Exposição Zona letal, Espaço Vital Obras da Colecção da Caixa Geral de Depósitos Sara Antónia Matos Introdução Ao olharmos para um objecto, desenhamo-lo com o movimento do olhar. Embora o sentido dos objectos artísticos nos possa escapar através de uma leitura imediata e numa primeira aproximação, as obras seleccionadas para a exposição Zona letal, Espaço Vital deixam transparecer o modo como foram concebidas e realizadas. Gostaríamos que o espectador fizesse parte da exposição e se deixasse levar por ela, tendo presente a sua pro-actividade na resposta aos desafios que lhe são apresentados, sem contudo esquecer que as obras são representações e imagens distintas da realidade. Diz-se muitas vezes que os artistas vêem o mundo do avesso, dão a ver o que de outra forma não seria visto, relacionam o que antes não estava relacionado. Cada artista desenvolve os seus processos de criação, as suas linguagens e as suas metodologias, procurando reinventar as possibilidades dos meios por si escolhidos. Nesses processos interferem elementos difíceis de interpretar, como a memória e o corpo, activando a justaposição entre o passado e o presente, ligando a arte e a vida. Curiosamente e através de expressões distintas como a escultura, a pintura, a instalação ou o desenho, os artistas aqui expostos dão corpo a qualquer coisa que excede o imediatamente visível. Por isso, a exposição Zona letal, Espaço Vital procura debruçar-se sobre o processo criativo, sobre os seus aspectos menos visíveis e menos lineares. Não se estranhe por isso, nas palavras que a seguir se lêem, a insistência na palavra corpo. As obras apresentadas solicitam o nosso corpo, portador de signos e memórias, fazendo-nos descobrir novas formas de ocupar o espaço e o tempo. Elas falam-nos do que está presente mas também do que está ausente, para além daquilo que, não raras vezes, é invisível. A mesa, obra de 1996 do artista brasileiro Waltercio Caldas, é apresentada na primeira sala da exposição. É uma escultura, quase desenho, feita com linhas tridimensionais de latão. Os perfis de ânforas nela desenhados, lembrando vasos para guardar o vinho ou a água, associam-se à ideia de diluição. De acordo com as palavras do artista, este volume que flutua e se movimenta no ar é uma escultura que quer dizer ar. A escultura é ar quando a forma habita e preenche o vazio. A obra remete para o movimento e para o equilíbrio que vibra no espaço cada vez que um corpo entra nele. O jogo entre as linhas, os planos e os materiais vai dando forma ao espaço sem o fechar num volume, gerando um lugar de relações, de superfícies e vazios que se mostram sem se materializar. De diversas formas, Francisco Tropa, o artista que se segue, com a obra Une table qui aiguisera votre appétit le poids poli, de 2003, também aponta para a dimensão invisível das pequenas percepções. A obra, em forma de balança, constituída num dos pratos por uma mesa posta com a refeição servida e no outro por um banco com pesos de várias calibragens, deixa sobressair um peso polido, dissonante, introduzindo uma pequena diferença, suficiente para ocasionar uma cisão. 1
Na sala seguinte, a obra Funambulismo de Leonor Antunes, realizada entre 2000 e 2001, também convoca o corpo do espectador, solicitando-o agora a recorrer à sua habilidade física e às suas capacidades multi-sensoriais. Funambulismo é o exercício de equilíbrio realizado pelos artistas de circo sobre uma corda esticada e elevada no ar pelos seus extremos. Para atravessar essa corda sem cair, o malabarista socorre-se de uma vara que deve ser mantida nas mãos na posição horizontal, de modo a que o seu peso seja igualmente distribuído para ambos os lados, ajudando-o a manter o equilíbrio. Com a escultura apresentada, a artista desce esse exercício até ao nível dos nossos pés, convidando o espectador a pegar na vara encostada à parede e a percorrer toda a extensão da barra de madeira estreita, que se encontra disposta no chão. Ao realizar essa acção, o espectador poderá aperceber-se da sua dificuldade. Uma vez que a vara tem o mesmo comprimento que a largura da sala, torna-se quase impossível mantê-la na posição horizontal para assegurar o equilíbrio. O exercício proposto pela artista revela que um percurso no espaço comporta dificuldades, quedas e recomeços e que qualquer caminhada é feita de obstáculos, uns capazes de ser ultrapassados e outros não. Na obra O segredo de 1985, de Joaquim Bravo, somos confrontados com uma linguagem radicalmente abstracta, próxima do desenho e com uma enorme simplicidade cromática. Os elementos opacos preenchidos de cor, conjugando-se com outros elementos vazios desenhados apenas pelo seu contorno, delimitam campos e recortam-se contra os fundos, activando um jogo pictórico: positivo/ negativo, cheio/vazio, claro/escuro. A obra solicita-nos uma relação sensível, sugerindo o pensamento plástico a fluir. A linguagem desenvolvida por Joaquim Bravo excede o dizível, não devendo nós referirmo-nos a ela utilizando termos verbais. Nas entrelinhas do que se não diz e do que se não vê, pode o espectador explorar as dimensões abstractas do espaço e do tempo e evadir-se nelas. A obra de Noronha da Costa, Sem título, de 1967, que se encontra na pequena sala à esquerda, é uma representação simbólica de que a morte está já contida na vida, mas sobretudo de que a obra de arte é um dispositivo que dá a ver aquilo que de outro modo não seria visto. Para observar esta escultura, o espectador deve colocar-se num dos seus topos, onde poderá ver a caveira a desvelar-se sob o volume esférico, ou o inverso. Tal como uma vela, uma lâmpada e uma ficha eléctrica, representadas em algumas das suas telas, mostram que a pintura é o meio para alcançar a luz, também este dispositivo óptico anuncia a obra de arte como instrumento de revelação em si mesmo. Neste sentido, o processo criativo pode desvendar as dimensões mais escuras e as mais luminosas, as zonas letais e os espaços vitais. Na sala que se segue, os artistas convidam-nos a compreender o espaço nas suas múltiplas acepções. A obra Lisbon calling de 2004, de Rui Toscano, consiste numa imagem do perfil da cidade de Lisboa representado por uma linha, lembrando uma corda de guitarra em tensão, a qual vibra de acordo com os ritmos que pulsam na cidade. O seu espaço volumétrico, agora traduzido para uma linguagem visual e sonora, insere-se nas temáticas de eleição do artista, tais como a representação da cidade e da cultura urbana. Através dos sons e dos ritmos, a obra leva-nos a experienciar o lugar a partir de outros ângulos e posições, convidando-nos a ocupar outras dimensões do espaço. 2
Action line de 1999, de Armanda Duarte, tal como o título indica, é uma obra que exige uma acção performativa por parte da artista, de cada vez que é exposta, deixando transparecer o tempo gasto no acto desenvolvido. A acção consiste na deposição sucessiva, no chão, de fios de algodão branco sobre fios de nylon transparentes. As linhas conferem ao espaço um registo visual singular. A artista busca a transparência dos processos, evidenciando as etapas e o modo como elas se articulam entre si. Espaço e tempo são dimensões interdependentes, uma vez que a ocupação de um lugar pede tempo e a experiência do tempo exige um lugar. Nas duas obras Desenho, de 1989, aqui apresentadas, constituídas por linhas tridimensionais que despontam do papel como erupções, Helena Almeida questiona a bidimensionalidade da pintura e do desenho, chegando a uma linguagem reduzida à sua expressão mais elementar. Estes desenhos e a sua obra na generalidade, tratam da conversão de linguagens, da expressão bidimensional e tridimensional, da permeabilidade entre ateliê e corpo, servindo este de ferramenta e matéria de inscrição. Fazendo recurso a um mínimo de materiais plásticos, Helena Almeida procurou desde cedo dar corpo à superfície, atribuir materialidade ao gesto, libertando as expressões artísticas das restrições impostas pelas suas disciplinas. Ao cimo da escadaria encontra a obra Ilha I de 1995, da artista brasileira Carmela Gross, peça constituída por 18 pináculos de ferro a surgir da parede, com um elástico a rodeá-los, insinuando um contorno circular com algumas irregularidades. Tal como uma ilha, a obra forma um espaço delimitado, a partir do qual se podem considerar o dentro e o fora, o interior e o exterior, o imerso e o emerso. Delimitações e fronteiras são zonas porosas que dividem mas, simultaneamente, permitem ligar territórios, desconstruindo os limites que entre eles existem. Significa isto que o espaço adquire atributos (fechado e aberto, à frente e atrás, por cima e por baixo) de acordo com o corpo que o percebe. Neste sentido, o corpo humano e a representação do espaço tornam-se interdependentes, porque o segundo é construído como metáfora do primeiro. Ao dirigir-se para a sua esquerda, encontra a obra de Fernanda Fragateiro, But this garden, for me, looked like no other one every day I met you here, #1, de 2003, que convida o espectador a percorrer o espaço que a rodeia e a posicionar-se como centro da paisagem. A estrutura é formada por quatro lâminas de aço inoxidável, que se abrem cada uma para seu lado, reflectindo o espaço em que a obra está inserida. Através dos reflexos nas lâminas a nossa percepção do espaço altera-se. Por sua vez, o buraco que se abre no centro da peça desmaterializa o corpo da própria escultura. A abertura sugere que se olhe para dentro, à procura de um fundo, revelando o interesse da artista em explorar os objectos, o espaço e a profundidade (zona letal), a qual verdadeiramente só pode ter lugar no corpo do espectador (espaço vital). De acordo com o título da obra, pode dizer-se que um jardim se torna diferente, não porque as suas características físicas se tenham alterado, mas porque o sujeito que o percebe mudou. É também esta transformação do observador que a obra propõe. 3
A entrada na sala seguinte, onde se encontra a obra Linha #1 concebida em 2002 por Luisa Cunha, impõe um intervalo de silêncio. Uma frase, inscrita a tinta, pela artista, na parede, solicita do espectador a relação física com o que lá está inscrito, ocupando a posição que a artista ocupou, lendo à medida que ela escreveu, deslocando-se no espaço e desenvolvendo uma relação somática com a parede. Nesta obra, como em grande parte das restantes obras da artista, as palavras, a linguagem, o seu som, encarados como matéria plástica, entram em tensão com a fisicalidade do corpo, necessário em qualquer acto perceptivo. Na sala seguinte encontram-se as H.suite (XI) e H.suite (XII) de Pedro Cabrita Reis, realizadas em 1993, que têm em comum com o restante da sua obra, a ideia de construção, a qual, por sua vez, pode dar consistência a um sonho. As edificações que o artista constrói, assim como as duas que aqui vemos, não devem ser entendidas como habitáculos vazios para o corpo ocupar, antes como corpos eles mesmos. Tal como o corpo humano tem os seus vasos de fluidos sanguíneos, repare-se que também H.suite (XII) apresenta canais de comunicação a ligar as diferentes partes que a compõem. Ao lado das H.suite encontram-se dois desenhos de 1995 de Marta Wengorovius. Os desenhos são representações de ventrículos do coração, órgão vital do corpo humano, a sugerir o mundo com as suas palpitações. A artista entende o desenho em sentido amplo, enquanto extensão do movimento do corpo, em que o papel funciona como um ecrã poroso que, no lugar da pele, capta e sente o mundo. Nos desenhos de Pedro Cabrita Reis, Sem título, de 1982, não encontramos imagens figurativas. Através de linhas, com diversos ritmos e tonalidades, o artista parece querer dar voz, não a qualquer coisa que possamos nomear objectivamente, mas à própria intensidade vivida por um corpo. Deste modo, o desenho assume-se como a forma de registo das sensações e também da imprevisibilidade, partes insubstituíveis da experiência. Ao fundo encontramos Violoncelo preparado, de 2005, de Ricardo Jacinto, músico e arquitecto de formação. O instrumento virado contra a parede aguarda os ruídos circundantes, as vozes do mundo, tal como a peça 4 33 de John Cage, em que a música desaparece para se ouvirem somente os sons do meio ambiente, que assim devem ser consciencializados. A obra parece propor uma interrupção, para que oiçamos o mundo exterior ecoar em nós mesmos e façamos de nós uma caixa de ressonância. O espectador deve seguir para a sala ao lado, onde se encontra O (de Eco a Narciso), de 1998, do mesmo autor, evocando também aquele momento de interrupção. Nesta obra, o microfone, preso a um motor giratório pelo cabo, descreve um movimento constante desenhando no espaço uma volumetria cónica. Como se pode observar, ao descrever o movimento, o microfone sobrevoa a superfície de um espelho circular em que não toca por milímetros e aproxima-se de uma coluna de som que quase raspa, emitindo uma ressonância. O terceiro dispositivo que compõe a instalação, uma câmara de filmar, capta a passagem do microfone, projectando a imagem do mesmo, com um retardamento de segundos, no ecrã lateral. Assim, originando desfasamentos com a realidade e quebrando o ritmo regular do tempo, 4
as obras colocam o espectador em suspenso, permitindo-lhe perceber que a percepção da realidade é sempre fragmentada e parcelar. Na pequena sala lateral, uma fotografia da série Inox, realizada em 1995 por Jorge Molder, remete para um olhar interior, uma dimensão profunda. Na imagem, o autor e simultaneamente modelo, resguarda o rosto, ocultando parte dele com a mão, como que indicando uma dimensão humana que escapa à imagem capturada pela fotografia, insinuando que cada personagem é uma encruzilhada de relações, mistérios e fantasmas, metamorfoses obscuras e sombrias, das quais a fotografia capta apenas espectros. A seu lado, a escultura Sem título de 1990, de José Pedro Croft, realizada em bronze e coberta de gesso branco, simboliza uma caixa que protege qualquer coisa que oculta, apesar da sua tampa entreaberta, propondo um jogo entre o visível e o invisível. Na tradição escultórica, o bronze, devido à sua duração e resistência, é conhecido como o material que representa a eternidade, enquanto o gesso, pela sua fragilidade, é considerado o material de passagem. Os escultores usam o gesso para realizar os moldes que permitem passar a figura para o bronze. Aqui, o escultor cobre de gesso a escultura de bronze e desse modo confere-lhe uma fragilidade aparente, desconstruindo aquela tradição do uso dos materiais. Uma vez que a obra O (de Eco a Narciso) impede a passagem do espectador, para ver o resto da exposição volte à primeira sala deste piso e retome o percurso no ponto onde se encontra a obra Sem título de João Penalva, de 1996. Esta obra, realizada com técnicas mistas sobre papel, forma um conjunto de manchas difusas, como se pudéssemos observar o fluído das tintas que lhe deram origem, a escorrer e actuar sobre o suporte. Com base na construção de narrativas e identidades ficcionadas, onde figuram histórias e personagens estranhas, a obra do artista mostra um universo poético ligado ao domínio da imagem, poética que de resto atravessa toda a sua linguagem plástica e esta obra em particular. Na sala seguinte, as obras # 335 e #336 de Fernando Calhau, realizadas em 2002, são esculturas em aço que foram pedidas, a título de empréstimo, ao Centro de Arte Moderna Fundação Calouste Gulbenkian para dialogar com as obras da Colecção da Caixa Geral de Depósitos presentes nesta exposição. Embora o artista esteja representado na Colecção da CGD com várias pinturas, serigrafias e gravuras, esta exposição requeria obras tridimensionais, uma vez que toda ela foi conceptualizada a partir das várias acepções da noção de espaço. Dando forma a um túnel estreito, a escultura # 335 recria um espaço uterino, despoletando o desejo de atravessar e desvendar o que está para além dela. A obra metaforiza o acto criativo como necessidade de procurar o invisível e o que motiva o desejo de criar, aspecto que tem estado subjacente nas outras obras expostas. Na escultura #336, que encontra de seguida, o artista assinala as orientações espaciais «Norte, Este, Sul, Oeste» com néon azul no interior de uma caixa de ferro quadrangular, não respeitando a sequência dos pontos cardeais, pois cabe ao espectador determinar para si uma posição espacial. 5
Na parede desta sala o espectador encontra ainda o Tríptico de Pedro Cabrita Reis, que data de 1986, período precedente ao das obras, da sua autoria, expostas na sala anterior. Nesta pintura, composta por três quadros emoldurados em ferro, que deixam sobressair dos fundos escuros largas faixas negras sobrepostas em forma de cruz, o artista anuncia já alguns dos procedimentos artísticos que veio a desenvolver na sua obra posterior. Na obra Tríptico, também ela bastante volumétrica enquanto pintura, estão já patentes a sobreposição de materiais, o primado da construção no uso e na composição dos vários elementos e sobretudo, um aspecto visceral inerente à relação do corpo com o espaço. Na última sala de exposição, encontram-se as obras Debaixo da Pele XIV e Debaixo da Pele XV de 1992, de Rui Chafes e a pintura Very large attractor de 1991, de Michael Biberstein, dois artistas que têm explorado, de uma forma sistemática, os media artísticos inerentes à disciplina que praticam, a escultura e a pintura, respectivamente. A obra do escultor Rui Chafes, em ferro pintado de negro, seu material de eleição, evoca recorrentemente o corpo sem o representar figurativamente, assumindo-se, ora como instrumento de tortura, ora como arma de protecção. Sem querer esgotar a imensa possibilidade de sentidos que os seus títulos acrescentam às obras, toda a sua escultura parece indicar que a pele é o mais profundo. Ela protege a interioridade, resguardando-a do exterior e, simultaneamente, como um órgão vital do corpo, assegura a capacidade respiratória. Respirar é ainda a ideia subjacente às duas pequenas esculturas deste artista que se encontram dispostas sobre os plintos, órgãos disformes, difíceis de identificar, com o título Respirar-te mais próximo IV e Respirar-te mais próximo V, de 1989, onde o escultor, ainda no início do seu percurso, aponta já para a ideia de que o fundamental da existência se joga no interior, não na superfície. A pintura de Michael Biberstein, com um título oriundo da Física, representa algo que tem o poder de nos atrair e convidar a projectarmo-nos num tempo e espaço físico maior, muito maior que nós. Disposta no topo da sala, a pintura de grandes dimensões onde não existem contornos ou limites impostos por molduras, reproduz um espaço infinito, evocando algo para além do visível e para além do nosso alcance. Aquilo que é profundo e está por baixo das aparências em Rui Chafes e o que está para além do imediato e do visível em Michael Biberstein, são como que as zonas letais, paisagens interiores das nossas sensações, os espaços vitais, que dão título a esta exposição. 6