LEITE JÚNIOR, Jorge. Nossos corpos também mudam: A Invenção das categorias Travesti e Transexual no Discurso Científico. São Paulo, Annablume, 2011.

Documentos relacionados
Uma genealogia dos corpos que mudam*

O Senso Comum e os Corpos Generificados

DISFORIA DE GÊNERO E TRANSEXUALIDADE: UMA REVISÃO DOS CONCEITOS ª RESUMO

Existem autores que colocam a transexualidade fora dos marcos patologizantes, considerando-a apenas uma experiência idenitária.

NOME SOCIAL NO SISTEMA DE ATENDIMENTO

1 Introdução. 1 Foucault, M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus, e Rabinow, P. Michel Foucault. Uma trajetória

SEMANA 2 A NOÇAO MODERNA DA SEXUALIDADE. Autora: Cristiane Gonçalves da Silva

TRANSIÇÃO DE GÊNERO E DIREITO À SAÚDE GT1 - DIVERSIDADE E DIREITOS HUMANOS

NOTAS SOBRE SEXUALIDADE: GÊNERO, UMA FALSA QUESTÃO?

(Protig) Programa de Identidade de Gênero

LGBT: Público ou Privado. Gênero, Orientação Sexual e Identidade de Gênero

Sexualidade e TEA. Modos de subjetivação do sujeito com deficiência no discurso midiático. Ana Cláudia Serra Passos Psicóloga Sexóloga Psicanalista

TRAJETÓRIAS TRANSEXUAIS INTERFACE A CATEGORIA GERAÇÃO Eixo temático 03 Maiara Cristina Pereira 1 Florêncio Mariano Costa Júnior 2

PEDAGOGIA. Currículo (Teoria e Prática) Teorias curriculares Parte 2. Professora: Nathália Bastos

Normal. Anormal. Psicopatologia Geral e Especial Carlos Mota Cardoso

Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

Gênero. esexualidades. Prof. Agenor

Realização. Copyright Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos IMS/UERJ. Andreia Barreto Leila Araújo Maria Elisabete Pereira

GUIA PARA NÃO SER TRANSFÓBICO

DISCIPLINAS OPTATIVAS

Cellos repudia juiz que concedeu liminar parcial para tratar homossexualidade

ANALISANDO ALGUNS ESTUDOS CIENTÍFICOS: EM FOCO A TRANSEXUALIDADE

EMENTAS DAS DISCIPLINAS

Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica, p. 262.

TÍTULO: O DISCURSO MÉDICO E O CONHECIMENTO POPULAR A RESPEITO DA TRANSEXUALIDADE: TENSÕES ÉTICAS E POLÍTICAS EM DEBATE CATEGORIA: EM ANDAMENTO

MICHEL FOUCAULT ( ) ( VIGIAR E PUNIR )

Que nunca chegue o dia que irá nos separar notas sobre epistémê arcaica, hermafroditas, andróginos, mutilados e suas (des)continuidades modernas*

CONCEITUANDO HOMOSSEXUALIDADE

atualidade é a chamada ideologia de gênero. eloquente manifestação da rebeldia humana contra Deus.

- Foi ele quem introduziu um sistema para compreender a história da filosofia e do mundo,

A ORIENTAÇÃO SEXUAL NO PROCESSO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA: UM DEBATE NECESSÁRIO

CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA. Profº Ney Jansen Sociologia

DIREITO A ALTERAÇÃO DO NOME COMO ELEMENTO CARACTERIZADOR DA PERSONALIDADE DOS TRANSEXUAIS

rejeição ao seu sexo biológico, podendo chegar a situações extremas de automutilação ou, até mesmo, suicídio. 6. Apesar de existirem várias teorias

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO. Relatório Perfil Curricular

CONTEXTUALIZAÇÃO DO DEBATE ACERCA DA DESPATOLOGIZAÇÃO DAS TRANSEXUALIDADES E TRAVESTILIDADES

Da Parrhesía no Íon de Eurípides e o Cuidado de Si dos Gregos ao Governo dos Outros no Cristianismo e na Biopolítica. Por Daniel Salésio Vandresen

Unidade 2 - Saúde, sexualidade e reprodução SEMANA 4 SAÚDE, SEXUALIDADE E REPRODUÇAO. Autora: Cristiane Gonçalves da Silva

Princípios e práticas da Psicologia Experimental. Ana Raquel Karkow Profa. Luciane Piccolo Disciplina Psicologia Experimental I 2011/1

A História da Psicologia Social

O outro revisitado ou a Desordem de identidade de gênero e o Saber - uma questão social estudo sobre a transexualidade

A TRANSEXUALIDADE NO CENÁRIO BRASILEIRO ATUAL: A DESPATOLOGIZAÇÃO E O DIREITO À IDENTIDADE DE GÊNERO

EMENTAS DAS DISCIPLINAS DO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO E DOUTORADO (Resolução nº 182/2017-CI/CCH 31/10/2017)

Produção de sentidos sobre masculinidades por homens trans: Entre acomodações, resistências e agências.

A PSICOLOGIA COMO PROFISSÃO

RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE A POSSIBILIDADE DA CRÍTICA NA ATUAÇÃO DO SEXÓLOGO. Psic. Esp. Giovanna Lucchesi CRP 06/92374

Filosofia Iluminista. Profª Karina Oliveira Bezerra Unidade 01. Capítulo 04: p Unidade 08. Capítulo 05: pg

CURSO: EDUCAÇÃO FÍSICA - BACHARELADO EMENTAS º PERÍODO

Agora vamos assistir a uma Apresentação Narrada sobre o Positivismo. Ao final desta espera-se que você aprenda sobre as características do

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS

HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO

V SEMINÁRIO DE PESQUISA E ESTUDOS LINGUÍSTICOS FUNCIONAMENTO DISCURSIVO SOBRE ALIENAÇÃO PARENTAL NA MÍDIA BRASILEIRA

Entrevista com Jurandir Freire Costa

Leia, com atenção, o texto abaixo (Texto I), para responder às questões de 01 a 04. A identidade e a diferença: o poder de definir

TÍTULO: ENTRE OS LIMITES E AS POSSIBILIDADES DE UMA PERSPECTIVA PEDAGÓGICA COM A CRIANÇA TRANSGÊNERO.

EMENTAS DAS DISCIPLINAS

FILOSOFIA e LITERATURA um tema e duas perspetivas. Fernanda Henriques Capela do Rato 2018

Leia, com atenção, o texto abaixo (Texto I), para responder às questões de 01 a 04. A identidade e a diferença: o poder de definir

FORMAR PARA A DIVERSIDADE: A QUESTÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO GERAL DE PSICÓLOGOS E PSICÓLOGAS NA CIDADE DE PELOTAS

PRINCIPAIS CAMPOS DA PSICOPATOLOGIA. Marco Aurelio Soares Jorge

PROGRAMA DA PÓS-GRADUAÇÃO. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Franca. Foucault, a história e os modos de subjetivação no Ocidente

EDUCAÇÃO FÍSICA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL EM GOIÂNIA: UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A PEDAGOGIA DO CORPO

Prova Global Simulado 6º. Filosofia 2014/2 Devolutiva das questões

Helping the helpers [distúrbios da sexualidade]

DISTÚRBIOS, TRANSTORNOS, DIFICULDADES E PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM

O Poder da sexualidade escolha ou Karma? Astrologia como guia

PNAIC/2015 TERCEIRO CICLO DE FORMAÇÃO. Módulo III CONCEPÇÃO DE CRIANÇA, INFÂNCIA E EDUCAÇÃO. Claudinéia Maria Vischi Avanzini Lisandra Ogg Gomes

Curso TURMA: 2101 e 2102 DATA: Teste: Prova: Trabalho: Formativo: Média:

A Determinação Objetal da Doença. Roberto Passos Nogueira

Componente Curricular: Psicologia e Sexualidade Professoras: Adalene Sales e Paula Montagna Período: 7º Noturno Ano:

AUTORES Aldo Vannucchi (Brasil) Ismar Capistrano Costa Filho (Brasil) Theodor Adorno (Alemanha) Max Horkheimer (Alemanha) Roberto DaMatta (Brasil)

A Construção de Gênero pela Indumentária: as roupas e os travestis.

A ATITUDE FILOSÓFICA

Unidade 2: História da Filosofia. Filosofia Serviço Social Igor Assaf Mendes

(DES)PATOLOGIZAÇÃO: POSSIBILIDADES NAS EXPERIÊNCIAS TRANS NO SUS

(DES) PATOLOGIZAÇÃO: POSSIBILIDADES NAS EXPERIÊNCIAS TRANS NO SUS

A PSICOLOGIA FRENTE AS QUESTÕES DA TRANSEXUALIDADE PSYCHOLOGY AND THE STUDIES OF TRANSGENDER IDENTITY

Aula 04. Parte Geral. I Pessoas (continuação)

AGRUPAMENTO de ESCOLAS de SANTIAGO do CACÉM Ano Letivo 2016/2017 PLANIFICAÇÃO ANUAL. Documento Orientado: Programa da Disciplina

Glossário da Diversidade

INCLUSÃO SOCIAL: COMPREENDENDO A TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA ATRAVÉS DA PSICOLOGIA E DA PSICANÁLISE

UNIDADE 1 - Do Mito à Filosofia

Ciência, técnica, política: controvérsias em torno do direito aos procedimentos médicos de transformação corporal do sexo

Revista Filosofia Capital ISSN Vol. 1, Edição 2, Ano BREVE ANÁLISE FILOSÓFICA DA PESSOA HUMANA DO PERÍODO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO

MINORIAS NO SÉCULO XXI, UMA ANÁLISE SOBRE OS DIREITOS DOS TRANSEXUAIS EM TERRITÓRIO BRASILEIRO

TRANSEXPERIÊNCIAS: RESSONÂNCIAS PARA O ENSINO DE BIOLOGIA NA ESCOLA

RELAÇÕES DE GÊNERO NA DOCÊNCIA.

Sexualidade, Resposta Sexual Humana e Disfunção Sexual

Piaget. A epistemologia genética de Jean Piaget

sexo, sexualidade, gênero, orientação sexual e corpo

GÊNEROS, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO

Áreas disciplinares da Universidade de Lisboa homologadas pelo Senhor Reitor, nos termos do Despacho Interno R , de 19 de março

Categorias identitárias

EMENTÁRIO MATRIZ CURRICULAR 2014 PRIMEIRO SEMESTRE

Ítaca 27. Defesas Doutorado Doutorado

ÉTICA GERAL E PROFISSIONAL MÓDULO 2

FILOSOFIA BREVE PANORAMA GERAL FILOSOFIA ANTIGA

Ei, você trabalhadora e trabalhador do SUAS!

Foucault e a educação. Tecendo Gênero e Diversidade Sexual nos Currículos da Educação Infantil

ANTROPOLOGIA MÉDICA Breve Contextualização

Transcrição:

LEITE JÚNIOR, Jorge. Nossos corpos também mudam: A Invenção das categorias Travesti e Transexual no Discurso Científico. São Paulo, Annablume, 2011. Marco Antônio Gavério 1 A obra de Jorge Leite Júnior é em si mesma aquilo que tenta resgatar: uma multiplicidade de discursos que, em suas localizações históricas, incessantemente se transformam, desfazem- -se para serem refeitos de formas distintas, mas não menos intrincadas na vontade de saber (FOUCAULT, 2005). Da filosofia platônica às prescrições cirúrgicas de Robert Stoller, o autor traça historicamente uma série de mudanças na maneira de produzir o conhecimento sobre as delimitações entre sexo e o que conhecemos hoje sobre gênero. Uma história de corpos mutantes que merece ser considerada perante a constante percepção de que os sólidos edifícios que sustentam a ideia de uma essência Humana sexuada e generificada, constante e imutável, estão também constantemente se alterando (LEITE JÚNIOR, 2011, p.28). Contudo, como Berenice Bento deixa nítido em seu prefacio a obra, não estamos diante de um autor positivista que busque uma causa eficiente explicativa das permanências e mudanças dos conceitos, dos corpos e das relações sociais (LEITE JÚNIOR, 2011, p.16). É o discurso cientifico, disseminado amplamente na cultura consumida, a base em que se discutem posicionamentos políticos e a espetacularização de determinados corpos e desejos. O trânsito entre as identidades de gênero, a partir do campo do autor com travestis e transexuais, mostrou-se emaranhado ao que chama de capital corporal (LEITE JÚNIOR, 2011, p.24) que, por sua vez, é separado do gênero e da política dentro das conceituações cientificas. Dessa forma, Leite Junior (2011, p. 32) salienta que entre o hermafrodita da Antiguidade e o do século XIX, não houve evolução, mas rupturas, mudanças e o surgimento de uma nova entidade conceitual. Assim, ao recuperar distinções clinicas e político-identitárias, o autor analisa a emergência e manutenção dos conceitos científicos travesti e transexual, o quanto são baseados em constantes reiterações das normas de gênero (homem\mulher; masculino\feminino) e como as distinções de gênero e sexualidade são vivenciadas como se fossem naturais (LEITE JÚNIOR, 2011, p.25). Contudo, a experiência de suas colaboradoras e colaboradores no campo é fundamental para o autor compreender a proliferação de identidades, suas ressignificações e vivencias cotidianas, através da articulação crítica de experiências legitimas em um contexto histórico-discursivo que as corroboram ou as deslegitimam. 1 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Um dos argumentos fundamentais da obra é a figura do hermafrodita como influencia conceitual (2011, p.43). Encarnação da androginia platônica, pertencente a nossa cultura ocidental desde a antiguidade, o hermafrodita ancorou nossas grandes narrativas ocidentais autorizadas sobre as fronteiras entre os sexos. Representando a harmonia unívoca do mundo em sua ambiguidade sexual, o hermafrodita estava extremamente ligado às noções de uma vida cotidiana relacionada ao mundo do fantástico, das maravilhas. Como um conceito vitoriano, o pseudo-hermafrodita e o hermafrodita psíquico surgem no século XIX apartados de seu antigo universo mágico, esquadrinhados em sua organicidade corporal e psique pelo olhar objetivo e espacializado da medicina (FOUCAULT, 2003). Fruto da racionalização iluminista e das caracterizações psico-fisiológicas, o hermafrodita vitoriano, caracterizado pela ciência sexual, será o foco sobre o qual irão se propagar as identidades e distinções daquilo que conhecemos hoje como sexo e gênero. Mas qual o ponto em que a essência humana se converte como sinônimo de seu sexo e de um gênero respectivo e coerente? Conforme o autor, a busca pela verdadeira mulher-feminina ou pelo verdadeiro homem- -masculino, ou seja, as distinções que se constituíram a partir de dadas fisiologias e psiques, vão gradualmente se solidificando, através do sec. XVIII, devido a uma série de transformações sociais, culturais e políticas que possibilitarão a expansão de uma nova epistemologia. O ponto é que na antiga tradição médico-filosófica e judaico-cristã a diferença entre homens e mulheres era uma questão de hierarquia fisiológica, social e espiritual, onde uma característica refletia e confirmava a outra (LEITE JÚNIOR, 2011, p.54). Em vigor, mais fortemente até o século XVIII, estava o entendimento das diferenças sexuais como gradações de um mesmo ser, um corpo com dois sexos que se desenvolveriam do feminino para o masculino. É com o renascimento e seu constante estatuto racional encontrando seu expoente filosófico em Descartes que, de maneira mais radical, vão separar-se corpo e mente, sendo esta privilegiada e inerente a homens e mulheres. Até então, ser mulher significava um grau de involução da ordem natural fisiológica e, assim sendo, deveria estar hierarquizada socialmente de maneira inferior. Se o novo regime traz a natureza como justificativa para novas distinções políticas e sociais, uma nova série de conceituações, especificações e taxonomias surgem para fortalecer o processo de separação entre ciência e religião. Não à toa, em 1832, Geoffrey Saint-Hilaire cria a teratologia (do grego terata, monstruosidade, anomalia (LEITE JÚNIOR, 2011, p.67-68)) para sistematizar cientificamente as deformidades físicas como monstruosidades, as desvinculando do antigo entendimento mágico-religioso sobre monstros, que tinha nesta figura aquele que mostra algo a humanidade, que carrega algum sinal ou ira divina. A busca pelo verdadeiro sexo será um processo gradual de objetivação dos limites das diferenças sexuais em seus caracteres genitais, orgânicos e posteriormente psíquicos. Não mais como um mito que remetia a um mundo ideal da filosofia platônica ou como a manifestação corporal de um mau augúrio, o hermafrodita se torna um mutilado que, segundo Leite Júnior (2011, p.64): [...] perdeu gradativamente sua expressão de um complexo microcósmico que espelha uma possível desordem macrocósmica (Foucault, 1987) entre os mundos masculinos e femininos e passou a centralizar o debate sobre tais limites em sua genitalidade e caracteres sexuais orgânicos. Nesse contexto o alerta do autor é para a concepção mutante sobre o entendimento das ambiguidades sexuais e de gênero catalisado por um dos discursos legitimadores da questão,

o cientifico, de cirurgiões, endocrinologistas, psiquiatras e outros médicos (LEITE JÚNIOR, 2011, p. 60). Através da dúvida científica da real possibilidade do hermafrodita, representante da fronteira e da ambiguidade em uma noção de um ser único com dois gêneros, a ciência sexual instaurada na lógica do biopoder de uma sociedade disciplinar, focará cada vez mais nos caracteres orgânicos internos e externos que designariam machos e fêmeas. De maneira vigorosa, a noção de dois seres orgânicos distintos com dois gêneros também distintos, mas correspondentes, irá modular mais ativamente os processos históricos e sociológicos de distinção modernos. Assim, a crescente separação supostamente ontológica dos corpos e psiques como femininas e masculinas tinha seus limites estabelecidos pelos debates em torno da separação entre aparência e essência e do marcante debate filosófico sobre a natureza humana. É a sensibilidade do Romantismo do século XIX que, unida a ascensão da mentalidade burguesa, irá separar o interno do externo e possibilitará inscrever cientificamente, no sentido medico e biológico, uma direção naturalmente oposta da atração entre homens e mulheres. É com essa crescente impossibilidade de existência do verdadeiro hermafrodita que cirurgiões e endocrinologistas, como Carlos Lagos García e Gregorio Marañon, argumentarão, já no século XX, não mais por um sexo verdadeiro e sim por um sexo que irá prevalecer orgânica e fisiologicamente. Uma vez que homens e mulheres começam a se distinguir, no discurso biomédico, por caracteres sexuais primários e secundários, surge o pseudo-hermafrodita como correspondente, mais masculino ou feminino, da fluência complexa e possivelmente natural entre os sexos. Na busca pela constante diferenciação sexual serão inseparáveis - de maneira geral até a segunda metade do século XX - desejo, gênero e sexo. Em outras palavras, mesmo as diferenças sociais ficando cada vez mais localizáveis no espaço corporal e mental do indivíduo moderno, identificado em sua unidade, o autor (2011, p. 96) aponta que eram: os verdadeiros homens os masculinos, e mulheres, as femininas. Independentemente do que ser masculino ou feminino possa significar para o período, o importante é que fossem representados e atualizados em conformidades com os sexos considerados correspondentes: homens com masculinidade e mulheres com feminilidade, sendo qualquer perturbação desta equação e linearidade um desvio, uma perversão. A partir da especulação cirúrgica sobre o corpo do agora pseudo-hermafrodita, acompanhando a radicalização da separação corpo-mente durante o século XIX, surge o hermafrodita psíquico como sinal da inversão da atração sexual. Assim, em consonância com a criação da espécie homossexual, também considerada o ponto extremo da intersexualidade (a mistura interna das diferenças entre feminilidade e masculinidade) o hermafroditismo psíquico será ancoragem conceitual para as análises daqueles considerados pervertidos ou perversos. É com Magnus Hirschfeld, já no começo do século XX (LEITE JÚNIOR, 2011, p.106-7), que a relação entre impulso sexual e uso de vestimentas do sexo oposto será psicologizada ao ganhar uma nova denominação, o travestismo. Hirschfeld associa o ato de travestir-se a uma gratificação erótica na troca das vestes independente da natureza da atração sexual, uma vez que estes indivíduos não apresentam distúrbios psicóticos e sim uma forma de expressividade intima de um desvio da sexualidade considerada normal (LEITE JÚNIOR, 2011, p.109-10). É esse trabalho tão minucioso de recuperação histórica de cada nó discursivo no emaranhado de relações de saber\poder que o autor perceberá as bases para a desintegração Áskesis v. 3 n. 1 janeiro/junho - 2014 p. 234-238 236

clínica (analítica e conceitual) da coerência entre sexo, gênero, aparência, desejo e comportamento (2011, p.108), através da constante referência à figura ambígua do hermafrodita, que vai ser aprofundada na segunda metade do século XX. Assim, o conceito de gênero será forjado a partir de uma outra criação clinica desse século, o transexualismo, como derivação da sexo-patologia travesti, em um contexto social de disciplina e controle, onde os desviantes precisam ser incluídos na participação social, através de instituições e outras categorias para contenção de suas anormalidades ameaçadoras. Tanto nos discursos analíticos das ciências sociais, quanto nos já dominantes discursos analíticos médicos, a interiorização das diferenças sexuais e comportamentais acompanhará a cisão mente-corpo de tal maneira que a essência do sexo deixará de ser somente sua aparência. A importância do corpo sexuado para endocrinologistas, como Harry Benjamin, psicólogos e psiquiatras\psicanalistas como John Money e Robert Stoller, será indissociável da noção de um sexo da mente. Através do estudo clinico e da espetacularização via cultura de massas de casos de mudanças de sexo as trocas de sexo, focadas principalmente na intervenção corporal de indivíduos com distúrbios somático-psíquicos, corresponderão ao entendimento que esses médicos, bem como a própria sexologia do século XX, construirão sobre a necessidade de distinguir cada vez mais as diferenças entre homens e mulheres. É dessa maneira que surgem identidades sexuais em torno da noção de um gênero circunscrito nas dimensões biológicas do corpo humano. Assim, em 1953, Harry Benjamin, criará literariamente o transexualismo como uma condição médica diferente, porem da mesma base do travestismo. Ambos serão um distúrbio da normal orientação do sexo e do gênero (Benjamin Apud LEITE JÚNIOR, 2011, p. 146), porém o transexual carregará, na literatura medica especializada, a profunda identificação com o sexo-gênero oposto, enquanto o travesti será cada vez mais alocado nas perversões. Paralelamente, em 1955, John Money se baseia no conceito sociológico parsoniano de papel social e designa a palavra gênero para referir-se às diferencias sexuais relacionadas a identidade sexual e, em 1964, Robert J. Stoller anuncia o conceito identidade de gênero distinguindo feminilidade e masculinidade do ser homem ou mulher no sentido da inevitável biologia. Em 1973, já influenciado pelos estudos de Stoller em 1968 sobre a identidade de gênero nuclear, Money ajuda a conceber o conceito disforia de gênero como a insatisfação com seu próprio gênero (LEITE JÚNIOR, 2011, p.155). Separa-se mais fortemente gênero e sexualidade, indica-se e prescreve-se para os verdadeiros transexuais a cirurgia de transgenitalização enquanto se busca incessantemente, no íntimo do organismo e no íntimo da mente, os reais e verdadeiros homens e mulheres. Evocar o gênero de uma pessoa é indissociável, a partir de variados polos de uma disputa de poder linguística e terminológica, da procura pela verdade. Como Leite Júnior coloca (2011, p. 181) a busca pelas verdadeiras pessoas transexuais revela, por oposição, a fragilidade e os constantes esforços necessários para se manter um padrão ideal de pessoas normais, sem desvios, perversões, parafilias, disforias ou transtornos. Seguindo a filósofa Judith Butler e suas problematizações sobre gênero, o autor aponta a ficção reguladora envolvida na ideia moderna de gênero (2011, p.121) como produtor da materialidade e da inteligibilidade de corpos organizados sobre as distinções sexuais e sob sexualidades especificas. Nesse sentido, o que as prescrições médicas indicavam ao construir nosologias especificas do travestismo e do transexualismo era, antes de tudo, uma coerência discursiva entre natureza e cultura visando fundamentar de maneira mais purificada possível a natureza heterossexual de homens e mulheres embasada nas noções de uma família burguesa como uma reprodução unicamente sexológica. Áskesis v. 3 n. 1 janeiro/junho - 2014 p. 234-238 237

Em 1973 o termo clinico homossexualismo deixa de constar no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), dando espaço as categorias Transtorno psico-sexual e Transtorno da identidade de gênero. Em 1980 o transexualismo figurará na terceira edição do DSM, sendo retirado em 1994 com o lançamento do DSM-IV, enquanto o travestismo se manterá como um fetiche, dentro da categoria maior parafilia. Também em 1980, pela primeira vez, na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, ou Código Internacional de Doenças (CID) transexualismo será considerado como um transtorno mental de ordem sexual. Jorge Leite Júnior ainda nos lembra (2011, p.189) que o DSM e o CID objetivam padronizar a orientação ao tratamento e a pesquisa em relação a doenças e transtornos psíquicos ao mesmo tempo que consideram, de maneira geral, o travestismo como disfunção sexual e o transexualismo como um transtorno da identidade. Será sobre essas profundas distinções marcadas por uma complexa linguagem cientifica que os movimentos político-identitários vão ressignificar termos patológicos em busca de uma identidade coletiva positivada representada, por exemplo, pelo termo transexualidade. É assim que essa obra nos oferece uma importante análise do complexo movimento histórico em que a invenção de categorias se mostra um dos principais fundamentos da necessidade constantemente evocada de se distinguir e hierarquizar corpos e suas vivencias\experiências. As normas de gênero são incessantemente colocadas em discurso como criadoras e fixadoras de um conjunto organo-psíquico coerente e tudo que lhe escapa, ao mesmo tempo que garante a reiteração da própria ordem, pode desestabilizar essas mesmas normatividades. São as estéticas de gênero tidas como falsas ou desviantes que borram as limitações categóricas e patologizantes nos permitindo questionar cada vez mais: por que nossos corpos não podem mudar? Referência FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. História da Sexualidade I - A Vontade de Saber. São Paulo: Graal, 2005. Áskesis v. 3 n. 1 janeiro/junho - 2014 p. 234-238 238