Relatório de Vivência Luana Nobrega da Costa Graduanda do curso de Medicina - UFPB Vivente do Ver-SUS João Pessoa, 2015
O Ver-SUS é uma proposta do Ministério da Saúde que visa a formação de profissionais comprometidos político-socialmente com a saúde pública. Através de estágios e vivências, os participantes conhecem um pouco do funcionamento dos serviços de saúde bem como o trabalho em conjunto feito pelos profissionais presentes nos vários espaços físicos visitados. Vários conceitos são abordados nas imersões teóricas e práticas: conceito ampliado de saúde, educação permanente em saúde, interdisciplinaridade, controle social, movimentos sociais, discussão de gêneros e vários outros vinculados à saúde. Em João Pessoa, o Ver-SUS teve início no dia 01 de março e término no dia 10 de março. Os participantes foram alojados no Diretório Central dos Estudantes da UFPB onde a maioria das formações sobre diversos temas ocorerram; dessa forma foi possível a prática do diálogo entre os grupos a cerca das atividades de cada dia contribuindo para aprendizado mais sólido e para formação de ideias. Os espaços de vivência localizaram-se todos na própria cidade de João Pessoa e englobaram diversos serviços de saúde assim como comunidades onde o processo de promoção e prevenção de saúde devem ser realizados de forma mais empenhada para que se garanta o princípio da equidade previsto no projeto do SUS. Serviços de saúde que compuseram espaços de aprendizagem para os viventes: 1. SMS (Secretaria Municipal de Saúde). 2. USF (Unidade de Saúde da Família). 3. UBS (Unidade Básica de Saúde). 4. CPIC (Centro de Práticas Integrativas e Complementares). 5. CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento). 6. Rede CAPS (Centro de Atenção Psicossocial): CAPS ad III, CAPS I. 7. CAIS (Centro de Atenção Integral à Saúde). 8. CAISI (Centro de Atenção Integral à Saúde do Idoso). 9. PASM (Pronto Atendimento em Saúde Mental). 10. ICV (Instituto Cândida Vargas). Comunidades visitadas: 1. Ocupação Urbana Tijolinho Vermelho. 2. Comunidade Quilombola de Paratibe.
Diário de Vivências 01 de março O primeiro dia foi de acolhimento dos facilitadores e viventes pelos coordenadores e iniciou às 8h da manhã. Pudemos conhecer o nome, a cidade de origem, o curso e as expectativas de cada um quanto aos estágios. Houve estudantes do curso de educação física, enfermagem, fisioterapia, medicina, nutrição, psicologia, serviço social e terapia ocupacional. A interação entre os participantes deu-se de forma bastante dinâmica e flexível. Todos cantaram e dançaram em roda músicas que compõem o cenário folclórico brasileiro. Pessoas de outros estados do Brasil e uma vivente italiana puderam conhecer um pouco do côco de roda e da ciranda, danças típicas do Nordeste. À tarde, foi realizado uma oficina de debate sobre a reforma sanitária no Brasil sob orientação do professor do curso de medicina e médico sanitarista Luciano Bezerra Gomes. Após uma síntese a respeito dos movimentos de escala popular que contribuíram para o surgimento de um dos maiores sistemas de saúde do mundo, tivemos uma devolutiva através de uma atividade proposta onde viventes debateram a cerca de dois questionamentos: "Quais as agendas relevantes na luta social pela saúde?" e "Quais as formas de luta que podem ser organizadas para mobilizar as ações?" Em seguida, foi apresentado um vídeo sobre a 8ª Conferência Nacional da Saúde, que envolveu, pela primeira vez, atores sociais na discussão sobre o conceito ampliado de saúde e que garantiu a saúde como direito social universal. À noite, foi vivenciado um momento de mística onde cada vivente recebeu um papel com uma mensagem de efeito reflexivo e com a indicação do grupo de prática. O grupo no qual me inseri foi o "Ranúsia Alves" com as viventes Aline Santos, Daienne Gonçalves e Marianna Parisotto e a facilitadora Verdande Trotskaya. O primeiro dia foi finalizado com a brincadeira do "amigo camarada" semelhante a brincadeira do "amigo secreto". 02 de março Dia de vivência na Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa. Recepção e orientação feitas pela fisioterapeuta Daniela, gestora de educação em saúde do município. A formação da manhã proporcionou a oportunidade de conhecer algumas atribuições da secretaria e as áreas técnicas que a compõem com alguns dos programas desenvolvidos. As atribuições consistem no planejamento, desenvolvimento, orientação, coordenação e execução de políticas de saúde e ações de vigilância sanitária e epidemiológica. As áreas técnicas apresentadas foram: Tuberculose e Hanseníase, Saúde do Idoso, Saúde da população negra, Saúde da Mulher, Geoprocessamento, Saúde da Criança e do Adolescente, Saúde do Homem, Saúde bucal, Práticas Integrativas e Complementares, Pessoa com Deficiência e
Telessaúde. À tarde, nossa recepção e formação ficaram à cargo da equipe de Consultório na Rua (ecr), implantada em 2012 dentro da política de atenção básica. A equipe fez uma rápida exposição de modalidades, objetivos, atividades desenvolvidas e profissionais que compõem o consultório (enfermeiro, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, médico, agente social e profissionais técnicos). A maioria dos viventes desconhecia a existência dessa proposta que, segundo um dos profissionais, ainda não é realidade em todos os estados brasileiros. Após a apresentação, foi possível perceber a importância da ecr na ampliação do acesso aos serviços de atenção básica para a população de rua. Algumas atividades realizadas: atendimento in loco e nas unidades pautado na redução de danos; oficinas de música e de educação em saúde; testagem rápida para HIV, sífilis e hepatite; tratamento odontológico e de feridas. À noite, as atividades foram finalizadas com oficina de formação orientada por Leandro (psicólogo) e Aldenildo Costeira (Médico de Família e Comunidade) acerca do Movimento da Luta Antimanicomial, que visa a substituição dos hospitais psiquiátricos por serviços de tratamento abertos permitindo a liberdade e a inserção na sociedade do paciente com transtorno mental. 03 de março Início das práticas nos serviços de saúde do município. O grupo Ranúsia Alves teve a oportunidade de conhecer o serviço da USF integrada Alto do Céu no bairro Alto do Céu. O grupo foi recebido pela fisioterapeuta e também gestora da unidade, que falou de forma bastante clara sobre os serviços oferecidos pela unidade, os profissionais da equipe mínima, pontos positivos e negativos do serviço, diferença entre UBS e USF e sobre a atuação do NASF (Núcleo de apoio à Saúde da Família), que atua de forma domiciliar através do SAD (Serviço de tendimento Domiciliar) no cuidado de pacientes que por algum motivo não podem ir à unidade. À tarde, houve formação na UFPB sobre Trabalho em Saúde com abordagem acerca de mercantilização da saúde, influência do setor privado na saúde, atuação da equipe multiprofissional, valorização da promoção e prevenção da saúde, valorização do trabalho. À noite, alunos de uma faculdade privada participantes do projeto de extensão Iandé Guatá contribuíram com a oficina de formação sobre saúde indígena. Foram feitas questões reflexivas acerca do que é ser índio, do processo saúde-doença e dos direitos e deveres da população indígena. Pôde-se ter conhecimento dos grupos indígenas ainda existentes em João Pessoa e em cidades vizinhas e das atividades de promoção e prevenção da saúde oferecidas a essa população.
04 de março Pela manhã, o grupo Ranúsia Alves visitou o CAPS ad III David Capistrano no bairro Rangel. A direta do centro, que recebeu o grupo, fez uma breve apresentação da estrutura, da composição da equipe profissional, dos objetivos do serviço e das atividades desenvolvidas no local. O CAPS ad III oferece atenção integral 24h a usuários de álcool e outras drogas através de demanda espontânea ou encaminhados das unidades de saúde. O trabalho desenvolvido baseia-se principalmente na redução de danos e objetiva, através de oficinas coletivas e acompanhamento individual, a reinserção social do usuário. As atividades oferecidas são: exercício físico, educação em saúde, prevenção em recaída através de grupos de apoio, aulas de artesanato e música entre outros. À tarde, a vivência ocorreu no CPIC Equilíbrio do Ser no bairro Bancários. O centro atende todas as faixas etárias a partir de encaminhamentos ou por demanda espontânea. O usuário que desejar se inserir em alguma prática deve primeiro passar por uma triagem através de escuta onde será definida a melhor atividade segundo as queixas apresentadas. As atividades desenvolvidas incluem Yoga, pilates, quiropraxia, dança, práticas orientais, massagem, dentre outros. O único aspecto negativo constatado durante a visita foi o reduzido número de profissionais que não consegue atender a demanda resultando em uma longa lista de espera. À noite, ocorreu a primeira roda de conversa onde cada grupo com seus respectivos facilitadores puderam relatar as vivências ocorridas até então. Ouvimos cada vivente com suas impressões positivas e negativas num momento puramente reflexivo. 05 de março Pela manhã, visita ao PASM localizado no Complexo Hospitalar de Mangabeira Governador Tarcísio Burity (Ortotrauma). Não foi uma visita muito feliz, pois a psicóloga que recebeu o grupo chegou bastante atrasada e durante a conversa pareceu desconhecer a rede de atenção integral à saúde mental mostrando-se a par apenas do serviço local. Infelizmente, o grupo não teve todas as perguntas respondidas de forma satisfatória e um clima de descontentamento ganhou importância. Porém foi possível ter conhecimento da estrutura física, dos profissionais que se encontravam por lá e de algumas práticas no momento da vivência. À tarde, visita ao Instituto Cândida Vargas. O grupo foi recebido por uma enfermeira do serviço que apresentou os diversos setores do hospital: salas de pré-parto, parto e pósparto; salas de avaliação de vitalidade fetal e de planejamento familiar; Banco de Leite Humano Zilda Arns, dentre outros. Durante a visita foram discutidos assuntos referentes
acompanhamento pré-natal antes da concepção, violência sexual e obstétrica, parto humanizado e aleitamento materno exclusivo nos seis primeiros meses. O ICV é o hospital referência na Paraíba em gravidez de alto risco, apesar de também atender gestantes de risco mínimo. Possui o título de Hospital Amigo da Criança e orienta o Método Canguru para bebês de baixo peso ao nascer. Oferece serviços voluntários de doulas visando a garantia de um parto mais humanizado. À noite, houve continuidade da roda de conversa acerca das vivências até então e em seguida uma programação Cinecult com o documentário Cortina de Fumaça que aborda as consequências político-sociais do discurso proibicionista tendo em vista a violência e a corrupção geradas em níveis altíssimos. 06 de março A vivência do sexto dia deu-se quase inteiramente na ocupação urbana Tijolinho Vermelho. Foi um dia difícil de realidades. Mais de 100 famílias socialmente fragilizadas vivem em um antigo hotel, há anos abandonado, em condições precárias de moradia. Ambiente insalubre, ausência de saneamento básico, alagamentos, lixo e esgoto a céu aberto, fiações expostas, infiltrações, crianças despidas e descalças foram agumas das precariedades mais visíveis da ocupação. A maioria dos moradores encontram-se descobertos pela atenção básica de saúde por não possuírem documentos, endereço ou simplesmente por ultrapassarem o limite de família por USF. Durante a visita, fomos acompanhados por integrantes do movimento Terra Livre, que vem assistindo os moradores e lutando junto a eles pelo direito a moradia. A equipe de Consultório na Rua e trabalhadores do centro de zoonoses estiveram no local, mas não exerceram nenhuma atividade ou assistência alegando inexistência de ambiente propício. A formação nesse dia foi sobre Direito à Cidade e ocorreu parte na ocupação e parte na UFPB. A construção do conhecimento teve contribuição dos integrantes do movimento Terra Livre, de uma moradora e da presidente do Conselho de Saúde Municipal. Pontos abordados nas discussõe: a ocupação e formação do Tijolinho Vermelho, o papel do movimento Terra Livre, a espera de moradia através do progama Minha Casa, Minha Vida do governo federal, a situação de água e luz, processo de saúde dos moradores e proposta de existência de um ACS vindo da própria comunidade. Ao final da visita, propuseram que fosse feito um mapeamento da comunidade de forma de forma a traçar um diagnóstico situacional para a formulação de uma possível estratégia de promoção e prevenção da saúde.
07 de março A vivência do sétimo dia ocorreu na comunidade quilombola de Paratibe. Os grupos foram recepcionados pelo professor João Paulo de Araújo (Pitoco) na sede do projeto Paratibe em Ação, que proporcionou, na parte da manhã, um momento cultural com Capoeira, Maculelê, Côco de Roda e Ciranda. O Paratibe em Ação teve início em 2008 a partir de trabalho de reforço visando melhorar o rendimento escolar das crianças da comunidade; posteriormente, outras atividades foram sendo incorporadas ao projeto como as danças regionais, a capoeira, passeios e viagens educativa, dentre outras. À tarde, a agente comunitária de saúde (ACS) da região apresentou alguns núcleos quilombolas e guiou o grupo num passeio pelo mangue de onde antigamente a população tirava a subsistência. O momento de formação foi sobre Saúde da População Negra, que ocorreu na Paróquia Santíssima Trindade de Paratibe com a participação da ACS. 08 de março O dia de atividades teve início com a oficina de formação sobre Controle Social onde foi discutido a importância da participação popular nas questões referentes às políticas de saúde como forma de fiscalização da qualidade dos serviços oferecidos. A atuação da sociedade é possível através dos Conselhos e das Conferências de Saúde, que se constituem em ferramenta de democratização da saúde. Em seguida, à tarde, ocorreu a formação sobre Saúde da Mulher com discussões sobre o papel da mulher na sociedade, violência contra a mulher, violência obstétrica, papel das doulas na construção do parto humanizado e algumas questões abordadas pelo movimento feminista. À noite, tivemos a última formação do Ver-SUS sobre Saúde LGBT com participação de Nicole Lima e Brunet, que relataram suas experiências de vida após a revelação de uma orientação sexual diferente da aceita pela maioria da sociedade. Cada grupo recebeu cartilhas sobre política da saúde LGBT que foram lidas e discutidas em grupo. As discussões giraram em torno da não existência de práticas específicas dirigidas à saúde LGBT, do preconceito existente e de como isso atinge a saúde mental e social dessas pessoas. A noite foi finalizada com um evento cultural com a temática: (Des)generalizando: a revolução não será discreta. 09 de março Tiveram início as oficinas de encerramento. Houve rodas de conversas com a finalidade de elaborar uma devolutiva a partir de percepções das necessidades dentro dos
serviços e das comunidades visitadas pelos grupos. Nesse dia, duas representantes da Secretaria Municipal de Saúde estiveram na UFPB para tomar conhecimento das experiências dos viventes, que expuseram elogios, críticas e sugestões. 10 de março Último dia do Ver-SUS. Continuidade na elaboração de devolutivas. Foram postos em pauta: a necessidade de mapeamento da comunidade Tijolinho Vermelho como estratégia para formulação de ações em saúde que atinjam essa população; a construção de um jornal informativo que contemple assuntos (controle social e conselhos e conferências em saúde) e serviços de saúde pouco conhecidos pelos usuários do SUS numa tentativa de fortalecer a participação popular. Considerações Finais As vivências e estágios na realidade do SUS se constituíram numa experiência única enquanto ainda estudante da graduação, pois a abordagem do assunto em sala de aula ainda é algo deficiente. A necessidade de conhecer para então atuar de forma a superar as vicissitudes do sistema e transpor limites define bem a importância do projeto Ver-SUS. Sou infinitamente grata pela oportunidade que tive de ampliar os conceitos em saúde pública. As reflexões geradas por cada vivência foram fundamentais para o meu crescimento enquanto ser político e social.