Citopatias Mitocondriais. Uma Doença? Várias Doenças? 2 Casos Clínicos

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Transcrição:

Acta Pediatr. Port., 1999; N. 6; Vol. 30: 503-7 Citopatias Mitocondriais. Uma Doença? Várias Doenças? 2 Casos Clínicos GUSTAVO ROCHA', MARGARIDA AZEVEDO*, SOMA FIGUEIROA *, FERNANDA MANUELA COSTA', LAURA VILARINHO ** "Serviço de Pediatria Hospital Geral de Santo António ** Instituto de Genética Médica Jacinto de Magalhães Resumo Os autores fazem uma revisão sumária das citopatias mitocondriais, grupo de doenças com expressão heterogénea do ponto de vista clínico, bioquímico, genético e histoenzimático. Apresentam ainda dois casos clínicos em que a sintomatologia inicial se incluia no âmbito da pediatria geral e cuja investigação revelou um défice parcial do complexo IV da cadeia respiratória mitocondrial. Palavras-Chave: Citopatia mitocondrial; baixa estatura; atrofia óptica; glaucoma congénito. Summary Mitochondrial Diseases. One Disease? Several Diseases? 2 Case Reports The authors review briefly the mitochondrial diseases, a group of diseases with are clinical, biochemical, genetic and histo-enzymatic heterogeneous. Two cases including short stature and ophthalmological symptoms as initial manifestations of the disease are presented. The work-up investigations performed in muscle biopsies of the two patients showed a partial deficiency of complex IV in the mitochondrial respiratory chain. Key-Words: Mitochondrial disease; short stature; optic atrophy; congenital glaucoma. Correspondência: Fernanda Manuela Costa Serviço de Pediatria Hospital Geral de Santo António Largo da Escola Médica 4100 Porto Aceite para publicação em 31/07/99. Entregue para publicação em 02/06/99. Introdução As citopatias mitocondriais constituem um grupo de doenças de expressão clínica heterogénea que têm na sua origem alterações do metabolismo energético celular (1". As mitocôndrias possuem o seu próprio DNA (MtDNA) que codifica 13 polipeptídeos componentes da cadeia respiratória mitocondrial. Esta é composta por 70 subunidades proteicas que se dividem em 5 complexos, sendo na sua maioria codificadas de forma clássica pelo genoma nuclear (2' 3). Os defeitos primários do mtdna são responsáveis pela maioria dos casos de citopatias e apresentam hereditariedade materna, uma vez que as mitocôndrias são transmitidas ao embrião exclusivamente pela mãe (4). No entanto há doenças mitocondriais cujo defeito primário se localiza ao nível do DNA nuclear e que são transmitidas de forma mendeliana (autossómica dominante, recessiva ou ligada ao X) (4. 5). Aproximadamente 95% das proteínas mitocondriais são codificadas pelos genes nucleares e sintetizadas no citoplasma, sendo posteriormente transportadas activamente para a mitocôndria. Se o mtdna mutado está presente, coexiste na célula com o mtdna normal, sendo este fenómeno denominado heteroplasmia. A heteroplasmia e o efeito limiar explicam a diferente expressão da disfunção mitocondrial em vários tecidos. A distribuição ao acaso das mitocôndrias que contêm a mutação pelas diferentes células somáticas do embrião explica que, membros de uma mesma família, possam apresentar manifestações clínicas muito diferentes. Da mesma forma qualquer orgão pode ser atingido, no entanto os tecidos com elevadas necessidades de oxigénio, como o músculo esquelético, cardíaco e sistema nervoso são habitualmente os mais afectados (6). Assim se compreende que as citopatias mitocondriais se apresentem frequentemente como encefalomiopatias. Uma porção ainda que pequena de mtdna mutado pode afectar a capacidade respiratória destes te-

504 tidos enquanto que grandes quantidades podem ter um efeito devastador (efeito limiar). O mtdna anómalo tem uma capacidade de replicação superior à do mtdna normal, pelo que ao longo do tempo o número de mitocôndrias anormais aumenta, tornando evidentes quadros clínicos não declarados inicialmente (7). Uma particularidade importante é a idade de aparecimento dos sintomas, desde o período neonatal precoce até à idade adulta. De facto, o atingimento pode iniciar-se no período pré-natal e o recém-nascido apresentar traços dismórficos e atraso de crescimento intra-uterino. No período neonatal os sintomas podem inicialmente ser confundidos com os provocados por anóxia, sépsis ou outras doenças metabólicas. Durante o primeiro ano de vida existe geralmente um atingimento plurivisceral com sintomatologia de gravidade variável, por vezes rapidamente mortal. Noutros casos os sintomas podem progredir, envolver sucessivamente outros orgãos e sistemas e agrupar-se em sindromas clínicos. Na infância e adolescência os quadros clínicos neurológicos têm grande importância a par da variada sintomatologia não neuromuscular. Tem havido várias tentativas de classificar os sinais e sintomas em sindromas clínicos, o que nem sempre é fácil, dado que ao longo da evolução da doença e do desenvolvimento da criança e fenótipo vai variando. Os sindromas clínicos actualmente consideradas são: sindroma de Leigh (encefalomielopatia necrosante sub-aguda); MERRF (epilépsia mioclónica com fibras vermelhas e rasgadas); MELAS (encefalomiopatia mitocondrial com acidose láctica e «acidentes vasculares cerebrais») CPEO (oftalmoplegia externa crónica progressiva); sindroma de Kearns-Sayre (KSS oftalmoplegia externa, retinite pigmentar, cardiomiopatia) (LHON) atrofia óptica hereditária de Leber; NARP (neuropatia sensitivo-motora, ataxia e retinite pigmentar); MNGIE (encefalopatia mio-neuro-gastrointestinal); doença de Luft (hipermetabolismo de origem não tiróideia); sindroma de Reye (encefalopatia aguda com necrose gorda do fígado); síndroma de Pearson (anemia sideroblástica e insuficiência pancreática exócrina); DAD (diabetes e surdez); ataxias progressivas ou intermitentes; quadros neurológicos atípicos; miopatias isoladas. Para além destes sindromas conhecidos, as citopatias mitocondriais podem surgir com quadros clínicos predominantemente vísceras e sensoriais; miocardiopatias; alterações hematológicas; renais; gastrointestinais; endócrinas; atraso de crescimento estaturo-ponderal; cataratas; retinopatias; degenerescência retiniana; atrofia óptica e surdez (8). As disfunções da cadeia respiratória mitocondrial causadas por alterações do DNA mitocondrial (mtdna) provocam uma modificação no estado de oxido-redução celular que se reflecte num aumento de lactato e corpos cetónicos plasmáticos. Por conseguinte, os exames com- plementares de diagnóstico utilizados actualmente são o estudo bioquímico do sangue e do líquor que pode revelar um aumento do lactato em jejum e pós-prandial (ou após sobrecarga de glicose) e uma relação lactato/piruvato elevada. Pode haver um aumento paradoxal dos corpos cetónicos no período pós-prandial (4, 5). Estas alterações bioquímicas são importantes para a sugestão do diagnóstico, mas podem ter um carácter intermitente (presentes nas crises de agravamento clínico) ou até nem existir. Nas formas neurológicas, o lactato pode apenas estar elevado no líquor. O diagnóstico definitivo faz-se através da determinação da actividade dos diferentes complexos enzimáticos da cadeia respiratória mitocondrial. Esta determinação pode ser efectuada no músculo esquelético, em fibroblastos de cultura obtidos por biópsia cutânea, nos leucócitos do sangue periférico, ou noutros orgãos alvo mais atingidos. Sob o ponto de vista morfológico e bioquímico o músculo constitui o tecido ideal para se proceder ao estudo dos efeitos patogénicos das mutações existentes a nível do mtdna, devido ao facto destas células terem grandes necessidades energéticas e um baixo índice de renovação. Permite efectuar exames histoquímicos, imunocitoquímicos e doseamentos enzimáticos. A presença de fibras rotas e vermelhas (ragged-red-fibers, RRFs) é um indicador importante de patologia mitocondrial. A importância das RRFs é variável com a idade; são menos frequentes e por isso bem menos importantes nos doentes mais jovens. O estudo histoenzimológico da succinato desidrogenase (SDH) nos cortes de criostato permite pôr em evidência a hiperactividade desta enzima mitocondrial provando a existência de grandes acumulações de mitocôndrias. A técnica histoenzimática COX permite pôr em evidência a enzima mitocondrial citocromo c oxidase demonstrando que em grande parte das doenças mitocondriais muitas das fibras (normalmente tipo I) são COX negativas (8). A determinação da actividade dos diferentes complexos enzimáticos da cadeia respiratória mitocondrial é feita preferencialmente no músculo e permite identificar desde défices isolados, mais ou menos graves, a défices enzimá-ticos múltiplos. É impossível relacionar qualquer tipo de apresentação clínica com um défice enzimático específico (4' 5). Desde 1988 têm sido efectuados estudos do genoma mitocondrial. Observou-se que uma determinada mutação ou delecção pode aparecer com manifestações clínicas muito diferentes, o que torna difícil estabelecer considerações de prognóstico. Uma correlação genótipo/ /fenótipo não tem sido conseguida na grande maioria dos casos. O aconselhamento genético só poderá ser feito se conhecida a mutação causadora da doença, devido aos diferentes tipos de hereditariedade que podem estar envolvidos.

Caso Clínico 1 S.A.P.R., sexo masculino, DN: 23/07/87, natural do Porto e residente em Cinfães. Referenciado à Consulta de Pediatria do Hospital Geral de Santo António (H.G.S.A.), aos 5 anos, por baixa estatura (Fig. 1). Tratava-se do 3. filho de casal jovem não consanguíneo, tendo a gestação sido de termo, vigiada e sem intercorrências. O parto foi eutócico, hospitalar, a somatometria era adequada à idade gestacional (PN=2800 g (P10), C=46 cm (P<5); PC=34 cm (P25)), o índice de Apgar foi de 10 ao 5. minuto e o período neonatal decorreu sem incidentes. Foi verificada uma desaceleração estaturo-ponderai a partir do 2. mês de vida, com progressão do peso e estatura baixo do percentil 5, progredindo o perímetro cefálico no PIO (Fig. 2). Apresentava uma altura de 95 cm na admissão, sendo a altura prevista pelo método de Tanner de 1,70 m (perc. 10). Para além da baixa estatura, apresentava ainda um nistagmo pendular bilateral desde o 1. ano de vida, frequentando a Consulta de Oftalmologia do H.G.S.A. desde os 4 anos de idade, tendo-lhe sido diagnosticada atrofia óptica bilateral com grave défice visual (VODE < 1/10 com refracção). O desenvolvimento psicomotor era adequado e a história familiar irrelevante. FIG. 1 Caso clínico 1. RAPAZES 2,8 ANOS RAPAZES 2-18 ANOS ESTATURA PESO Do estudo efectuado salientam-se os seguintes resultados: RX do punho que revelou um atraso de maturação óssea de 16 meses; doseamento de T3, T4, TSH e cortisol com valores dentro da normalidade; prova da clonidina normal; parâmetros bioquímicos séricos revelando funções hepática e renal conservadas; leucopenia e neutropenia ligeiras (GB=2100/ml, N=1500/ml) confirmados em hemogramas sedados. A ressonância magnética cerebral revelou em ambos os tálamos e globi palladi, tal como no joelho do corpo caloso e substância branca das regiões frontais, a existência de múltiplos focos hiper-intensos em DP/T2, traduzindo atingimento concomitante das substâncias branca e cinzenta. As alterações simétricas encontradas na neuroimagem, sugestivas de doença metabólica, levaram à realização de estudo metabólico que evidenciou um lactato em jejum de 2 mmol/l (V.R.: 0,6-2,4 mmol/l), com piruvato aumentado (127 umol/l; V.R.: 47-82,6 umol/l), razão lactato/ /piruvato = 15 e alanina sérica ligeiramente aumentada (599 umol/l; V.R.: 100-400 umol/l). Alterações clínicas aparentemente não relacionadas (oftalmológicas, hematológicas, baixa estatura) associadas a alterações detectadas por neuroimagem evocaram a hipótese de uma citopatia mitocondrial. Aos nove anos, realizou biópsia muscular que evidenciou a existência de algumas fibras musculares com áreas periféricas corando de vermelho com o tricrómio de Gomori modificado e com acentuada actividade oxidativa com o SDH e fibras COX negativas, não existindo contudo fibras que pudessem ser consideradas ragged red. O doseamento das actividades enzimáticas revelou um défice parcial do complexo IV da cadeia respiratória (com 37% de actividade residual). A investigação molecular do mtdna revelou negativa a pesquisa das seguintes mutações mais comuns das citopatias mitocondriais: A3243G; T3271C; A8344G; T8356C e delecções de grande tamanho, assim como a mutação pontual G11778A associada à maioria dos casos de Lhon (neuropatia óptica de Leber). Actualmente com 10 anos de idade frequenta o 4. ano da escolaridade com razoável aproveitamento, necessitando no entanto, do apoio de equipa de ensino especial atendendo ao seu défice visual. Caso Clínico 2 FIG. 2 Caso clínico 1. Curvas de crescimento. A.R.S.C.N.A., sexo feminino, DN: 1/10/93, natural do Porto e residente em Gondomar. Admitida na consulta de Pediatria do H.G.S.A. aos 10 meses de idade por atraso de desenvolvimento psicomotor e glaucoma congénito bilateral. Tratava-se do 3. filho de casal jovem, não consanguíneo, tendo a gestação sido de termo, normal e vigiada. O parto foi eutócico, hospitalar, a biometria

506 ao nascimento adequada (3850 g/ 50 cm/ 35 cm), sendo o índice de Apgar desconhecido (noção de choro imediato); o período neonatal decorreu sem intercorrências. Apresentava lacrimejo excessivo desde o primeiro mês de vida e fotofobia a partir dos 9 meses, altura em que foi diagnosticado glaucoma congénito bilateral e efectuada trabeculotomia. Ao exame objectivo para além de buftalmia bilateral eram evidentes sinais dismórficos minor: implantação baixa dos pavilhões auriculares e pescoço curto (Fig. 3). Apresentava um ligeiro atraso de desenvolvimento psicomotor e discreta hipotonia generalizada. Quanto ao crescimento, verificou-se sobretudo uma desaceleração estatural desde os primeiros meses de vida, com progressão abaixo do P5 a partir do 7. mês (Fig. 4). O PC evoluiu no canal de percentis 50-75. grafia, potenciais evocados auditivosd e ressonância magnética cerebral sem alterações; RX punho (aos 22 meses I0 = 18 meses); cariótipo - 46,XX. Perante o conjunto de manifestações clínicas envolvendo vários sistemas (glaucoma congénito, dismorfia craneo-facial, atraso de desenvolvimento psicomotor com hipotonia e baixa estatura) e a ligeira hiperlactacidemia pós-prandial, foi colocada a hipótese diagnóstica de citopatia mitocondrial. O exame histológico da biópsia muscular (efectuada aos 3 anos e 9 meses) não mostrou alterações significativas, no entanto, o doseamento das actividades enzimáticas da cadeia respiratória revelou um défice parcial do complexo IV (com 39% de actividade residual). O estudo molecular do mtdna revelou-se negativo para as mutações mais frequentemente associadas às citopatias mitocondriais. Actualmente com 4 anos de idade, apresenta um ligeiro atraso global do desenvolvimento psicomotor (QDG=68% «The Schedule of Growing Skills», faz terapia ocupacional e da fala. Está orientada para as consultas de Oftalmologia, Pediatria e Desenvolvimento do H.G.S.A.. Discussão FIG. 3 Caso clínico 2. RAPARIGAS 0-36 MESES RAPARIGAS 0-36 MESES COMIRINENTO FIG. 4 Caso clínico 2. Curvas de crescimento. Do estudo efectuado salientam-se os seguintes resultados: hemograma dentro da normalidade; parâmetros bioquímicos séricos revelando DHL aumentada (541 U/ L), aldolase aumentada (17,7 U/L), CPK dentro da normalidade, lactato em jejum = 2,1 mmol/l, piruvato = 112 umol/l, razão lactato/piruvato = 18, discreta hiperlactacidemia pós prandial (lactato = 3,40 mmol/l); electromio- As doenças genéticas que afectam a cadeia respiratória mitocondrial foram durante muito tempo circunscritas a apresentações clínicas musculares e neurológicas. Efectivamente os primeiros défices foram descritos nas miopatias e em diversos sindromas neurológicos (MELAS, MERRF, KSS, Síndroma de Leigh). Só após a identificação de uma afecção com expressão clínica não neuromuscular (Sindroma de Pearson) como doença mitocondrial é que surgiu a hipótese de grande número de doenças com atingimento plurivisceral e até malformações serem devidas a anomalias da cadeia respiratória mitocondrial. O verdadeiro problema reside em definir critérios clínicos orientadores do diagnóstico. Atendendo a que as mitocôndrias estão presentes em todas as células, excepto nos eritrócitos, qualquer tecido ou orgão pode (à priori) apresentar um défice da cadeia respiratória e, por conseguinte, uma patologia mitocondrial. Os dois casos clínicos descritos apresentam em comum atingimento oftalmológico e baixa estatura como manifestações iniciais duma citopatia mitocondrial. Este tipo de manifestações, do âmbito da pediatria geral, leva geralmente a avaliações inconclusivas até que alterações detectadas no estudo metabólico ou na neuroimagem orientem o diagnóstico. Embora qualquer tipo de manifestação clínica possa associar-se a citopatia mitocondrial, a existência de glaucoma, descrito no segundo caso, não tem sido referido na literatura (9). A atrofia óptica, no entanto, representa um achado relativa-

507 mente comum, como acontece no caso da atrofia óptica de Leber (LHON), cuja mutação mais comum foi pesquisada. O estudo histopatológico no caso 1 foi importante pois as alterações encontradas levaram à suspeição deste tipo de patologia, assim como a hiperlactacidémia pós prandial do caso 2. A imagiologia pode contribuir para este tipo de diagnóstico, sendo as alterações simétricas de atenuação dos gânglios da base muito sugestivas do Síndroma de Leigh; as alterações compatíveis com enfarte cerebral uni ou multifocal são orientadoras do diagnóstico de MELAS. Ambos os doentes apresentam um défice isolado do complexo IV da cadeia respiratória que é o complexo mais frequentemente deficitário nas citopatias mitocondriais. A maior percentagem de anomalias do complexo IV encontradas em várias séries, deriva provavelmente da maior importância funcional deste complexo, de que resulta uma maior probabilidade dos doentes com esta deficiência terem expressão sintomática. Em geral, a hipótese de encontrar uma mutação pontual mitocondrial num doente com um fenótipo clínico atípico é pequena. No entanto, quando há uma associação invulgar e inexplicável de sintomas com envolvimento de orgãos de diferente origem embrionária as investigações moleculares devem ser consideradas. Nos dois casos foi efectuada a pesquisa das mutações mais comuns do genoma mitocondrial que se revelou negativa. Atendendo a que existem mais de 50 mutações do mtdna descritas, esta investigação mantém-se em curso, estando a ser sequenciadas as subunidades I, II e III do citocromo c oxidase, codificadas pelo mtdna. Nestas duas crianças o défice enzimático é parcial (37% de actividade residual no caso 1 e 39% no caso 2) o que explica o facto de não se ter encontrado uma clínica orientadora deste tipo de patologia, como são as combinações de encefalopatia e miopatia. Estes dois doentes fazem assim ressaltar a necessidade de colocar esta hipótese de diagnóstico com maior frequência mesmo na ausência de quadros neuromusculares evidentes. Em ambas as situações a história familiar revelou-se negativa, sugerindo tratar-se de mutações de novo. Várias tentativas terapêuticas têm sido efectuadas com carnitina, riboflavina, tiamina, ubiquinona, dicloroacetato, entre outras, mas sem grandes benefícios na maioria dos casos (i0), não tendo por isso sido tentada qualquer terapêutica nas nossas crianças. Apesar da baixa estatura destes doentes, não foi fornecida hormona de crescimento devido à contraindicação desta neste tipo de doenças. Bibliografia 1. Harding AE: Genetic Aspects of Mitochondrial Encephalomyopathies. Rev Neurol, Barcelona 1994; 22 (114): 186-8. 2. Moraes CT, Di Mauro S, Schon EA. Mitochondrial Diseases: Defects of Mitochondrial DNA. In: Fejerman N, Chamoles NA eds. New Trends in Pediatric Neurology. Elsevier Publishers BV, 1993; 227-232. 3. Poulton J. Mitochondrial DNA and Genetic Disease. Dev Med Child Neurol 1993; (35): 833-40. 4. Rotig A, Cormier V, Sandubray JM, Munnich A. Les Cytopathies Mitochondriales: de Nouvelles Maladies de Systeme. In: Sandubray Jm eds. Maladies Métaboliques. Doin Éditeurs Paris. 1991: 167- -80. 5. Clarke LA, MD, CM, FRCPC. Mitochondrial Disorders in Pediatrics: Clinical, Biochemical and Genetic Implications. Ped Clin North Ant. 1992, 38 (2): 319-34. 6. Hirano M, Pavlakis SG. Mitochondrial Myopathy, Encefalopathy, Lactic Acidosis and Strokelike Episodes (MELAS): Current Concepts. J Child Neurol 1994; 9 (1): 4-51. 7. Brumback RA, Feeback DL, Leecch RW, Rabsomyolyses in Childhood. A Primer on Normal Muscle Function and Selected Metabolic Myopathies Characterized by Disordered Energy Production. Ped Clin North Am 1992; 39 (4): 821-55. 8. Vilarinho L, Cardoso ML, Coelho T, Matos I, Coutinho P, Guimarães A. Estudo das Citopatias Mitocondriais parte I. Arquivos de Medicina 1997; 11 (2): 75-81. 9. Munnich A, Rotig A, Chretien D, Saudubray JM, Cormier V, Rustin P. Clinicai Presentations and Laboratory Investigations in Respiratory Chain Deficiency. Eur J Pediatr 1996; 155: 262- -74. 10. Walker UA, Byrne E. The Therapy of Respiratory Chain Encephalomyopathy: a Criticai Review of the Past and Current Perspective. Acta Neurol Scand 1995; 92: 273-80.