EDUCAÇÃO, DISTÚRBIOS DE APRENDIZAGEM E FRACASSO ESCOLAR

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Transcrição:

EDUCAÇÃO, DISTÚRBIOS DE APRENDIZAGEM E FRACASSO ESCOLAR Cristiane de Quadros Mansanera 1 Dulce Barros de Almeida 2 RESUMO: O presente texto visa compreender historicamente o desenvolvimento dos estudos sobre distúrbios de aprendizagem como um dos fatores do fracasso escolar; exigindo das escolas adaptações curriculares e de práticas educacionais. O estudo foi realizado a partir de uma perspectiva materialista histórica. Foram verificados primeiramente os acontecimentos no século XIX que engendraram a necessidade do estudo de problemas de aprendizagem. Em seguida discutiu-se sobre a escola entre as décadas de 1930 a 1980 com intuito de mostrar que a crise presente no contexto escolar era e é uma crise da sociedade. Concluiu-se que os estudos sobre Transtorno por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade tiveram origem na necessidade da escola explicar os altos índices de evasão e repetência escolar. PALAVRAS-CHAVE: Educação; Fracasso escolar; Distúrbios de aprendizagem; Déficit de atenção e hiperatividade, Práticas educacionais. JUSTIFICATIVA O texto ora apresentado tem sua justificativa fundamentada na necessidade de melhor compreensão sobre os distúrbios de aprendizagem como um dos fatores para o fracasso escolar. Neste sentido, estudar os acontecimentos históricos sobre a temática nos auxilia a entender melhor as práticas educacionais desenvolvidas na atualidade. OBJETIVO O presente texto visa compreender historicamente o desenvolvimento dos estudos sobre os distúrbios de aprendizagem como um dos fatores do fracasso escolar e, por conseqüência, refletir a respeito das práticas pedagógicas desenvolvidas no cotidiano escolar. 1 Aluna do Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás - FE/UFG e Professora da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Palmas UFT/Palmas/TO; cristianeqm@gmail.com 2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP e Professora Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás FE/UFG; dubalmei@hotmail.com 1

METODOLOGIA O estudo foi realizado a partir de uma perspectiva materialista histórica. Constitui-se numa pesquisa teórica e faz parte de nossos estudos e pesquisas no doutorado do Programa de Pós Graduação em Educação da FE/UFG. DISCUSSÃO TEÓRICA E RESULTADOS No final do século XIX, começaram a ser realizados os primeiros relatos de distúrbios de aprendizagem, ou seja, de alunos que não conseguiam aprender a ler e escrever em decorrência de um comprometimento em nível de Sistema Nervoso Central. Em 1861 (TARNOPOL, 1980), foi realizado o primeiro relato médico de uma criança com dificuldade de aprendizagem associada a uma lesão cerebral. Na década de 1930, o termo Lesão Cerebral Mínima (CRUICKSHANK, 1979) foi utilizado para designar genericamente as crianças com distúrbios de aprendizagem e, portanto, estavam incluídos nesse grupo, os alunos com dislexia do desenvolvimento 3, discalculia do desenvolvimento 4, disgrafia 5 e Transtorno por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade 6. A falta de evidências de anormalidades estruturais (SCHAIN, 1978) em muitos casos, levou os neurologistas ingleses, na década de 1960, a substituírem o termo Lesão Cerebral Mínima por Disfunção Cerebral Mínima, por acreditarem que as dificuldades escolares dos educandos decorriam de anormalidades funcionais no Sistema Nervoso Central. Na década de 1970 (SUCUPIRA, 1986, p.30), os diversos tipos de distúrbios de aprendizagem começaram a ser estudados separadamente e não como uma condição única. A hiperatividade deixou de ser tratada como um sintoma da Lesão Cerebral Mínima e passou a ser estudada como uma entidade clínica passível de um tratamento medicamentoso. Isso significa dizer que o Transtorno por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade passou a ser considerado como uma forma específica de distúrbio de aprendizagem. Estudos epidemiológicos recentes (TARNOPOL, 1980) realizados em diversos países, evidenciam que os distúrbios de aprendizagem atingem cerca de 2 a 5% da população escolar. 3 A dislexia do desenvolvimento (GARCIA, 1998) defini-se como um distúrbio que se manifesta por dificuldade na aprendizagem da leitura. Manifesta-se uma leitura oral lenta, com omissões, distorções e substituições de palavras. 4 A discalculia do desenvolvimento (GARCIA, 1998) está associada às dificuldades de aprendizagem da matemática. 5 A disgrafia (GARCIA, 1998) trata de dificuldades no desenvolvimento da escrita, pode ir desde erros na soletração das frases, ou na organização de parágrafos. 6 Transtorno por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (SUCUPIRA, 1986) refere-se a um dos distúrbios do comportamento, nível de atividade excessivo, falta de concentração e dificuldade para aprender. 2

Entretanto, o que se observa é que, desde os primeiros estudos realizados no final do século XIX, as dificuldades de aprendizagem de grande parte da população escolar têm sido atribuídas aos distúrbios de aprendizagem. No Brasil, por exemplo, nas décadas de 1970 e 1980 (SUCUPIRA, 1986) houve uma tendência à medicalização do fracasso escolar, com a difusão do termo hiperatividade na educação. O que levou a escola a explicar os altos índices de repetência através dos distúrbios neuropsicológicos de aprendizagem? Responder a essa questão, exige uma reflexão histórica sobre o que estava acontecendo nesse momento na sociedade, visto que a escola não se encontra desvinculada do processo de desenvolvimento da sociedade capitalista, mas sim, reflete os seus problemas. Se o leitor procurar respostas para a questão proposta acima nos livros que tratam de problemas e distúrbios de aprendizagem, o histórico que irá encontrar será uma mera descrição de fatos no decorrer do tempo. Por exemplo, Tarnopol (1980), explica a origem dos estudos sobre distúrbios de aprendizagem como decorrentes do interesse clínico de médicos americanos e europeus pelas crianças com dificuldades escolares. É uma história das pessoas (neurologistas) que pesquisaram sobre o tema. A organização de trabalhadores em associações a partir de 1830 favoreceu uma lenta modificação na situação até então vivida, pois, o fato dos homens não serem iguais (GONÇALVES, 1986; LEONEL, 1984) devido suas oportunidades materiais serem desiguais, fez com que a escolarização através da alfabetização se transformasse no meio de igualar os homens através do conhecimento. Os industriais com o processo de escolarização em massa passaram a obter (GUMPERZ, 1991) uma mão de obra mais ordeira, moral, obediente, conformados e disciplinados. Nesse contexto, tem-se que no século XIX (PATTO, 2000) o alicerce para o sistema nacional de ensino era de um lado a crença no poder da razão e da ciência e de outro o projeto liberal onde a igualdade de oportunidades substituía as desigualdades materiais. Por outro lado, pior ainda, constata-se que a ação que delineava as práticas escolares nesta época dava mais ênfase ao plano individual do que ao social. Portanto, foi neste contexto histórico (PATTO, 2000) que a escola passou a ser responsável em garantir o poder nacional, tendo como propósito a escolarização pública, universal e obrigatória, estando em um mesmo ambiente, diferentes tipos de raças e diferentes origens etnológicas. Desta forma, no momento em que a escola "elitista" abre os portões para receber o "povo", passa a receber também diferenças culturais e individuais, que a própria escola começa a não dar conta de atender. Pode-se dizer que a escola era interesse nacional e capitalista para o aumento da produção, e continua sendo na atualidade. Mas com o aumento na demanda social das escolas nos países 3

industriais capitalistas, aumentou por conseqüência a necessidade de explicar as diferenças de rendimento escolar. Para tanto, os primeiros especialistas que se ocuparam de casos de dificuldades de aprendizagem (PATTO, 2000) foram os médicos no final do século XVIII e o século XIX, datando desta época as classificações de "anormais". Pois as crianças que tinham algum distúrbio para aprender não poderiam ser treinadas para o trabalho nas fábricas devido à disfunção cerebral que diziam os médicos possuir, sendo assim classificadas de "duros da cabeça" e "idiotas", passando a fazer parte do cotidiano escolar a mesma classificação dada aos "loucos", nos hospitais. Ainda, no final do século XIX, Galton 7 (1822-1911), preocupado com as diferenças individuais e com a detecção científica dos normais e anormais, aptos e inaptos, procurando comprovar a capacidade psíquica do indivíduo, influenciou fortemente o movimento dos testes mentais que se desencadearam na última década do século XIX nas escolas da Europa e América do Norte. Entre seus discípulos, Cattell que fora seu aluno foi um dos pioneiros na criação de testes psicológicos e também o seu introdutor nos E.U.A. Em 1895, além de Binet 8, um dos fundadores da psicologia diferencial 9 e autor da escala métrica da inteligência para crianças, destaca-se Edouard Claparède, que pretendia (PATTO, 2000) aprimorar instrumentos de medida que fossem capazes de rastrear as diferenças individuais, pois queria saber quem eram os retardados e os bem dotados. Por volta de 1920, Claparède passou a defender a criação de classes especiais para os indivíduos considerados "retardados" e escolas especiais para os indivíduos bem dotados, defendia a "colocação do homem certo no lugar certo". Foi neste contexto ideológico que no final do século XIX nos países capitalistas intensifica-se a busca de instrumentos de medida para as diferenças individuais. Durante os trinta primeiros anos do século XX, (GUMPERZ, 1991; PATTO,2000) a avaliação médica sobre os "anormais escolares", tornou-se praticamente sinônimo de avaliação intelectual. Nesta época, os testes de QI junto com as escolas tornaram-se um meio de peneirar o destino de grande parte de crianças que, na Europa e na América do Norte, conseguiam ter acesso à escola. É possível afirmar que desde o século XIX a escola vem se deparando com a dificuldade de cumprir sua finalidade principal, que é possibilitar que os alunos aprendam os conhecimentos produzidos pela humanidade, sendo que um dos motivos para que muitas crianças não se 7 Galton (1822-1911) dedicou-se ao estudo da biologia e a investigações nas áreas da estatística (contribuindo significativamente para o desenvolvimento das noções de distribuição, significância estatística e correlação), da psicologia experimental através da pesquisa (em laboratório, das manifestações psíquicas) e dos testes psicológicos (criando vários testes e medidas de processos sensoriais). (PATTO, 2000,p. 54) 8 Alfred Binet (BIZZO, 1995) formulou seu primeiro teste psicológico em 1905, com o objetivo de identificar crianças que tinham dificuldades para aprender nas escolas de Paris, seu teste de inteligência indicava as crianças que necessitavam de maior estimulação do que outras. 9 A Psicologia Diferencial (PATTO, 2000) pretendia investigar quantitativamente e objetivamente as diferenças existentes entre indivíduos e grupos. 4

apropriassem de determinados conhecimentos eram os distúrbios de aprendizagem e dentre alguns a, hiperatividade seria uma das causas da produção do fracasso escolar dessas crianças. Em 1930, tentou-se dar um enfoque na explicação de crianças que não aprendiam, pois mesmo estas não sendo débeis mentais acabavam levadas aos consultórios médicos por apresentarem dificuldades escolares; as crianças eram responsabilizadas pelo fracasso escolar. Sendo assim, através da escola (SUCUPIRA, 1986) buscam-se razões e explicações para uma crise que é uma crise histórica da sociedade capitalista. Para entender os motivos (SUCUPIRA, 1986) pelos quais um determinado conceito se difunde rapidamente e é incorporado pela sociedade, é necessária uma reflexão em que este conceito seja visto dentro de um contexto e num momento histórico específico, como é o caso do conceito sobre a hiperatividade, que é um dos tipos de distúrbios de aprendizagem responsável pelo fracasso escolar, que vai se modificando e ganhando espaço nas escolas. Nos Estados Unidos, a disseminação do conceito de Hiperatividade no meio educacional e na área da medicina parece ser explicada pela necessidade de medicalizar o problema social do fracasso escolar. O número de diagnósticos de hiperatividade feitos nos Estados Unidos, (SUCUPIRA, 1986) atinge uma porcentagem de 5% a 15% entre as crianças das escolas e entre as crianças atendidas em clínicas psiquiátricas 30% a 40% e na Grã-Bretanha 1,5%. No Brasil, entre 1930 e 1960 acontecia a queda da República oligárquica (PATTO, 1984) e a sociedade agrária gradualmente transformou-se em sociedade urbano - industrial, sendo assim, o sistema escolar brasileiro passou a desenvolver-se em um contexto industrial capitalista, no sentido de favorecer o desenvolvimento nacional. Com o êxodo rural para as cidades fez com que a população procurasse escolarização na perspectiva de melhorar as condições de vida na cidade. Nesse período, o movimento pela escola nova intensificou-se na tentativa de reforma do ensino, atendendo as necessidades dos escolares das camadas da população menos favorecidas, mas, as medidas tomadas foram formuladas por autoridades políticas e educacionais que defendiam seus próprios interesses. Apesar das mudanças educacionais na década de 1950 (PATTO, 1984), cerca de 52% da população, aos 10 anos de idade encontrava-se analfabeta e as estatísticas brasileiras marcavam um índice de 21,5% de evasão e repetência (RIBEIRO, 1991) nas primeiras séries escolares. É nesse contexto de alto índice de analfabetismo e de evasão escolar que a medicina passou a fazer parte do meio educacional brasileiro, pois a saúde escolar (LIMA, 1985) pretendia favorecer o desenvolvimento normal da criança, mantendo o bom desempenho mental e social do escolar, preparando-os para ocupar um lugar na produção, pois as doenças e a mortalidade ameaçavam paralisar o desenvolvimento da produção material, ameaçando a existência da classe dirigente. No momento em que a medicina passou a fazer parte da educação brasileira difundiu-se 5

na década de 1970 no Brasil o conceito de Distúrbios por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade na busca de uma explicação para o fracasso escolar. Nas escolas públicas brasileiras a hiperatividade no ano de 1970 tornou-se um rótulo para os comportamentos inadequados de crianças na sua maioria pertencentes a grupos sociais mais pobres que não correspondiam com o modelo escolar desejado, o aluno comportado e inteligente. Assim, o sistema escolar acentuou a desigualdade entre os indivíduos, pois não estava concebido para tentar compensar as carências culturais de algumas crianças. O caminho que a concepção de hiperatividade percorreu, principalmente a forma que assumiu dentro dos meios escolares constitui-se como forte modismo, que (SUCUPIRA, 1986) precisa ser visto em um momento específico dentro de um contexto histórico que explique as razões para esta crise do sistema educacional, pois é uma crise produzida pela própria sociedade, que muitas vezes atribui aos alunos as causas dos problemas educacionais. A hiperatividade vista em um contexto sócio - histórico, passa a ser uma reação ao sistema social em que a criança vive, demonstrando assim a inadequação também ao sistema de ensino e ao método educacional, levando o aluno hiperativo ao desinteresse e à desatenção. Não estamos desconsiderando aqui o fato de existir realmente crianças com problemas de ordem orgânica cerebral, que causem problemas de aprendizagem, pois desconsiderar este fato implica acreditar que esta criança está fatalmente entregue ao fracasso escolar e social. Para explicar o que acontece com o aluno é preciso (SUCUPIRA, 1986) verificar a história de vida de cada aluno, identificar os conflitos, analisar as condições em que acontece a escolarização, entender as características e as reações dentro da família, para melhor aproximarmos da problemática explicitada na queixa de hiperatividade. Porque a hiperatividade pode ser entendida não só como um problema clínico, mas também como um comportamento gerado por questões sociais, pedagógicas ou familiares e, requer dos professores um entendimento especial sobre a sua história e o desenvolvimento do seu conceito, para a desmitificação enquanto "doença" que levam muitas crianças ao fracassarem na escola. Enfim, concluímos que os distúrbios de aprendizagem, especificamente o Transtorno por Déficit de Atenção/Hiperatividade TDAH - tem uma causa histórica, constituiu-se em um momento específico em que a sociedade vivia uma crise econômica e esta crise reflete-se na escola. Por conseqüência, a escola começou a não dar conta das diversas diferenças individuais que as crianças traziam para dentro da escola, não atendendo suas necessidades. Então se busca uma explicação para a causa do fracasso escolar e, quando esta explicação parte de uma leitura superficial dos fatos, acaba por ser uma leitura de aparência que procura o problema no indivíduo e não em questões sociais. 6

REFERÊNCIAS BIZZO, N.M.V. Eugenia: Quando a Biologia faz falta ao cidadão. São Paulo, Cad. Pesq., n.92, p.35-52, 1995. CRUICKSHANK, W.N.; JOHNSON, J.O. A educação da criança e do jovem excepcional. Porto Alegre, v.1, Globo, 1979. GARCIA, J.N. Manual de dificuldades de aprendizagem: linguagem, leitura, escrita e matemática. Porto Alegre, Artes Médicas, 1998. GONÇALVES, V.T.V. O Artifício do Natural: ensaio sobre a naturalização do histórico nas teorias pedagógicas contemporânea. São Carlos, 1986. 107p. Dissertação (Mestrado). UFSCar. GUMPERZ, J.C. Alfabetização e escolarização: uma equação imutável. In: A construção social da alfabetização. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991. p.27-57. LEONEL, Z. Em discussão os conteúdos. Maringá, U E M, 1984. (mímeo). LIMA, G.Z. Saúde Escolar e Educação. São Paulo, Cortez, 1985. PATTO, M.H.S. Raízes históricas das concepções sobre o fracasso escolar: o triunfo de uma classe e sua visão de mundo. In: A produção do fracasso escolar: história de submissão e rebeldia. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000. p.23-71.. Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo, Queiroz, 1984. RIBEIRO, S.C. A pedagogia da repetência: estudos avançados, 1991. (mimeo) SUCUPIRA, A.C.S.L. Hiperatividade: doença ou rótulo? Cadernos Cedes - Fracasso Escolar - uma questão médica? n.º 15, São Paulo, Cortez, 1986. p.30-43. SCHAIN, R.J. A síndrome comportamental de lesão cerebral. In: Distúrbios de aprendizagem na criança. São Paulo, Manole, 1978. p.31-38. TARNOPOL, L. Introdução a distúrbios neurológicos de aprendizagem. In: Crianças com distúrbios de aprendizagem: diagnóstico, medicação, educação. São Paulo, EDART, 1980. p.15-31. 7