetividade, capazes de oferecer elementos para que o sujeito possa aprimorar a sua capacidade de reflexão, como também a sua capacidade criativa, através das vivências dos conteúdos subjetivos que formam a tessitura do imaginário. Mas, o ser humano não é apenas sapiens-demens, é também ludensfaber, por isso, os contos podem lhe permitir brincar, imaginar, criar a própria sensibilidade e o senso estético. Os contos podem ainda, favorecer a sua capacidade de introspecção, reunindo atributos racionais, míticos, mágicos e imaginários, capazes de propiciar a transcendência do aqui e agora. Como afirma Severino: É toda esta esfera do exercício da dimensão subjetiva da

pessoa que nos torna efetivamente humanos. (Severino, 2002: 185). E é a esse mundo imaginário, que os contos de fada nos transportam; lá, onde podemos agir tanto com a cabeça quanto com o coração. A teoria da complexidade propõe a crítica à dicotomia entre cultura científica e cultura humanística. Aponta para a necessidade de uma educação complexa que leve em conta um tipo de pensamento capaz de juntar o que estava separado e disperso. Uma educação complexa é em sua essência transdisciplinar, contextualiza os saberes, integra os fenômenos multidimensionais e ultrapassa as conexões solidárias. É a filosofia da educação que respeita a unidade e a diversidade dos pensamentos míticosimbólico e lógico-racional promovendo inter-relações tão possíveis quanto necessárias à aprendizagem dos sujeitos. Uma meta da filosofia da educação deveria ser a de ensinar a viver; proporcionar condições e recursos ao sujeito conhecer e viver a sua condição humana, inserido no contexto planetário. O estudante-sujeito não é um depositário de informações e conteúdos isolados, com ou sem sentidos, mas, é detentor de sonhos e emoções. Cabe à educação levar em conta a complexidade humana. Para Morin (...) ensinar a viver necessita não só dos conhecimentos, mas também da transformação, em seu próprio ser mental, do conhecimento adquirido em sapiência 11, e da incorporação dessa sapiência para toda a vida. (Morin: 2000 b: 47). Para essa transformação de que nos fala Morin, precisamos permitir e estimular o exercício de nossos operadores cerebrais hologramático, recursivo e dialógico promovendo as articulações entre logos e muthos. Enquanto o pensamento racional elabora informações objetivas, o pensamento mítico realiza a compreensão pela intuição e subjetividade, indo ao encontro de percepções tanto particulares como globais e das diversas interconexões. Nesse sentido, os pensamentos se comunicam, pois se o racional usa analogias e símbolos, o mitológico também necessita de coerência lógica para 11 Palavra antiga que engloba sabedoria e ciência. (Nota do autor).

realizar-se. Desse modo, então, que a literatura, e em particular os contos de fada, favorecem a ligação dos mundos internos e externos ao sujeito, como também do real e do imaginário, tão importantes ao processo educacional, como mediadores do conhecimento humano. Como Morin afirma: (...) o romance e o cinema oferecem-nos o que é invisível nas ciências humanas; estas ocultam ou dissolvem os caracteres existenciais, subjetivos, afetivos do ser humano, que vive suas paixões, seus amores, seus ódios, seus envolvimentos, seus delírios, suas felicidades, suas infelicidades, com boa e má sorte, enganos, traições, imprevistos, destino fatalidade... (Morin, 2000 b: 43-44). Com essa perspectiva, há de se pensar uma reforma educacional que implique uma reforma de pensamento e vice-versa, que pressupõem a religação dos diferentes conhecimentos. Vale destacar nesse contexto as artes: dança, música, cinema e literatura. De modo especial, os contos de fada como elemento aglutinador do homo sapiens-demens. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

COELHO, N. N. O conto de fadas. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1991 a.. Panorama Histórico da Literatura Infantil Juvenil. 4ª ed. revista, São Paulo: Ática, 1991 b. ESTÉS, C. P. Contos dos Irmãos Grimm. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. MORIN, E. Meus Demônios. Tradução de Leneide Duarte e Clarisse Meireles. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997.. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000 a.. A cabeça bem feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000 b. SEVERINO, A. J. A filosofia na formação do jovem e a resignificação de sua experiência existencial. In KOHAN, W. Ensino de filosofia: perspectivas. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: Conceitos básicos de psicologia analítica. Tradução de Eliane Fittipaldi Pereira e Kátia Maria Orberg. São Paulo: Cultrix, 1995.