A PSICOLINGUÍSTICA CONTEMPORÂNEA E A APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA

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Transcrição:

A PSICOLINGUÍSTICA CONTEMPORÂNEA E A APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA MARCELLE TOLEDO BARBOSA BITARÃES No ano de 1962, começam a surgir mudanças sumamente importantes a respeito de nossa maneira de compreender os processos de aquisição da língua oral na criança. De fato, acontece nesse campo uma verdadeira revolução, até então dominado pelas concepções condutistas. Até essa época, a maior parte dos estudos sobre a linguagem infantil ocupava-se, predominantemente, do léxico, isto é, da quantidade e da variedade de palavras utilizadas pela criança. Essas palavras eram classificadas segundo as categorias da linguagem adulta (verbos, substantivos, adjetivos, etc.), e estudava-se como variava a proporção entre essas diferentes categorias de palavras, qual a relação existente entre o incremento do vocabulário, a idade, o sexo, o rendimento escolar, etc. Nenhum conjunto de palavras, porém, por mais vasto que seja, constitui por si mesmo uma linguagem: enquanto não tivermos regras precisas para combinar tais elementos, produzindo orações aceitáveis, não teremos uma linguagem. Precisamente, o ponto crítico no qual os modelos associacionistas fracassam é este: como dar conta das regras sintáticas? Hoje em dia, está demonstrado que nem a imitação nem o reforço seletivo os dois elementos centrais da aprendizagem associativa podem explicar a aquisição das regras sintáticas. (...) O modelo tradicional associacionista da aquisição da linguagem é simples: existe na criança uma tendência a imitação (tendência que as diferentes posições associacionistas justificarão de maneira variada), e no meio social que a cerca (os adultos que a cuidam) existe uma tendência a reforçar seletivamente as emissões vocálicas da criança que correspondem a sons ou a pautas sonoras complexas (palavras) da linguagem própria desse meio social. Em termos elementares: quando a criança produz um som que se assemelha a um som da fala dos pais, estes manifestam alegria, fazem gestos de aprovação, demonstram carinho, etc. Desta maneira, o meio vai selecionando, do vasto repertório de sons iniciais saídos da boca da criança,

somente aqueles que correspondam aos sons da fala adulta (o conjunto dos fonemas do idioma em questão). A esses sons é preciso dar um significado para que se convertam efetivamente em palavras. Neste modelo, o problema resolve-se da seguinte maneira: os adultos apresentam um objeto, acompanham essa apresentação com uma emissão vocálica (isto é, pronunciam uma palavra que é o nome desse objeto); por reiteradas associações entre a emissão sonora e a presença do objeto, aquela termina por transformar-se em signo desta e, portanto, se faz palavra. Nossa atual visão do processo é diferente: no lugar de uma criança que espera passivamente o reforço externo de uma resposta produzida pouco menos que ao acaso, aparece uma criança que procura ativamente compreender a natureza da linguagem que se fala à sua volta, e que, tratando de compreendê-la, formula hipóteses, busca regularidades, coloca à prova suas antecipações e cria sua própria gramática (que não é simples cópia deformada do modelo adulto, mas sim criação original). No lugar de uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem inteiramente fabricada por outros, aparece uma criança que reconstrói por si mesma a linguagem, tomando seletivamente a informação que lhe provê o meio. (...) Quando alguém se engana sempre da mesma maneira, quer dizer; quando estamos frente a um erro sistemático, chamamos a isso simplesmente de erro, o que nada mais é do que encobrir com uma palavra o vazio de nossa ignorância. Uma criança não regulariza os verbos irregulares por imitação, posto que os adultos não falam assim (uma criança filho único também o faz); não se regularizam os verbos irregulares por reforçamento seletivo. São regularizados porque a criança busca na língua uma regularidade e uma coerência que faria dela um sistema mais lógico do que na verdade é. Em suma, o que antes aparecia como um erro por falta de conhecimento surge nos agora como uma das provas mais tangíveis do surpreendente grau de conhecimento que uma criança nessa idade tem sobre seu idioma: para regularizar, os verbos irregulares, precisa ter distinguido entre radical verbal e desinência e ter descoberto qual é o paradigma normal (isto é, regular) da conjugação dos verbos. (Assinalemos, de passagem, que este é um fenômeno que podemos considerar como universal, já que foi testado para todos os idiomas dos quais possuímos dados fidedignos.)

Fatos como este, que ocorrem normalmente no desenvolvimento da linguagem da criança, testemunham um processo de aprendizagem que não passa pela aquisição de elementos isolados que logo irão progressivamente se juntando, mas sim pela constituição de sistemas nos quais o valor das partes vai se redefinindo em função das mudanças no sistema total. Por outro lado, fatos como este demonstram também que existem o que poderíamos chamar de erros construtivos, isto é, respostas que se separam das respostas corretas, mas que, longe de impedir alcançar estas últimas, pareciam permitir os acertos posteriores. (A regularização dos verbos irregulares, entre os 2 e 5 anos, não é um fato patológico, não é um índice de futuros transtornos, muito pelo contrário.) A ênfase inicial da psicolingüística contemporânea nos aspectos sintéticos, assim, foi não somente porque se tratava de um tema praticamente inexplorado até então, mas sim fundamentalmente porque a nova psicolingüística se constitui graças ao poderoso impacto da teoria linguística de Noam Chomsky (1974,1976). A gramática generativa proposta por esse autor dá um lugar central e privilegiado ao componente sintático, e os psicólogos tomaram esse modelo como ponto de partida, tratando de provar sua realidade psicológica. Atualmente a situação está muito mais complexa; ainda que estejamos distantes de poder dispor de um sistema interpretativo que dê uma explicação integrada dos múltiplos aspectos envolvidos na aquisição da linguagem, há uma série de passos irreversíveis que foram dados: a insuficiência dos modelos condutistas tem sido evidenciada num domínio que, até então, era um dos seus baluartes mais sólidos; manifestou-se uma série de fatos novos, e abriu-se uma série de linhas de investigação originais; a concepção da aprendizagem que se sustenta vai coincidir (ainda que não fosse essa a sua intenção) com as concepções sobre a aprendizagem sustentadas anteriormente por Jean Piaget. Agora, o que tem tudo isto a ver com o aprendizado da leitura e da escrita? Muito, e por várias razoes. Em primeiro lugar, porque, sendo a escrita uma maneira particular de transcrever a linguagem, tudo muda se supomos

que o sujeito que vai abordar a escrita já possui um notável conhecimento de sua língua materna, ou se supomos que não o possui. Em segundo lugar, porque é fácil mostrar que muitas das práticas habituais no ensino da língua escrita são tributárias do que se sabia (antes de 1960) sobre a aquisição da língua oral; a progressão clássica que consiste em começar pelas vogais, seguidas da combinação de consoantes labiais com vogais, e a partir daí, chegar à formação das primeiras palavras por duplicação dessas silabas (mamá, papá) e, quando se trata de orações, começar pelas orações declarativas simples, é uma série que reproduz muito bem a série de aquisições da língua oral, tal como ela se apresenta vista pelo lado de fora (isto é, vista desde as condutas observáveis, e não desde o processo que engendra essas condutas observáveis). Implicitamente, julgava-se ser necessário passar por essas mesmas etapas quando se trata de aprender a língua escrita, como se essa aprendizagem fosse uma aprendizagem da fala. Esta concepção da aprendizagem da língua escrita como uma reaprendizagem da língua oral é ainda mais evidente quando pensamos em noções tão importantes para o ensino tradicional como são as de falar bem e possuir uma boa articulação. Com efeito, muitas das dificuldades da escrita foram atribuídas classicamente à fala. Normalmente, pensa-se que para escrever de forma correta é preciso também saber pronunciar de forma correta as palavras. Temos nos detido, porém, para pensar na seguinte questão: Com base em que critérios se determina qual é a correta maneira de pronunciar? No caso de uma comunidade linguística tão vasta (...), quem tem direito de fixar qual é a correta pronúncia? É possível legislar nessa matéria como se a linguística fosse uma ciência normativa e não uma ciência fática? O ensino tradicional obrigou a criança a reaprender a produzir os sons da fala, pensando que, se eles não são adequadamente diferenciáveis, não é possível escrever um sistema alfabético. Mas esta premissa baseia-se em duas suposições, ambas falsas: que uma criança de seis anos não sabe distinguir os fonemas do seu idioma, e que a escrita alfabética é uma transcrição fonética do idioma. A primeira hipótese é falsa, porque, se a criança, no decorrer da aprendizagem da língua oral, no tivesse sido capaz de distinguir os fonemas entre si, tampouco seria capaz aos seis anos de distinguir oralmente pares de palavras, tais como pau, mau; coisa que, obviamente, sabe fazer. A segunda

hipótese também é falsa, em vista do fato de que nenhuma escrita constitui uma transcrição fonética da língua oral. Não faremos pouco do problema do recorte da fala nos seus elementos mínimos (fonemas); porém, o apresentaremos de maneira diferente: não se trata de ensinar as crianças a fazer uma distinção, mas sim de levá-las a se conscientizarem de uma diferença que já sabiam fazer. Em outras palavras: não se trata de transmitir um conhecimento que o sujeito não teria fora desse ato de transmissão, mas sim de fazer-lhe cobrar a consciência de um conhecimento que o mesmo possui, mas sem ser consciente de possuí-lo. E o que estamos dizendo a respeito das oposições fonêmicas é válido par todos os outros aspectos da linguagem. Atualmente, sabemos que a criança que chega, à escola tem um notável conhecimento de sua língua materna, um saber linguístico que utiliza sem saber (inconscientemente) nos seus atos de comunicação cotidianos. A partir de Chomsky, tornou-se comum em psicolinguística a distinção entre competência e desempenho (em inglês, performance). Esta distinção colocanos em guarda contra a tendência marcadamente condutista de identificar o saber real de um sujeito sobre um domínio particular com seu desempenho efetivo numa situação particular. O fato de alguém não ser capaz de efetuar, mentalmente, uma complicada operação matemática não pode ser tomado como índice de ignorância nas matemáticas. (Normalmente, para efetuar essas operações, necessitamos de ajudas mnemotécnicas especiais, sendo a mais simples delas o dispor de um lápis e de um papel, o que tem a ver com as limitações de nossa memória imediata, e não com nossa real capacidade para efetuar essas operações.) Do mesmo modo, o fato de alguém não ser capaz de repetir uma palavra desconhecida (como Nabucononosor ou Constantinopla, que se encontram em conhecidos testes de maturidade para a leitura) não quer dizer que este esteja incapaz de compreender e de produzir as distinções fonemáticas próprias de sua língua. Dificilmente a escola teria podido assumir esse saber linguístico da criança antes que a psicolinguística o tivesse colocado em evidencia; mas podemos agora ignorar esses fatos? Podemos continuar atuando como se a criança nada soubesse a respeito da sua própria língua? Podemos continuar atuando de tal maneira que obriguemos a ignorar tudo o que ela sabe sobre a

língua para ensinar-lhe, precisamente, a transcrever essa mesma língua em código gráfico? Não somos nós os primeiros a assinalar a necessidade de proceder a uma revisão completa de nossas idéias sobre a aprendizagem da língua escrita a partir das descobertas da psicolinguística contemporânea. Em 1971, tem lugar nos Estados Unidos uma conferência sobre a relação entre a fala e a aprendizagem da leitura, que se constitui no primeiro intento global nesse sentido. (...)