Reconstrução do Pescoço Queimado na Fase Aguda

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Transcrição:

Reconstrução do Pescoço Queimado na Fase Aguda Roberto Cammarota Jr.1 1] Membro Associado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Médico Assistente dos Serviços de Queimados do Hospital Municipal Dr. Carmino Caricchio e do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Trabalho realizado no Hospital Municipal do Tatuapé e Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo Endereço para correspondência: Roberto Cammarota Jr. Av.Paulista, 2644 Cj.63 São Paulo - SP 01310-300 Fone: (11) 3259-4797 - Fax: (11) 3231-5584 e-mail: bobcjunior@uol.com.br Descritores: Queimaduras; queimaduras de pescoço; reconstrução cervical na fase aguda. RESUMO Queimaduras profundas na face anterior do pescoçofreqüentemente causam significantes deformidades. O objetivo do presente estudo é descrever um novo procedimento cirú1:!ficodiante de queimaduras cervicais profundas) o qual procura diminuir a incidência de retrações cervicais e melhorar o ângulo cervicomandibular. Durante 5 anos) 24 pacientes vítimas de queimaduras cervicais profundas foram tratados cirurqicamente com a mesma técnica) que consistiu em debridar precocemente ostecidosnecrosados)incisar o músculo platisma na altura da proeminência laríngea de um ângulo a outro da mandíbula e enxertar com pele espessa conforme a disposição de pele íntegra. O autor conclui ser um procedimento simples e seguro) de bons resultados funcionais ao serviço e que previne seqüelas retrdcteis. e estéticos)pouco oneroso INTRODUÇÃO A região cervical, por ser uma estrutura exposta do corpo, quando envolvida em processo de retração, torna-se estigmatizante para o paciente, que freqüentemente assume postura cabisbaixa, afetando sua auto-estima, além de resultar em baixo desempenho funcional, já que por vezes afeta a mímica faciale a fonação. Rev. Soe. Bras. CiroPlást. São Paulo v.18 n.3 p. 27-38 ser/dez. 2003 33

Revista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica o pescoço acompanha a angulação da coluna cervical e, dependendo do biótipo e da idade, pode fletir até 40 graus e estender até 75 graus(l), considerando-se que o ângulo cervicomandibular, em posição neutra, mostrarse-á mais harmonioso quanto mais próximo for do ângulo reto.queimaduras de pele total, extensas, da região cervical, quando cicatrizam por segunda intenção, fatalmente evoluem para bridas mentotorácicas. Queimaduras dérmicas profundas quando reepitelizam sofrem freqüentes retrações, hipertrofias e discromias. Tecidos cervicais queimados, debridados e enxertados, principalmente com emprego de pele delgada, tendem a evoluir com perda da extensão e aumento do ângulo cervicomandi bular'". o pescoço apresenta uma estrutura superficial muscular chamada platisma, que freqüentemente sofre, direta ou indiretamente, com as agressões das queimaduras cervicais. O platisma é um músculo voluntário acessório da rima bucal, inervado pelo nervo facial e irrigado por dois pedículos arteriais principais - ramo mandibular da artéria facial e ramo da artéria tireóidea -, situa-se na tela subcutânea ântero-lateral do pescoço, da borda inferior da mandíbula e do ângulo da boca, fazendo parte do Sistema Musculoaponeurótico Superficial da face, e desce pelo subcutâneo até a in- serção na pele que recobre a clavícula e o ombro'ê- 4). A cirurgia proposta na fase aguda baseia-se em estudo anatomopatológico realizado pós-debridamento da pele cervical queimada, em que o tecido remanescente foi biopsiado e o estudo anatomopatológico realizado mostrou um intenso processo inflamatório crônico com proliferação capilar, invasão Iinfocitária e fibrose septal, envolvendo gordura e o músculo platisma (Fig. 1). A intervensão cirúgica da queimadura cervical em questão, com secção do músculo platisma, impediria que a retração da fibrose muscular superficial comprometesse o ângulo cervicomandibular e a extensão cervical. I MATERIAL E METODOS Entre 1997 e 2002, 24 pacientes com queimadura profunda da região cervical foram tratados pelo mesmo método cirúrgico na fase aguda, 11 dos biopsiados apresentaram início de fibrose do músculo platisma no anatomopatológico. A idade variou entre 6 e 52 anos (média 32 anos), sendo 20 do sexo feminino e 4 do sexo masculino; 1 negro, 13 brancos e 10 mestiços, com extensão de área queimada Fig. 1 - Biópsia realizada após 10 dias da queimadura e 5 dias pós-debridamento da necrose, o corte histológico revela músculo e tecido adiposo com intensa reação inflamatória crônica (linfócitos), proliferação capilar e fibrose septal, Fig. 2 - Vista de frente com 5 dias pósqueimadura com álcool, nota-se a delimitação da necrose com pele esbranquiçada e isquêmica. Fig. 3 - Vista de perfil, com escara necrótica impedindo a extensão cervical plena. 34 Rev. Soe. Bras. Ciro Plást. São Paulo v.18 n.3 p. 27-38 ser/dez. 2003

Reconstrução do Pescoço Queimado na Fase Aguda variando de 4 a 51% (média 24%), sendo causada por fogo em 18 e escaldo em 6, com acometimento bilateral do pescoço em 100% e tempo de internação hospitalar de 3 a 15 semanas (média 8,3 semanas). Houve 1 óbito e o acompanhamento ambulatorial variou de 15 dias a 4 anos. TRATAMENTO As queimaduras foram inicialmente higienizadas e tratadas diariamente com soro fisiológico 0,9% e sulfadiazina de prata. Por volta de 4 a 7 dias da queimadura, com a delimitação da necrose - seja por formação de escara escura e seca, seja pelo aspecto esbranquiçado ou avermelhado fixo<5) (Figs. 2 e 3) -, realizou-se o debridamento cirúrgico com o paciente anestesiado sob entubação naso ou orotraqueal. A ressecção do tecido necrótico foi realizado com faca de Blair tangencialmente até encontrar um leito viável com sangramento vivo. Procedeu-se à hemostasia com bisturi elétrico e/ou ligadura e compressas embebidas em solução com adrenalina 1:250000 e marcou-se nova cirurgia para 2 a 7 dias, após bom controle hemodinâmico e clinico, principalmente em casos de grandes debridamentos associados que acometiam outras regiões do corpov- 7,8e9) (Figs. 4, 5 e 6). Fig. 4 - Vista de frente com 10 dias pás-queimadura e 5 dias pós-debridamemo do tecido necrosado, nota-se reepitelização da pele da face e o tecido vivo de granulação folmado. Fig. 6 - Vista de perfil, 5 dias pósdebridamento, com dificuldade de extensão cervical. Fig. 5 - Vista de perfil, 5 dias pósdebridamento do tecido, com pescoço em posição neutra, nota-se a pouca definição do ângulo cervicomandibular. Fig. 7 - Perfil intra-operatório com incisão apenas do músculo platisma. Com o paciente em hiperextensão cervical, procede-se à secção do músculo platisma, logo acima da proeminência laríngea, de um côndilo a outro da mandibula, com limite na borda do músculo esternocleidomastóideo. O ganho na extensão cervical é imediato. Através de dissecção romba, tracionam-se as bordas da incisão recém-realizada em sentido cranial e caudal com auxilio de compressas; o plano é o da fáscia cervical com pouco sangramento, a não ser pelos ramos da artéria tireóidea. Ganha-se por volta de 10 a 15 centimetros, sendo mais interessante o ganho caudal onde o músculo platisma se superficializa e teria maior potencial de retração sobre a pele recém-enxertada. Realiza-se então um ((trimming)) ou ressecção desse tecido descolado com tesoura, no sentido de aplainar a região (Fig. 7), e o tecido enviado para o exame anatomopatológico. Rev. Soe. Bras. Ciro Plást. São Paulo v.18 n.3 p. 27-38 ser/dez, 2003 35

Revista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Existindo pele íntegra em uma das coxas, retira-se com faca de Blair ou dermátomo pele parcial espessa suficiente para cobrir a área cruenta cervical. A pele retirada para enxertia é perfurada aleatoriamente no sentido de prevenir grandes hematomas e fixada com pontos de náilon 4-0 e com curativos realizados por exposição (Fig. 8). Na única criança operada, foi realizado um grande curativo oclusivo de Brown. complicações intra-operatórias. Houve 1 óbito no 12 dia de pós-operatório por complicações clínicas advindas da grande extensão queimada. Tivemos (5 em 24 ou 20%) hematomas pós-operatórios, que foram drenados no leito sem seqüelas. Ocorreram poucos casos de retração dos enxertos, visto que foram o paciente mantém-se em hiperextensão sobre um coxim em formato de cunha (da cintura ao ombro), sob Arco de Proteção, por 7 a 10 dias. Instituída dieta leve e/ou líquida por dois dias, são permitidos pequenos movimentos lentos da cabeça e elevação da cabeceira após o 3 dia de pós-operatório. Os enxertos do pescoço são vistos diariamente e os eventuais hematomas drenados prontamente. Por volta de 7 a 10 dias, tempo de reepitelização da área doadora, com o pescoço como única lesão e não havendo perdas do enxerto, o paciente recebe alta hospitalar com colar cervical provisório. O acompanhamento ambulatorial é realizado pelo médico, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e, quando possível, por foniatra. O colar cervical é usado por período prolongado (não menos que 6 meses), tanto maior quanto mais hipertrofias cicatriciais marginais à enxertia houver e quanto mais delgados forem os enxertos cervicais. Na presença de lesões cicatriciais hipertróficas em face, menta, lateral do pescoço e tórax, máscaras, mentoneiras, coletes de malha elástica compressiva e placas siliconadas foram associados (Figs. 9, 10 e 11). RESULTADOS Todos os 24 resultados cirúrgicos imediatos foram bons, com ganho visível na angulação cervical, sem Fig. 8 - Pós-operatório imediato, paciente com enxerto exposto em hiperextensão cervical. Fig. 9 - Vista de frente após 1 ano da cirurgia. Fig. 10 - Perfil em posição neutra, após 1 ano, com boa angulação cervicomandibular. Fig. 11 - Perfil em hipcrextcnsâo, após 1 ano, sem retrações. 36 Rev. Soe. Bras. Ciro Plást. São Paulo v.18 n.3 p. 27-38 ser/dez. 2003

Reconstrução do Pescoço Queimado na Fase Aguda usadas peles espessas, mas nos casos em que o tórax foi acometido e enxertado com pele expandida ocorreu grande retração (3 em 23 ou 13%), tracionando o pescoço para baixo; foram estes últimos os resultados mais pobres, sendo dois casos reoperados com aproximadamente 6 meses de pós-operatório por insuficiência de extensão cervical. Houve 2 casos (8%) de hipertrofia cicatricial nas bordas laterais do enxerto cervical, tratados com zetaplastia, e 2 casos (8%) de pequenas bridas sob o enxerto também tratadas com zetaplastia sob anestesia local. As discromias dos enxertos foram mais freqüentes nos pacientes de pele escura, principalmente hipercromia, que foi espontaneamente amenizada com o tempo ou pelo uso tópico de descromiantes dermatológicos. Quanto ao acompanhamento ambulatorial, foram 19 em 23 (82%) por 3 meses, 15 em 23 (65%) por 6 meses, 14 em 23 (60%) por 1 ano, 10 em 23 (43%) por 2 anos, 3 em 23 (13%) por 3 anos e 1 paciente com 4 anos de acompanhamento.. DISCUSSÃO Existem muitas técnicas cirúrgicas para correção das "seqüelas" cicatriciais cervicais, seja por meio de enxertos, avanços e rotações de retalhos (cutâneos, fasciocutâneos, miocutâneos), retalhos expandidos, retalhos livres microcirúrgicos, retalhos microcirúrgicos expandidos, etc., mas que, na fase aguda, seja pela extensão da queimadura, do acometimento do estado geral, das infecções ou do comprometimento dos tecidos adjacentes, apresentam poucas alternativas cirúrgicas. A constatação pelo autor do envolvimento do músculo platisma no processo inflamatório favorecido direta ou indiretamente pela queimadura cervical e sua possível conseqüente fibrose e retração, atingindo principalmente pescoços com pouco tecido subcutâneo, propiciou o surgimento desta abordagem cirúrgica. Vale lembrar que mesmo os pacientes obesos ou com muito tecido subcutâneo cervical, ainda que não tenha havido envolvimento do músculo platisma, acabam se beneficiando com maior definição do ângulo cervicofacial, devido também à lipectomia local. Dos 24 pacientes, 11 apresentaram envolvimento do músculo platisma na biópsia, nos pacientes restantes não foi constatado envolvimento muscular em razão de excesso de tecido adiposo local ou porque foi retirado tecido pouco afetado para o exame anatomopatológico. Segundo esta constatação, não basta debridar e enxertar a área queimada, principalmente nos pescoços com pouco tecido subcutâneo, o resultado acaba sendo pobre, mesmo com o uso prolongado do colar cervical (mais de 6 meses). Debridamentos precoces (conforme vasta referência bibliográfica) (9-11) ajudam no sentido de retirar o tecido necrótico que, junto com a proliferação bacteriana, perpetua a inflamação e conseqüente fibrose. Ao mesmo tempo, após debridar o tecido necrótico cervical, não se deve aguardar em demasia a enxertia de pele porque a reparação para cicatrização por segunda intenção local inicia-se com formação do tecido de granulação. A medida do ganho com a cirurgia fica na "observação e palpação", visto que não há medida prévia da angulação da mobilidade cervical. Sabendo-se que essa angulação depende da idade e do biotipo do paciente, a comparação com outras técnicas fica prejudicada. A abreviação do tempo de internação hospitalar é empírica; supõe-se que, ao se realizar o debridamento e a enxertia de pele precocemente, se esteja contribuindo para a alta também precoce. Em relação à prevenção das seqüelas, temos que, dos 23 pacientes vivos submetidos à técnica cirurgica proposta, 3 foram reoperados devido à grande retração do enxerto em mesh graft torácico que tracionava o pescoço, 2 foram submetidos à zetaplastia na borda lateral do enxerto cervical e 2 reoperados com anestesia local por pequenas bridas no centro do enxerto, talvez por aderência ao platisma remanescente. Quanto ao acompanhamento ambulatorial dos pacientes queimados no serviço público, os problemas principais foram a mudanças de endereço fixo e a dificuldade econômica de acompanhamento (médico, fisioterápico, foniátrico, psicólogico,cosmiatrico, etc.). Por fim, na questão econômica, vale lembrar o baixo poder aquisitivo dos pacientes para a compra de malhas elásticas compressivas, órteses, placas siliconadas, cremes e protetores solares, que são fornecidos em pouca ou nenhuma quantidade pelos serviços públicos, o que dificulta ainda mais o tão demorado restabelecimento do paciente queimado. CONCLUSÃO Pelo exposto conclui-se que a técnica cirúrgica vem acrescentar no tratamento das queimaduras cervicais profundas. Consegue-se melhor definição do ângulo Rev.Soe. Bras. Ciro Plást. São Paulo v.18 n.3 p. 27-38 ser/dez. 2003 37

Revista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica cervicofacial e maior extensão do pescoço na primeira internação hospitalar, prevenindo portanto reinternações para tratamento de seqüelas retrácteis cervicais, onerando menos o serviço e reintegrando mais prontamente o paciente à sociedade. Graças à simplicidade do procedimento, ele pode ser realizado em qualquer centro de tratamento de queimados, não requerendo sofisticação tecnológica. AGRADECIMENTOS Agradecimento especial aos pacientes que confiaram na minha capacidade, aos colegas Médicos Residentes de Cirurgia Plástica (Santa Casa de São Paulo, UNIFESp' Hospital Santa Cruz, residentes do serviço do Dr. Paulo Mateó e Hospital do Servidor Público Estadual) que estagiaram e me auxiliaram durante esses anos nos serviços de queimados onde foi realizado o trabalho. BIBLIOGRAFIA 1. Kapandji IA. Fisiologia Articular. São Paulo: Manole; 1990. p.44-5. 2. Farid MM, Abdalla BM, Abdel FM. Burn contractures of the neck. Plast Reconstr Surg. 1978; 62:66-73. 3. Zani R, Melo JRA. Anatomia Cirúrgica da Face. In: Cirurgia Plástica. Ed. Ateneu; 1996. 4. Weston D, Gardner MD, Willian A, Osburn MMA. Anatomia Humana. 3' ed. São Paulo: Atheneu; 1974. p. 137. 5. Weston D, Gardner MD, Costa B, Nakamura DY, More ML, Blayney CB, Hoover CL. Early excision and grafting of face and neck burns in over 20 years. Plast Reconstr Surg. 2002; 109(4) :1266-73,. 6. Jonsson CE, Dalsgaard CJ. Early excision and skin grafting of selected of the face and neck. Plast Reconstr Surg. 1991; 88(1):83-92. 7. Voinchet V; Bardot J, Echinard C, Aubertjp, Magalon G. Advantages of early burn excision and grafting in the treatment of burn injures of anterior cervical region. 199521(2):143-6. 8. Janzekovic Z. A new concept in the early excision and immediate grafting ofburns. J. Trauma. 1970; 10:1103. 9. lwuagwu FC, Wilson D, Bailie F The use of skin grafts in postburn contracture rease: a 10-year review. Plast Reconstr Surg. 1999; 103(4):1198-204. 10. Cole JK, Engrav LH, Heimbach DM, Gibran NS, Costa BA, N akamura DY,Moore ML, Blayney CB, Hoover CL. Early excision and grafting of face and neck burns in patients over 20 years. 2002; 109( 4): 1266-73. 11. Heimbach DM. Early burn excision and grafting. Surg Clin North Am. 1987; 67:93. 38 Rev. Soe. Bras. CiroPlást. São Paulo v.18 n.3 p. 27-38 ser/dez. 2003