O nosso conhecimento do mundo que nos rodeia

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Transcrição:

O nosso conhecimento do mundo que nos rodeia Num canto remoto do universo, cheio e resplandecente de inúmeros sistemas solares, houve uma vez uma estrela onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais arrogante e mentiroso da «história do mundo» - mas não passou de um minuto. Depois de a natureza ter respirado algumas vezes, a estrela arrefeceu e os animais inteligentes tiveram de morrer. FRIEDRlCH NIETZSCHE, Sobre a Verdade e a Mentira num Sentido Extra-Moral (1873) O cérebro numa cuba Pode-se conceber o cérebro humano como um dispositivo com inputs e outputs. Os inputs são os sinais provenientes dos olhos, dos ouvidos e do resto do sistema nervoso da pessoa. O cérebro recebe os inputs e processa a informação. Depois envia sinais os outputs - a varias partes do corpo, o qual, em função disso, se move, respira e faz outras coisas. Mas suponha-se que um cientista remove o cérebro de uma pessoa e o mantém vivo numa cuba com nutrientes. O Cientista liga o cérebro a um computador que fornece os mesmos inputs que, em circunstâncias normais, chegariam através dos olhos e dos ouvidos. O Computador realiza tão bem a sua tarefa que o cérebro nao consegue notar a diferença. O cérebro processa os sinais da mesma forma que antes processava os sinais vindos dos olhos e dos ouvidos e depois produz os mesmos outputs, que são transmitidos para o computador. O computador devolve novos inputs tudo se vai repetindo. Se o computador realizar a sua tarefa na perfeição, a pessoa cujo cérebro está na cuba continuará a ter as mesmas experiências que antes. Do seu ponto de vista, nada terá mudado. A vida continuará a decorrer. Ela irá encontrar-se com os amigos, trabalhar, jantar e ver televisão. Ou, pelo menos, irá acreditar que está a fazer essas coisas, mas nada disso estará realmente a acontecer. A Sua vida será uma ilusão criada pelo computador. Suponha-se agora que alguém sugere que nós somos essa pessoa - somos um cérebro numa cuba e a nossa «vida» não passa de uma ilusão. Esta sugestão parece absurda, mas como poderemos provar que falsa? Parece que nada podemos fazer para provar que a nossa. Vida é real. Afinal, todas as experiências que temos, incluindo as tentativas de provar que não somos um cérebro numa cuba, poderiam ser facultada por um computador. Podemos objetar que toda histona é tecnicamente impossível - não é possível manter cérebros vivos em cubas e nenhum computador pode fazer o que estamos a descrever. Porém, talvez isto seja verdade apenas no mundo ilusório a que respeitam as nossas experiências. No mundo real exterior à cuba existem computadores desse tipo. Um filme inteligente, Matrix, explora esta possibilidade. No filme, os cérebros das pessoas não foram removidos, mas os seus corpos estão ligados a um computador

gigante que produz o mesmo efeito. As pessoas que estão na Matrix são levadas a pensar que vivem num mundo físico com edifícios, condições atmosféricas e automóveis, mas esse mundo existe apenas na sua mente. Matrix não é o único filme que explora esta possibilidade. 13.º Andar e Desafio Total envolvem ideias similares. Estas histórias colocam uma questão sobre a natureza do conhecimento humano. O nosso conhecimento do mundo que nos rodeia baseia-se nas nossas experiências subjetivas - as sensações visuais, auditivas e tácteis que temos sempre que estamos acordados. Mas por que razão temos essas experiências? Eis duas explicações possíveis: Primeira explicação. Temos experiências porque estamos a interagir com uma realidade que é mais ou menos corretamente representada no conteúdo dessas experiências. Vemos uma bola vermelha, por exemplo, porque existe uma bola vermelha diante dos nossos olhos. A luz da bola atinge os nossos olhos, iniciando uma série de acontecimentos no nosso sistema nervoso que culmina nos acontecimentos cerebrais que causam a experiência. O resultado de todo o processo é ficarmos com crenças verdadeiras sobre o mundo que nos rodeia. Pelo menos, as nossas crenças serão geralmente verdadeiras - por vezes podemos ser enganados, mas isso não costuma acontecer. Segunda explicação. Temos experiências porque somos um cérebro numa cuba. E o nosso cérebro está ligado a essas experiências. Parece que vemos uma bola vermelha no espaço que está diante dos nossos olhos, mas esta bola não existe realmente. Esse espaço não existe. Na verdade, não temos olhos. Todo o processo tem como resultado sermos sistematicamente enganados. Obviamente, todos acreditamos que a primeira explicação é correta e que a segunda não passa de uma fantasia. Mas por que razão pensamos isto? A partir do momento em que distinguimos a) as nossas experiências e b) o mundo que nos rodeia, podemos perguntar como se relacionam. Como sabemos que as nossa experiências representam corretamente o mundo? Será que esta crença está justificada? Se está, qual é a justificação? O problema de Descartes Descartes foi a primeira pessoa a ver este problema com clareza. Viveu no início do século XVII, quando a ciência moderna estava na sua infância, e fez contribuições importantes para o desenvolvimento da ciência. Entre outras coisas, inventou a geometria analítica. Porém, Descartes também se interessou pelos fundamentos do conhecimento científico. A ciência baseia-se na observação e no raciocínio, e não na tradição, na política ou na autoridade religiosa. Mas de que modo a observação e o raciocínio produzirão exatamente conhecimento? Duas fontes de conhecimento. O conhecimento divide-se naturalmente em dois tipos. Um deles é o conhecimento empírico - as coisas que sabemos em função da experiência sensorial. Sabemos, talvez, que estamos sentados numa sala, que há uma janela perto do sítio em que estamos sentados e que há uma árvore fora da janela. Estas coisas podem ser efetivamente verdadeiras, mas nada têm de necessário. O quarto poderia ter sido construído sem janelas e, se a história tivesse corrido de

forma diferente, poderia não haver uma árvore lá fora. Mas sabemos que estas coisas são efetivamente verdadeiras porque as vemos. (Por agora, estamos a ignorar a possibilidade de nos estarem a enganar.) O segundo tipo de conhecimento não provém da experiência sensorial, mas da operação da mente independentemente da experiência. As verdades da lógica são deste tipo. É uma verdade lógica, por exemplo, que se todos os homens são mortais, e Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal. Sabemos que esta frase é verdadeira, não por causa de uma investigação empírica, mas simplesmente porque podemos raciocinar a seu respeito. A proposição é verdadeira independentemente de Sócrates ter existido ou de alguém ser de facto mortal. A proposição é um exemplo do seguinte padrão: se todos os A são B, e X é um A, então X é um B. Sabemos que todos os exemplos deste padrão são verdadeiros porque sabemos o que significam palavras como «se», «então», «todos» e «é». O conhecimento matemático é outro exemplo deste tipo. Sabemos que 3 + 2 = 5 simplesmente porque entendemos o que estes termos significam. Dois mais três tem de ser igual a cinco; outra coisa não é possível. Obviamente, a matemática descreve o mundo. Se há três árvores e mais duas árvores, então há cinco árvores. No entanto, não temos de contar árvores para determinar se a afirmação é verdadeira. Uma vez mais, podemos limitar-nos a raciocinar. A proposição todos os solteiros são não casados é similar. Não temos de investigar todos os solteiros para confirmar que, de facto, não são casados. Esta proposição é verdadeira por definição, ou seja, e verdadeira unicamente em virtude do significado das palavras utilizadas. Alguns tipos de «conhecimento» parecem não cair em nenhuma destas categorias. As crenças morais são um exemplo preeminente. Por esta razão, as crenças morais são_ problemáticas, e alguns filósofos sugeriram que não são «conhecimento», mas meras expressões dos nossos sentimentos ou algo do género. Por agora, esqueçamos a moralidade. Regressaremos a ela, tratando-a como um assunto distinto. O que podemos saber com certeza? Se queremos libertar-nos do erro, disse Descartes, temos de pôr de parte tudo aquilo que admita dúvida e partir de premissas que estejam fora de dúvida. Perguntou assim: o que podemos saber sem margem para dúvida? O que podemos saber com uma certeza total e absoluta? O conhecimento que deriva dos nossos sentidos não serve, pois pode ser colocado em dúvida. Para mostrar isto, Descartes apelou ao facto de termos o mesmo tipo de experiências quando estamos a sonhar e quando estamos acordados: Estou acostumado a dormir e a imaginar, nos meus sonhos, as mesmas coisas que os lunáticos imaginam quando estão acordados ou, por vezes, coisas ainda menos plausíveis. Quantas vezes já aconteceu de o sossego da noite fazer-me sonhar com os meus hábitos comuns: que estava aqui, com o roupão vestido e sentado à lareira - quando na verdade estava estendido na cama e despido! Descartes acrescentou que «não há indícios conclusivos pelos quais se possa distinguir a vigília do sono», e disto concluiu que as nossas experiências sensoriais não são, por si, fontes fiáveis de conhecimento. Não sabemos que algo é verdade pelo simples facto de termos uma experiência que nos faz pensar

isso. Este argumento tem a célebre designação de Argumento do Sonho. Numa formulação mais desenvolvida, apresenta-se assim: 1.Quando sonhamos, temos experiências de um certo tipo. 2.Se as experiências deste tipo fossem, por si, uma fonte fiável de conhecimento, então, quando sonho que estou a marcar um golo num desafio importante, estaria realmente a marcar um golo num desafio importante. 3.Mas, quando sonho com isso, não estou realmente a marcar um golo num desafio importante. 4.Logo, as experiências deste tipo não são, por si, uma fonte fiável de conhecimento. 5.Mas essas experiências são exatamente do mesmo tipo das que temos quando estamos acordados. 6.Logo, mesmo quando estamos acordados, as experiências deste tipo não são, por si, uma fonte fiável de conhecimento. O Argumento do Sonho aborda a questão da experiência sensorial, mas nada diz sobre a segunda fonte de conhecimento: os nossos poderes de raciocínio. Assim, mesmo que o Argumento do Sonho seja sólido, pode ainda ser verdade que podemos saber com toda a certeza, por pura reflexão, que 2 + 3 = 5. Contudo, Descartes tem outro argumento, conhecido por Argumento do Génio Maligno, para mostrar que também não podemos confiar nos nossos poderes de raciocínio. O Argumento do Génio Maligno baseia-se numa ideia semelhante à do cérebro numa cuba. Porém, em vez de imaginar um cérebro numa cuba, Descartes imagina um poderoso «espírito maligno» que tem a intenção de o enganar: Vou supor assim, não um Deus verdadeiro, que é muito bom e é a fonte suprema da verdade, mas um certo espírito maligno, não menos inteligente e enganador do que poderoso, que se esforça ao máximo por me enganar. Se a nossa mente estivesse a ser manipulada por um espírito maligno como este, os nossos processos mentais não seriam fiáveis. Poderíamos acreditar que 2 + 3 = 5, mesmo que isso não fosse verdade. Descartes conclui daqui que, na ausência de uma justificação, não podemos ter a certeza de que os nossos processos de raciocínio são fontes de conhecimento fiáveis. Obviamente, Descartes não acreditava que existia um espírito maligno a controlar-nos, mas pensava que a sua simples possibilidade era suficiente para autorizar esta conclusão. Podemos formular o argumento com mais precisão desta forma: 1.Quando raciocinamos que 2 + 3 = 5, há (pelo menos) duas possibilidades sobre o que está a acontecer: a)os nossos poderes de raciocínio são fiáveis e estamos a fazer o cálculo corretamente. Assim, através deste processo de raciocínio, ficamos a saber que 2 + 3 = 5. b)um génio maligno está a manipular os nossos pensamentos e parece que «vemos» que 2 + 3 = 5 apenas porque ele está a pôr esta ideia na nossa mente. Estamos, assim, a ser enganados.

c)podemos confiar nos nossos poderes de raciocínio - isto é, podemos considerá-los justificadamente uma fonte de conhecimento fiável - apenas se conseguirmos excluir a segunda possibilidade e outras do género. d)logo, os nossos poderes de raciocínio não são por si uma fonte de conhecimento fiável. Temos de combinar os nossos poderes de raciocínio com outras considerações - considerações que excluam hipóteses como a do génio maligno - antes de podermos confiar neles justificadamente. O resultado destes argumentos é que não podemos considerar, ingenuamente, que os nossos sentidos e os nossos poderes de raciocínio são fontes de conhecimento fiáveis. Algo tem de ser acrescentado para explicar por que razão podemos considerá-los fiáveis. A solução de Descartes para o problema. Como muitos outros problemas filosóficos, este torna-se mais simples se recorrermos a Deus. Se combinarmos os dados dos sentidos com a ideia de que Deus nos deu os sentidos como forma de conhecer o mundo, e se acrescentarmos que se pode confiar que Deus organizou as coisas de modo a não sermos enganados, poderemos ter a certeza de que os sentidos nos dizem a verdade. Os nossos poderes de raciocínio podem tornar-se credíveis da mesma forma: se as nossas faculdades racionais foram concebidas por Deus, podemos ter confiança no seu funcionamento. Assim, quando pensamos nas coisas com cuidado e clareza, podemos confiar nos resultados. Esta é, no essencial, a solução de Descartes para o problema. Porém, Descartes não se limitou a afirmar que Deus subjaz à fiabilidade das nossas faculdades; chegou a esta conclusão depois de um longo argumento que envolve os seguintes passos: 1. O que posso saber sem margem para dúvidas? Se parece que vejo uma bola vermelha diante de mim, não posso ter a certeza disso porque posso estar a sonhar. Se acredito que 2 + 3 = 5, não posso ter a certeza disso porque um espírito maligno pode estar a controlar os meus pensamentos. Mas, diz Descartes, há algo que sei com certeza absoluta: sei que estou a ter agora certos pensamentos e experiências. Mesmo que isso não passe de um sonho, sei que estou a ter a experiência «bola vermelha diante de mim». Não posso estar enganado a esse respeito. Do mesmo modo, mesmo que um espírito maligno esteja a enganar-me, sei que estou a ter o pensamento «2 + 3 = 5». Conheço os meus próprios pensamentos e experiências, e o leitor conhece os seus próprios pensamentos e experiências. Essa é a única coisa em que não podemos estar enganados. 2. Se é certo que temos pensamentos e experiências, então é certo que existimos. Afinal, se não existíssemos, não poderíamos estar a ter esses pensamentos. Descartes exprime esta inferência dizendo «Penso, logo existo» - ou, na versão latina, Cogito, ergo sum -, uma das afirmações mais famosas da história do pensamento. 3. Entre os nossos pensamentos, há um que se destaca dos restantes, nomeadamente a ideia de Deus. As nossas outras ideias, como a ideia de uma bola vermelha, são ideias de coisas que podem não existir na realidade. Mas a ideia de Deus é diferente, pois é a ideia de um ser perfeito e, portanto, é a ideia de algo que tem de existir na realidade. Porquê? Porque não existir na realidade é incompatível

com ser perfeito. Logo, Deus tem de existir. (Este é o Argumento Ontológico) 4. Provámos agora que existimos, a par dos nossos pensamentos e experiências, e que, Deus, um ser perfeito, também existe. Mas Deus, se é perfeito, não pode ser enganador. Segue-se que Deus não pode ter-nos feito de modo a que nos enganássemos sistematicamente a respeito do mundo. Um Deus perfeito e verídico não poderia ter-nos dotado de sentidos e de poderes de raciocínio que, inevitavelmente, nos levassem a acreditar em todo o tipo de falsidades. 5. Segue-se então que os nossos sentidos e os nossos poderes de raciocínio são fontes de conhecimento fiáveis do mundo que nos rodeia. Este argumento deixa Descartes com um problema residual, análogo ao problema do mal. Se as nossas faculdades foram concebidas e criadas por um criador perfeitamente bom, por que razão cometemos erros por vezes? A resposta de Descartes é uma variante de um tema comum na discussão do mal - o livre-arbítrio. O erro, diz-nos, resulta da acção humana, e não da acção divina. Quando cometemos erros, isso acontece porque utilizamos as nossas faculdades de forma descuidada - ou, como no caso do cérebro na cuba, porque outros seres humanos se dispuseram a enganar-nos. O raciocínio de Descartes tem sido interminavelmente analisado durante os últimos três séculos e meio. Hoje, na América do Norte, há provavelmente uma dúzia de estudantes pós-graduados a escrever dissertações sobre o assunto. Um problema é o facto de, o Argumento Ontológico ser dúbio. Outro problema é o facto de Descartes, ao desenvolver todo esse raciocínio, estar a usar os mesmos poderes racionais que o argumento pretende validar: Deste modo, o seu procedimento parece Circular: está a raciocinar em busca da conclusão de que se pode confiar no raciocino. Como sabemos que se pode confiar no raciocínio? Porque Deus criou os nossos poderes de raciocínio e não é enganador. Como sabemos isso? Porque temos uma cadeia de raciocínio que o prova. Na literatura filosófica, isto é conhecido por «Círculo Cartesiano». No entanto, ainda que o seu argumento tenha falhas, Descartes fez diversas contribuições duradouras. Uma delas foi ter identificado claramente o problema. Outra foi ter apontado, corretamente, que uma perspectiva teológica oferece uma forma de o resolver. De acordo com a solução teológica, se combinarmos os dados dos sentidos com a ideia de que Deus nos deu os sentidos como forma de conhecer o mundo, poderemos ter a certeza de que os sentidos nos proporcionam fiavelmente conhecimento do mundo que nos rodeia. Na verdade, podemos encarar o resultado da obra de Descartes como um desafio: se não assumirmos uma perspectiva religiosa, como poderemos resolver o problema? É um lugar-comum que a religião pode lançar luz sobre questões como a origem do mundo, a morte e o valor. De forma surpreendente, Descartes mostra que, para aqueles que adotam essa perspectiva, a religião pode ajudar também a explicar o fundamento do conhecimento empírico. James Rachels Problemas da Filosofia, Gradiva, pp, 205 a 216.