UMA BREVE EXPERIÊNCIA EM PESQUISA 1 Flávio Miguel da Silva 2 Quando a professora Mariza me convidou para participar de seu trabalho de pesquisa na área de alfabetização, em abril próximo passado, além de ter sido uma honra foi também um susto! Honra, porque depois de tanto esforço no primeiro semestre do Curso de Letras e de tantas surpresas, pois tudo era novo e desconhecido, ter, logo no segundo semestre, delegada a mim e a meu colega Jailton a responsabilidade de ajudá-la na busca do entendimento de um fato, ainda, tão carente de esclarecimento: a inscrição do sujeito no mundo das letras. Foi realmente um susto. E susto maior foi saber que participaria do I Encontro de Letras da Universidade Católica não como ouvinte, e sim, como palestrante. Ainda não tive tempo para mensurar sentimentos, se é que podemos, já que são tantos e tão intensos. Poder participar deste Encontro, que tem tudo para fomentar a vida acadêmica da Universidade e de Brasília é acreditar que iniciativas como esta, poderão fazer diferença, visto que a cidade foi tomada por instituições de ensino superior - o que é excelente e que a Católica, enquanto universidade, deve promover eventos, que possam produzir conhecimento relevante em nível até nacional. Sou otimista, e penso que pesquisas como a nossa podem trazer para a universidade uma posição significativa entre as universidades brasileiras. Para isso, o primeiro passo seria a sua divulgação, o que estimularia os alunos a participarem do trabalho de investigação, o que infelizmente, ainda não acontece para a maioria. Em seguida, criar condições para que os professores, que são a mola mestra de uma instituição de ensino e pesquisa, possam dar partida ao desenvolvimento de trabalhos de pesquisa e à organização de Encontros como este. Bem, acredito que a minha tarefa aqui é transmitir aos alunos um pouco de minha experiência inicial em um trabalho de pesquisa. Além da satisfação pessoal que gera, devido ao contato com realidades que até como aluno desconhecia, esta experiência colabora na formação de uma nova consciência e na aquisição de informações que auxiliam nas disciplinas do próprio Curso de Letras. Outro aspecto importante é a questão profissional. A visão que passamos a ter da profissão que 1.Texto apresentado na I Semana de Letras da Universidade Católica de Brasília, em 02 de setembro de 1999. 2. Aluno do 3º semestre do Curso de Letras da UCB e estagiário do projeto de pesquisa: "Alfabetização: a conquista de uma autoria, sob a coordenação da Dra. Mariza Vieira da Silva.
2 escolhemos é sem dúvida maior, mais consciente e realista. O mercado é tão carente de profissionais competentes que cabe a esta universidade formar estes profissionais bem mais afinados com a nossa realidade educacional e prepará-los para encarar qualquer nível de especialização após a graduação. Visto que a prática da pesquisa já foi alcançada, ambos, estudante e instituição, se sentirão recompensados. A nossa pesquisa: Alfabetização: a conquista de uma autoria investiga a inserção do sujeito no mundo letrado e sua produção como escritor e leitor. A teoria da Análise do Discurso francesa, fundada por Michel Pêcheux na década de 60, serve de fio condutor para as nossas investigações. Esta pesquisa tem nos proporcionado um ganho incomensurável de informações sobre o desenvolvimento intelectual do homem, principalmente se tomarmos os trabalhos do psicólogo russo Leo Vygotsky, que teve sua vida findada aos 38 anos. Sua contribuição na área do desenvolvimento e aprendizagem, fala e escrita é enorme. Os benefícios deixados pelo seu estudo nos ajudam a percorrer, à luz da Análise do Discurso, os muitos caminhos que foram abertos na área da linguagem. Quando falo da nossa pesquisa, digo que seu nome é Alfabetização: a conquista de uma autoria e a defino como investigação da inserção do sujeito no mundo letrado. Vocês devem se perguntar: o que isso quer dizer? Esta pergunta pode ser respondida quando mostro um exemplo, que coincidentemente ocorreu comigo. Há duas semanas, a professora Mariza, ao avisar-me que participaria deste Encontro, falou: Flávio, escreva algo que fale de sua experiência como pesquisador. Estes dois verbos escreva e fale podem esclarecer, em parte, a nossa meta. Dada a aparente distância, eles estão muito próximos em nosso trabalho, pois, se os fundirmos, teremos a língua(gem) escrita que estamos procurando analisar nos alunos e professores que temos para entrevistar. Ao escrever este algo para falar, notei como é difícil escrever, para nós, universitários, que pretendemos dominar a arte de redigir; ou como não é fácil escrever. Vygotsky fala a respeito da linguagem escrita. Ele a menciona como viva e que ocorrerá de forma diferente da língua(gem) oral, que surge naturalmente na criança e que se desenvolve por si mesma. Já o ensino da linguagem escrita está diretamente ligado a um treinamento não natural, ou melhor, social, e encabeçado por um professor. Devido a isso, corre-se o risco de deixá-la em segundo plano, pois seu ensino não foi fundamentado nas necessidades naturalmente desenvolvidas pela criança mas, sim, num sistema que Vygotsky(1998) compara ao ensino do tocar piano. 2
3 O aluno desenvolve a destreza de seus dedos e aprende quais teclas deve tocar ao mesmo tempo que se lê a partitura; no entanto, ele não está de forma nenhuma, envolvido na essência da própria música. (p.140) Para ele, portanto, aprender a linguagem escrita é, algo, diferente de simplesmente escrever, ou seja, não se trata de algo mecânico, mas de outra linguagem que significa e tem uma história. Com isso podemos levantar duas questões: Como alcançar esta linguagem escrita? Por que é tão difícil aprendê-la? Eu tive a oportunidade de visitar uma escola da Fundação Educacional, na cidade-satélite do Gama, para começar a coleta de dados com alunos da primeira fase do Ensino Supletivo Fundamental, que abrange também a alfabetização de adultos. Lá, dei início a reflexões sobre estas questões, baseando-me nas formulações feitas por Vygotsky em relação às crianças iletradas e em processo de letramento e que poderemos, no desenvolvimento da nossa pesquisa, estendê-las a reflexões sobre os alunos adultos, consideradas certas diferenças. Estudos feitos por Vygotsky a respeito do ensino da escrita, deixam claro que este era feito de maneira singular. A escrita ganhou um espaço aquém da sua importância no desenvolvimento cultural da criança. Com base na sua afirmação: Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. (p.139), podemos dizer que esta linguagem está bem distante da arte de escrever ensinada nas escolas. O ensino da escrita, apenas como uma habilidade motora, diminui sua importância no desenvolvimento da criança por se dar em meio a um ponto crítico deste desenvolvimento. Neste sentido, segundo Vygotsky, a linguagem escrita inicia-se como um simbolismo de segunda ordem passando, gradualmente, a um simbolismo direto. Ou seja, a linguagem escrita é um sistema de signos referentes aos significantes e aos significados da oralidade e estes são signos de entidades reais. Gradualmente, o elo existente entre a língua(gem) escrita e a língua(gem) falada desaparece e a língua(gem) escrita torna-se o sistema de signos para simbolizar diretamente as entidades reais e suas relações É importante compreender o desenvolvimento da história da escrita da criança, pois sua linguagem escrita não se inicia quando ocorre o domínio do ato de escrever com desenvoltura. Isso pode ser comprovado a partir das experiências feitas por Alexandr Luria que foi o mais brilhante aluno de Vigotsky com crianças que ainda não eram capazes de escrever. 3
4 Era pedido a crianças iletradas, que memorizassem um número muito grande de frases. Elas quando já não eram mais capazes do feito, recebiam lápis e papel para que representassem em forma de desenhos ou rabiscos as frases não memorizadas. Para a maioria das crianças entre três e quatro anos, os rabiscos não eram de muita ajuda, porém os de algumas causavam espanto, pois rabiscos que, a princípio, pareciam absolutamente sem sentido e desordenados tomavam forma. Ou seja, elas podiam relembrar as frases como se estivessem lendo e mais, toda a estrutura da frase fora mantida, isso quer dizer que a linearidade, observada por Saussure, fora respeitada inclusive nos desenhos. A partir dessa experiência, podemos levantar uma hipótese, que com o desenvolvimento da pesquisa poderá ser ou não confirmada. Tal hipótese ocorreu-me, após a minha visita a essa escola do Gama, pois um fato relatado pela professora, numa entrevista informal despertou minha curiosidade. A educação artística, que é oferecida em caráter optativo, pois a recusa dos alunos a essa disciplina é quase unânime, não é estendida para os alunos da alfabetização. A hipótese seria: se esta disciplina tivesse como objetivo o ensino de uma pré-escrita, nos termos de Vygotsky, desenvolveria a capacidade de abstração e memória do aluno e facilitaria o alcance da escrita, embora estejamos tratando de um simbolismo de primeira ordem, que é a representação pictográfica? Na experiência de Luria, os rabiscos e traços feitos pelas crianças eram o prenúncio da escrita feita com signos. E para a criança alcançar tal estágio será necessária sua evolução no sentido do simbolismo de segunda ordem, ou seja, na representação de sinais escritos para os signos da fala que seriam as palavras. Este estágio só será alcançado no momento em que for levada à criança a idéia de que ela pode escrever não coisas ou o que ela não consegue memorizar mas também a fala, com tudo que ela tem de história e memória para este sujeito. Esta seria a passagem natural do desenho de coisas e ações ou gestos para a escrita de palavras. Um outro fato me chamou a atenção, nesta primeira visita informal à escola: o material didático. Foi-me relatado que após esta avaliação a que os livros didáticos foram submetidos pelo Ministério da Educação, a escola passou a receber, em número limitado, alguns livros para a alfabetização de jovens e adultos, o que nunca havia acontecido antes. Não pude deixar de notar que os enunciados dos exercícios e as partes teóricas eram em sua maioria muito extensas e formais. Este mesmo fato já fora 4
5 observado pela professora entrevistada que se via obrigada a usar outros materiais, como alternativa aos livros didáticos. Esses materiais são: jornais, revistas, folhetos etc. No levantamento bibliográfico da pesquisa, que estamos fazendo, resenhei uma dissertação de mestrado defendida por Mabel Servidone intitulada Leitor e escritor ou observador distanciado (1993), que diz: É necessário o uso, não somente de livros infantis, mas também o uso de produções escritas como jornais, revistas em quadrinhos, out-doors e folhetos na produção da escrita e na identificação dos vários usos da língua escrita em nossa sociedade. (p.111) Neste trabalho, a autora defende a tese de levar a criança à sistematização da língua escrita estabelecendo um sentido de escrita, o que significa colocá-la acima da codificação de símbolos, e compreendê-la enquanto uso social, desprezando a excessiva normatização imposta pela escola. Em sua experiência no Projeto de Antecipação da Escolaridade, a criança candidata a 1 a série do ciclo básico no ano de 1986 da Secretaria de Educação de São Paulo, em conjunto com a PUC/SP, Servidone observou que era usado na alfabetização outras fontes de produção escrita, além das cartilhas o que resultaria em uma maior conscientização política da criança, pois as que participaram do projeto, apresentavam ao final do curso maior noção de seu posicionamento como alunas, como moradoras do bairro ou como cidadãs. No final do projeto, as crianças que foram entrevistadas por Servidone, alegaram que tiveram a oportunidade de estudar numa escola diferente, melhor. Segundo informações coletadas com a professora da primeira fase da escola do Gama, um aluno alfabetizado seria aquele capaz de escrever textos e ditados com desenvoltura, não incorrer em erros de caráter fonológico, não suprimir sílabas e fazer uma interpretação de texto não linear. Vê-se, então, como é importante a descoberta da escrita como segundo elemento de comunicação, além da fala. Essa descoberta se dá no momento em que o aluno poder ver a linguagem em produções escritas comuns no seu cotidiano, como: jornais, revistas, folhetos, mensagens publicitárias, placas indicativas com textos ou símbolos etc. Esta experiência está sendo feita na escola visitada como alternativa para a péssima qualidade do material didático distribuído pela Fundação Educacional. Embora o intuito primeiro não seja a conscientização política do aluno, na experiência relatada por Servidone, existe a possibilidade do aumento desta, já que o uso de outras fontes de língua escrita que não as cartilhas tradicionais, possibilita o acesso à realidade social e econômica. Observa-se que a maioria das cartilhas não 5
6 estabelece elos com a realidade do aluno adulto, pois os textos são simplistas e fora do contexto social e profissional, e visam a uma homogeneização do ensino. Esta análise feita por Servidone é importante para nossa pesquisa, pois estamos investigando como ocorre a entrada do sujeito no mundo letrado; e tomando-a como estímulo trago aqui três importantes reflexões feitas por Vygotsky a respeito do ensino da escrita, considerando que esta deva ser extensão da linguagem e que reflita a autoria do aluno: 1. pode-se atribuir o valor de utilidade, ou seja o aluno deve sentir necessidade de escrever ou expor idéias escritas. Vygotsky explicava da seguinte maneira:...o ensino tem de ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. (p.155) Caso o processo pedagógico seja feito de maneira que a escrita se torne algo maçante, no sentido de entediar o aluno com nomenclaturas ou regras gramaticais, o sucesso será mínimo; 2. segunda reflexão diz respeito à relevância da escrita para a vida do aluno. Se este não a vê com um outro estágio de linguagem, esta será reduzida a uma habilidade manual, apenas. Por fim e mais importante é termos uma reflexão voltada para como ensinar a criança ou o adulto a escrever de maneira natural e não mecânica. Posso citar o pensamento de Vygotsky para finalizar: Dessa forma, uma criança passa a ver a escrita como um momento natural no seu desenvolvimento, e não como um treinamento imposto de fora para dentro. (p.156) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SERVIDONE, Mabel.(1993) Leitor e Escritor ou Observador Distanciado. Dissertação de Mestrado. Campinas, SP: UNICAMP. VYGOTSKY, Leo S. (1998) A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes. 6