Prebisch e Furtado. Prefácio. Introdução. Ricardo Bielschowsky*

Documentos relacionados
CELSO FURTADO E A INTERPRETAÇÃO ESTRUTURALISTA DO SUBDESENVOLVIMENTO

Sumário. Introdução geral. 1. Objetivos e metodologia... 5

Neste trabalho são apresentadas as três principais contribuições

[18 E 19 DE AGOSTO] AULA 3. DESENVOLVIMENTO E SUBDESENVOLVIMENTO: ROMPENDO A DEPENDÊNCIA

Plano de Ensino. Identificação. Câmpus de Araraquara OPTATIVA

COMÉRCIO E INVESTIMENTO INTERNACIONAIS PROF. MARTA LEMME

América Latina Periférica: O Desenvolvimento Latino-Americano Na Concepção De Prebisch/CEPAL (1948/1981) Paulo José Koling i - UNIOESTE

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO REGIONAL

Sociologia do Desenvolvimento. A invenção do 'Terceiro Mundo'. Prof. Alvaro A Comin

Comissão Econômica para a América Latina CEPAL

Desenvolvimento Econômico com Oferta Ilimitada de Mão de Obra: O Modelo de Lewis (1954)

ARTIGO DE OCTÁVIO RODRIGUES Sobre a Concepção do Sistema Centro-Periferia Revista da CEPAL, primeiro semestre de 1977

Por que Dilma não faz um governo de esquerda? A economia política dos governos do PT

Comunicação e Cultura e as perspectivas latino-americanas

REPRIMARIZAÇÃO DA ECONOMIA BRASILEIRA E SUAS RAÍZES NO SUBDESENVOLVIMENTO

Notas de Aula Desenvolvimento Sócio-Econômico JOÃO MANUEL CARDOSO DE MELLO O CAPITALISMO TARDIO 1

Vulnerabilidade externa estrutural do Brasil

Comércio e Desenvolvimento. Economia Internacional e Teoria do Desenvolvimento Econômico.

Estado e Desenvolvimento Econômico no Brasil Contemporâneo

PLANO DE ENSINO DO COMPONENTE CURRICULAR

Macroeconomia Brasileira. Reinaldo Gonçalves Professor Titular Instituto de Economia - UFRJ

70 anos da CEPAL

Estratégia brasileira de desenvolvimento nos anos 2010: tres frentes de expansão. Ricardo Bielschowsky Apresentação na Unicamp Maio de 2012

Desenvolvimento às Avessas. Reinaldo Gonçalves Professor Titular Instituto de Economia - UFRJ

Ressurgência Keynesiana nos Países Emergentes: o caso do Brasil

Sumário. Parte I Panorama Descritivo da Economia Brasileira e Conceitos Básicos, 1

O Brasil a caminho do bicentenário da independência: Onde estamos? Para onde vamos?

Marco A.F.H.Cavalcanti (IPEA) XIII Workshop de Economia da FEA-RP Outubro de 2013

Estratégia social- desenvolvimentista ( ) e o ano SEMINÁRIO NA ANDIFES Brasília, Julho de 2015 Ricardo Bielschowsky, IE-UFRJ

Estratégias de Desenvolvimento

INTEGRAÇÃO REGIONAL E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM REFERÊNCIA A CELSO FURTADO

COMÉRCIO E INVESTIMENTO INTERNACIONAIS PROF. MARTA LEMME 2º SEMESTRE 2012

Da Modernidade à Modernização. Prof. Benedito Silva Neto Teorias e experiências comparadas de desenvolvimento PPGDPP/UFFS

PROVA ESCRITA DE NOÇÕES DE ECONOMIA

Parte 6 Estado, mercado e desenvolvimento Sessão 2. Reinaldo Gonçalves

Estratégia social-desenvolvimentista ( ) e o ano Brasília, Junho de 2015 Ricardo Bielschowsky, IE-UFRJ

Brasil: 25 anos de estagnação e empecilhos à globalização

O Estado e as Empresas Estatais no Desenvolvimento Brasileiro

Luiz Carlos Bresser-Pereira Anpec Sul, Florianópolis, li 9 de junho de 2011

Industrialização brasileira e desenvolvimento. A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte (Gandhi)

Fatores Determinantes do

AEAMESP Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô Semana de Tecnologia Metroviária

Centro Celso Furtado,

6 Referências bibliográficas

Trabalho, riqueza e vulnerabilidade externa

Introdução à Microeconomia

O Comércio Internacional e seus porquês

Rumo a novos consensos?

Resenha Bibliográfica

CONTEXTO DA ECONOMIA E SEUS REFLEXOS NA AMÉRICA LATINA

A Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento e o Novo- Desenvolvimentistmo

Resposta Brasileira à Crise Financeira: O Longo Prazo. Yoshiaki Nakano Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas 21de Setembro de 2009

Economia Subdesenvolvida

Integração regional Fundamentos

Carlos Aguiar de Medeiros *

Parte 1 TEORIA DO COMÉRCIO INTERNACIONAL

O NOVO DESENVOLVIMENTISMO

PROVA DE SELEÇÃO DE TUTORES NA MODALIDADE À DISTÂNCIA

1ª Unidade: O pensamento desenvolvimentista e a agenda do desenvolvimento na América Latina

Crise na Europa e Globalização

O CONCEITO DA INFLAÇÃO

Políticas públicas para a agricultura

Alexandre Rands Barros. Natureza, causas, origens e soluções

Nota: notas de conjuntura preparadas por Carlos Mussi, apedido do Conselheiro para Assuntos Economicos da Embaixada da Bolívia

PLANO DE ENSINO DADOS DE IDENTIFICAÇÃO

Protecionismo medidas e consequências. Antony P. Mueller UFS 27 de Abril de 2015

Macroeconomia Aberta. CE-571 MACROECONOMIA III Prof. Dr. Fernando Nogueira da Costa Programa 1º semestre.

Economia & Tecnologia - Ano 03, Vol. 08 Jan./Mar. de j 1

Modernização Periférica. Nacional-desenvolvimentismo brasileiro

INDUSTRIALIZAÇÃO GEOGRAFIA. O que é indústria? SETORES DA ECONOMIA SETOR PRIMÁRIO SETOR SECUNDÁRIO SETOR TERCIÁRIO. Agricultura Pecuária extrativismo

MACROECONOMIA. O problema é que às vezes alguns pormenores importantes são omitidos.

Metodologia. Aulas expositivo-dialogadas, empregando o quadro.

Unidade III ECONOMIA E MERCADO. Prof. Rodrigo Marchesin

Participação da mulher no mercado de trabalho

Uma análise dos principais indicadores da economia brasileira

Crescimento. Econômico. Copyright 2004 South-Western

Finanças Públicas: Situação e Condicionantes Apresentação à comunicação social 18 de março de 2015

Concepção Sistema Centro-Periferia Está presente em todas as fases do pensamento cepalino. (Dá o caráter estruturalista das análises)

Abrandamento no primeiro trimestre do ano

DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE SOBRE A TEORIA DA DEPENDÊNCIA Mário de Jesus Barboza 1

Dinâmicas e Dilemas dos Mercados de Trabalho, Emprego e Bem-estar em Moçambique

Nota Informativa Efeito da reforma da previdência no crescimento do PIB

PLANO DE AULA DISCIPLINA: ECONOMIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (CÓD. ENEX60098) PERÍODO: 7º PERÍODO. Aula expositiva com slides.

O Sistema de Metas de Inflação No Brasil. - Como funciona o sistema de metas e seus resultados no Brasil ( ).

Economia. Prof. Responsável: Wilson Mendes do Valle

Ambiente de Negócios e Reformas Institucionais no Brasil

Cenário Moveleiro. Análise econômica e suporte para as decisões empresariais. Número 01/2006. Cenário Moveleiro Número 01/2006 1

Crise financeira mundial e a América Latina

EMENTÁRIO. Princípios de Conservação de Alimentos 6(4-2) I e II. MBI130 e TAL472*.

Interpretações do Brasil

O Desenvolvimentismo Cepalino: Problemas Teóricos e Influências no Brasil*

Ditadura Civil-Militar Economia

CURSO de CIÊNCIAS ECONÔMICAS - GABARITO

Mudança de rumo? Cenário macroeconômico Junho Fernanda Consorte

A Nova Agenda Carlos Américo Pacheco São Paulo, 08 de novembro de 2006

PIB se mantém em queda pelo décimo primeiro trimestre consecutivo

Ministério das Relações Exteriores Instituto Rio Branco. Prova Escrita de Noções de Economia

Investimento, Poupança e Competitividade Os três pilares do crescimento

Comércio e desenvolvimento

Políticas de estabilização e movimento de capital. Reinaldo Gonçalves

Transcrição:

Prefácio Prebisch e Furtado Ricardo Bielschowsky* Introdução Em boa hora o Centro Internacional Celso Furtado e a editora Contraponto publicam este livro com os principais ensaios de Raúl Prebisch. Trata-se da tradução para o português de boa parte da primorosa coletânea organizada por Adolfo Gurrieri, em espanhol, e editada pela Cepal e pelo Fondo de Cultura Económica, do México. A publicação facilita ao leitor brasileiro o acesso aos textos de Prebisch mais procurados por professores, alunos e outros interessados na obra do autor. São aportes analíticos ao debate latino-americano e brasileiro sobre desenvolvimento que tiveram grande impacto intelectual e ideológico em toda a América Latina, especialmente no Brasil. Celso Furtado, além de ter sido o pensador latino-americano que mais intensamente secundou Prebisch nas contribuições analíticas ao estruturalismo cepalino, foi também seu grande difusor no Brasil. Com esta publicação, o Centro Celso Furtado dá continuidade às contribuições que o mestre aportou ao aprofundamento e à difusão do pensamento estruturalista inaugurado por Prebisch. O livro começa com uma cuidadosa introdução de Gurrieri à coletânea em espanhol. Com uma abordagem temática, ele destaca as principais teses de Prebisch e confere segura orientação à compreensão da obra reunida no compêndio. A presente publicação em português contém, além da referida introdução, dez textos (seis divulgados entre 1949 e 1959, dois na década de 1960 e dois posteriormente). Os três primeiros são os textos inaugurais de Prebisch na Cepal: O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus principais problemas (1949), que Albert Hirschman chamou de Manifesto Latino-Americano, Crescimento, de- * Economista e diretor do escritório da Cepal no Brasil. 7

Raúl Prebisch O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios sequilíbrio e disparidades: interpretação do processo de desenvolvimento econômico (1950) e Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico (1951). Essa é a trilogia que funda a teoria estruturalista sobre o subdesenvolvimento latino-americano. Ela já contém boa parte das teses e demais componentes fundamentais da construção analítica sobre as quais até hoje repousa o pensamento da Cepal: especialização inadequada e baixa diversidade produtiva (complementaridade intersetorial e integração vertical insuficientes), deterioração dos termos de intercâmbio, inserção internacional inadequada, desequilíbrios externos e inflação, níveis de produtividade muito díspares entre os setores fenômeno que Anibal Pinto chamou de heterogeneidade estrutural e oferta ilimitada de mão de obra com renda próxima à de subsistência (hoje, informalidade ), além de estrutura institucional (Estado, estrutura agrária, composição empresarial, entre outros) pouco inclinada ao investimento e ao progresso técnico. O quarto texto é o capítulo Os principais problemas da técnica preliminar de programação, introdutório à obra inaugural da Cepal no terreno do planejamento econômico, Introdução à técnica da programação. A proposta de programação é um corolário das teses básicas de Prebisch. A industrialização ocorria de forma espontânea até a década de 1950. Prebisch a considerava altamente problemática. Ela demandava intervenção do Estado, com planejamento do investimento e do comércio exterior. Os trabalhos sobre essa temática seriam desenvolvidos depois, no âmbito da Cepal, sob a orientação de seu Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social (Ilpes), criado em 1961. O quinto texto selecionado é A política comercial nos países insuficientemente desenvolvidos, do ponto de vista latino-americano. Aqui Prebisch oferece o que talvez seja a versão mais sucinta das principais teses que formulou nos primeiros anos da Cepal. E o faz à luz de críticas que havia recebido, provenientes principalmente do campo ideológico liberal, que lhe permitiram reafirmar as teses cepalinas, favoráveis à industrialização, com uma argumentação mais objetiva e contundente. O sexto texto é o clássico O mercado comum latino-americano, importante contribuição analítica de Prebisch à criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), hoje Associação Latino-Americana de Integração (Aladi). O objetivo central declarado era transformar os vinte compartimentos estanques alusão aos vinte países da América Latina em um conjunto produtivo e comercial integrado. A questão da vulnerabilidade externa estava no centro das análises formuladas na década de 1950 para a criação de um mercado regional. O mercado comum permitiria aprofundar a industrialização nos segmentos intensivos em escala e atenuar o problema da insuficiência de divisas na região como um todo. 8

prefácio O sétimo é o ensaio O falso dilema entre desenvolvimento econômico e estabilidade monetária, publicado em 1961. Nele, Prebisch enfrenta uma questão difícil: defender a Cepal contra frequentes ataques de que a instituição tinha uma atitude permissiva em relação à inflação e, ao mesmo tempo, reiterar sua convicção de que a industrialização era necessária para que se pudesse vencer definitivamente esse problema. Ele reafirma a interpretação de que nos países latino-americanos nem sempre a moeda é o elemento decisivo no processo inflacionário, que frequentemente tem origem em restrições no balanço de pagamentos, especialmente em períodos de retração cíclica, ou em dificuldades de ampliar a poupança junto com a acumulação de capital. Argumenta que, sem deixar de combater a inflação, é preciso estar atento para as falhas das políticas ortodoxas de ajuste macroeconômico, especialmente quando elas se contrapõem à verdadeira solução de longo prazo para a inflação: as mudanças estruturais nas economias e a industrialização. O texto termina com a defesa da necessidade de realizar uma política de estabilidade monetária compatível com o desenvolvimento econômico. O oitavo texto é Nova política comercial para o desenvolvimento, redigido por Prebisch na época em que liderou a criação da Unctad e publicado em 1964. Tal como já havia salientado na Cepal, ele identifica como problema crucial o fato de que as receitas de exportação não permitem que as nações pobres realizem as importações necessárias ao crescimento e ao desenvolvimento a elasticidade-preço e a elasticidade-renda das exportações de produtos básicos são baixas, enquanto as das importações de bens industriais são muito elevadas. No terreno da política comercial, o grande destaque é a proposta de formar estoques internacionais para regular os preços de bens primários e criar esquemas preferenciais de acesso aos mercados centrais para os produtos primários e industriais dos países em desenvolvimento. O nono texto, O sistema econômico e sua transformação, corresponde à quarta parte do livro Transformación y desarrollo. La gran tarea de la América Latina, publicado em 1970. É uma síntese de uma estratégia reformista para a condução do desenvolvimento latino-americano com intervenção do Estado. Estão presentes aí os princípios fundamentais que norteiam seu pensamento, voltado para o projeto de transformação e orientado para a mudança das bases estruturais do sistema. É um texto ao mesmo tempo abrangente e conciso, em que o autor percorre um vasto leque de preocupações, desde os problemas oriundos do sistema de propriedade rural ao mesmo tempo latifundista e minifundista até a crítica às deformações nos processos de industrialização, como excessos protecionistas, insuficiência de integração regional e inadequação tecnológica à dotação de fatores. 9

Raúl Prebisch O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios Nesse livro, publicado dois anos depois de ter deixado a direção da Unctad, Prebisch ainda mantinha um tom moderadamente otimista. Daí até o início da década de 1980, sua percepção dos fenômenos estruturais da periferia latino-americana evoluiria para uma posição de grande ceticismo a respeito das possibilidades de desenvolvimento. Segundo ele, eram necessárias transformações radicais no regime de propriedade. O último texto desta coletânea, A periferia latino-americana no sistema global do capitalismo, é a primeira parte do livro Capitalismo periférico: crise e transformação, publicado em 1981. O texto propõe uma análise crítica da operação do capitalismo nas condições da periferia e é representativo da etapa mais radical do pensamento transformador do autor, na defesa de profundas reformas nos sistemas econômicos e políticos das nações latino-americanas e da ordem internacional. Por exemplo, propõe uma síntese entre liberalismo e socialismo, com gestão autônoma das grandes empresas pelos trabalhadores, em regime de mercado, mas com o Estado impondo condições reguladoras sobre o uso social do excedente. O tom é mais cético do que o que prevaleceu nas fases anteriores, em parte porque as tendências históricas não estavam operando na direção do que haviam postulado a Cepal e a Unctad, e em parte, talvez, porque quando Prebisch o escreveu já não era secretário executivo desses organismos, o que lhe permitia maior liberdade em suas formulações. O excelente texto introdutório que Adolfo Gurrieri preparou para a edição em espanhol simplificou a tarefa de prefaciar este livro. Permitiu que eu fosse breve nos parágrafos precedentes e abriu espaço para que o prefácio se reservasse a destacar as ligações analíticas entre o pensamento de Prebisch na Cepal e as contribuições de Celso Furtado à teoria estruturalista de Prebisch e da Cepal sobre o desenvolvimento periférico latino-americano como, aliás, convém fazer nesta edição em português, de iniciativa do Centro Celso Furtado, criado para preservar e divulgar a obra e os ideais desse mestre. É o que se faz nas duas próximas seções. Prebisch e o desenvolvimento econômico sob as condições estruturais da periferia Como salientamos, os três textos inaugurais de Prebisch na Cepal contêm os elementos centrais da formulação estruturalista. Trata-se de uma teoria que salienta as restrições ao crescimento que decorrem das condições estruturais específicas da América Latina, periferia do mundo desenvolvido. 10

prefácio Prebisch usa o contraste com as economias centrais para caracterizar as economias latino-americanas. O argumento é o de que as diferenças correspondem a condições inadequadas de crescimento na periferia, que impõem restrições ao processo de industrialização e ao progresso técnico. Elas exigem estratégias de crescimento coordenadas pelo Estado, pois, nessas condições, as forças de mercado são incapazes, por si sós, de viabilizar o crescimento. A tabela abaixo resume os principais elementos da formulação de Prebisch para o subdesenvolvimento latino-americano e seus problemas, formulação absorvida por Furtado e demais intelectuais estruturalistas: Tabela 1 Quadro-síntese da formulação estruturalista original* Características das economias latinoamericanas Baixa diversidade produtiva Especialização na agropecuária e em mineração Heterogeneidade produtiva: setores com alta produtividade coexistem com abundante ocupação de mão de obra em níveis próximos à subsistência Institucionalidade inadequada e falta de capacidade empresarial Implicações para a industrialização e o crescimento Necessidade de investimento simultâneo em diversos setores, processo muito exigente em termos de poupança, investimento e divisas estrangeiras Limitada capacidade para gerar divisas externas por causa da baixa demanda mundial por exportações primárias e da deterioração dos termos de intercâmbio, com forte pressão por divisas por causa da elevada elasticidade-renda das importações exigidas pela industrialização Baixa produtividade média e reduzido excedente, considerado como proporção da renda Baixa propensão a poupar e a investir; insuficiente acumulação de capital e de progresso técnico (parte do excedente é desperdiçada com consumo supérfluo e investimentos improdutivos) * Este quadro se beneficia da obra de Rodriguez (1981) sobre as contribuições de Prebisch. Com base na identificação desse conjunto de problemas estruturais da periferia, Prebisch e a Cepal construíram sua análise do crescimento econômico, do desenvolvimento periférico e das relações centro-periferia, junto com suas teses fundamentais: deterioração dos termos de troca, não convergência das rendas per capita do centro e da periferia, desequilíbrio estrutural no balanço de pagamentos, vul- 11

Raúl Prebisch O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios nerabilidade externa, hiato de poupança e de divisas, dinâmica do processo de substituição de importações etc. Nessas condições altamente problemáticas, o planejamento e a ação estatal eram necessários para sustentar a industrialização e o progresso técnico, bem como para evitar as tendências perversas inerentes a tais condições. Para Prebisch, a principal tendência perversa era o desequilíbrio estrutural no balanço de pagamentos. Para alguns seguidores seus, como Noyola Vasquez (1957) e Osvaldo Sunkel (1958), também havia uma tendência estrutural à inflação. Furtado temia ambas, mas sua principal contribuição analítica foi o destaque para a tendência à preservação do subemprego e da má distribuição de renda. As contribuições de Furtado ao estruturalismo Furtado deu três importantes contribuições ao corpo analítico estruturalista fundado por Prebisch. Primeiro, adicionou uma perspectiva histórica de longo prazo (1959, 2007). Mostrou que durante séculos, em sucessivos períodos de crescimento e retração (no Brasil, os ciclos da cana-de-açúcar, da mineração e do café), houve produção e reprodução de dualidades (ou heterogeneidades) econômicas e sociais, assim como baixa diversidade produtiva. Formação econômica do Brasil é uma bem-sucedida tentativa de apontar os elementos históricos na formação brasileira que legitimam o uso do estruturalismo e de suas conclusões de política econômica (Bielschowsky, 1995). O objetivo era mostrar que a economia brasileira foi formada com as duas especificidades apontadas por Prebisch baixa diversidade e dualidade, de modo que o processo de industrialização na década de 1950, sujeito a tais restrições estruturais ao crescimento, deveria ser entendido como problemático. A coordenação estatal seria indispensável para contorná-las. Segundo, no livro Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1961) ele introduziu no arcabouço analítico estruturalista o debate sobre a dificuldade que os setores urbanos modernos têm para absorver a força de trabalho que se transfere do campo para as cidades. Muito provavelmente, ele foi o primeiro a levantar a possibilidade de um subemprego persistente no longo prazo na América Latina, ou a dualidade analisada por Arthur Lewis (1954); terá sido, pois, pioneiro no argumento de que a elevação da produtividade em setores modernos pode coexistir com baixos salários por longo período, o que confirmaria a secular má distribuição de renda na América Latina. Para Furtado, no contexto das sociedades latino-americanas, mesmo com um crescimento sustentado é difícil absorver a abundante 12

prefácio oferta de mão de obra. Por isso, o crescimento pode prosseguir por muito tempo com a preservação de desemprego e de subemprego, assim como de heterogeneidade tecnológica, concentração de renda e injustiça social. Em meus estudos sobre o pensamento econômico brasileiro e o pensamento da Cepal (Bielschowsky, 1995) não encontrei argumentação prévia à de Furtado com esse conteúdo. Por isso, fui levado a concluir que ele inaugurou o debate latinoamericano sobre a relação entre desenvolvimento, determinação de salários e concentração de renda em condições de subemprego rural e urbano. A terceira contribuição veio alguns anos mais tarde, quando Furtado (1969) aprofundou a análise das relações entre crescimento e distribuição de renda. Argumentou que a concentração da renda e da propriedade predetermina a composição setorial do investimento e as escolhas tecnológicas, levando a fração moderna da estrutura produtiva latino-americana a um grau de intensidade de capital similar ao praticado nos países desenvolvidos. Nestes, a tecnologia empregada pode não ser inadequada para manter pleno emprego e altos salários, mas na América Latina ela é inadequada para exaurir a oferta abundante de mão de obra e elevar salários de forma sistemática. Tal padrão de investimento reforça o excesso de oferta de trabalho, os baixos salários e a concentração da renda, o que, num círculo vicioso, fortalece a inadequada composição dos investimentos. Observe-se que o método prebischiano e furtadiano de contrastar a periferia com o centro é usado de novo, dessa vez para argumentar que, ao contrário do que ocorre no centro, os padrões de crescimento nos países da periferia mantêm abundância de mão de obra e não permitem adequada transmissão da produtividade aos rendimentos dos trabalhadores. Conclusão Não constituiria um exagero afirmar que várias das principais tendências na América Latina e no Brasil nos últimos 28 anos por exemplo, o modesto crescimento podem ser analisadas à luz dessas contribuições de Prebisch e de Furtado, elaboradas há quase meio século, o que mostra sua impressionante atualidade. Isto se deve, infelizmente, a razões nada animadoras: nossos crescimento, emprego e distribuição de renda no período confirmaram o ceticismo de Prebisch e de Furtado sobre desenvolvimento na ausência de projetos nacionais adequadamente desenhados e implementados. Na presente coletânea, o leitor desfrutará do poderoso conjunto de argumentos e análises propostos por Raúl Prebisch. O autor foi a principal fonte analítica para 13

Raúl Prebisch O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios a teorização de Celso Furtado sobre o subdesenvolvimento latino-americano e o brasileiro. E foi, reconhecidamente, o maior economista latino-americano de todos os tempos. Boa leitura! Bibliografia Bielschowsky, Ricardo (1995). Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto. Furtado, Celso (1959). Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura (reed. Companhia das Letras, 2009). (1969). Desarrollo y estancamiento en América latina: un enfoque estructuralista, Investigación Económica, v. 29, n. 113. México: Universidad Nacional Autónoma de México, fev.-mar. (2007). A economia latino-americana. São Paulo: Companhia das Letras. Noyola Vázquez, J. (1957). Inflación y desarrollo económico de Chile y México, Panorama Económico, v. 11, n. 170. Santiago do Chile, julho. Lewis, Arthur (1954). Economic development with unlimited supplies of labour, Manchester School of Economic and Social Studies, v. 22, n. 2. Manchester, Inglaterra. Rodríguez, Octavio (1981). La teoría del subdesarrollo de la Cepal. México: Siglo Veintiuno. Sunkel, Osvaldo (1958). La inflación chilena: un enfoque heterodoxo, El Trimestre Económico, v. 25(4), n. 100. México: Fondo de Cultura Económica, out.-dez. 14