Português RESUMO ESTENDIDO MANEJO DA RELIGIOSIDEDE NOS CONTEXTOS DA SAÚDE: A EXPERIÊNCIA DE PSICÓLGOS/AS Dra. Marta Helena de Freitas (UCB) 1 Durante décadas consecutivas, ao longo da formação do psicólogo predominou certo silenciamento e grande marginalização dos temas relacionados à religião, religiosidade ou espiritualidade. Desta forma, conforme mostram pesquisas realizadas com estudantes e jovens profissionais, frequentemente estes não se sentem muito preparados para lidar com tais assuntos quando eles aparecem no contexto de sua prática profissional. Ocorre que, num país onde mais de 92% da população se diz religiosa, conforme dados dos últimos censos demográficos, esta temática permeia todos os âmbitos da vida das pessoas, aparecendo constantemente nos diversos contextos de prática do psicólogo, em especial nos hospitais e serviços de saúde mental. Nos últimos anos temos assistido grande avanço da Psicologia da Religião no país, e muitas revistas de psicologia têm publicado trabalhos concernentes ao assunto. Alguns tópicos, inclusive, passam a ser discutidos em disciplinas de psicologia da saúde, como por exemplo, o tema do enfrentamento religioso ou, em psicologia comunitária, a relação entre religiosidade e resiliência. Mesmo assim, ainda é comum, no contexto acadêmico e profissional, certa suspeita em relação à temática, considerada por demais complexa e passível de levar a confusões entre posturas científicas e posturas dogmáticas. Com frequência, inclusive, a mídia divulga situações polêmicas, envolvendo questões desta natureza, na prática do psicólogo. Diante deste cenário, coloca-se a questão de como os profissionais em psicologia, que atuam em contextos de saúde, física e mental, estão lidando com esta realidade. Como têm respondido às situações onde as pessoas ali atendidas manifestam espontaneamente a sua própria religiosidade? Como ocorre o manejo das diversas situações clínicas onde esta religiosidade se manifesta de modo tão intrincado a outras 1 mhelenadefreitas@gmail.com ISSN 0000-0000 1
questões que se constituem seu objeto de escuta e intervenção? A mobilização em torno destas perguntas geraram dois grandes projetos de pesquisas, coordenadas por esta autora e financiados pelo CNPq. Ambos os projetos, ainda em andamento, voltam-se não apenas para percepção de psicólogos, mas também de outros profissionais que atuam em contextos hospitalares ou em serviços de saúde mental, buscando investigar o modo como lidam com o binômio religiosidade e saúde no âmbito de seus atendimentos. Entretanto, para fins específicos desta apresentação, o foco volta-se para as percepções e as experiências dos psicólogos que participaram de ambas as pesquisas. Apresenta-se aqui as linhas gerais da metodologia adotada bem como alguns resultados parciais alcançados até agora com ambos os projetos, tecendo-se algumas reflexões concernentes, em especial sobre possíveis implicações para a formação profissional. Em ambas as pesquisas, de cunho exploratório e qualitativo, empregou-se entrevistas semiestruturadas e fenomenologicamente conduzidas, ao longo das quais foram abordados os seguintes eixos temáticos: como e em que situações a religiosidade dos usuários são percebidas por estes profissionais no contexto em que atuam; se e como os psicólogos estabelecem relações entre religiosidade e saúde (física ou mental); como lidam com a religiosidade dos usuários no contexto de sua prática; o que consideram boas ou más práticas por parte de psicólogos neste contexto; como se caracteriza a sua própria religiosidade ou ausência dela; se e como o tema da religiosidade e saúde esteve ou não presente ao longo de sua formação profissional; e como desenvolveram o manejo da religiosidade no contexto de sua prática atual. Até o momento, participaram de ambas as pesquisas citadas um total de 28 psicólogos/as, sendo catorze psicólogos que atuam em contexto de internação em hospital geral - quatro no Distrito Federal e dez na cidade de Palmas, Tocantins - e outros/as catorze que atuam em serviços de saúde mental no Distrito Federal. A análises do extenso material produzido com tais entrevistas estão em andamento, tendo gerado também vários subprojetos mais específicos, de Iniciação Científica ou Trabalhos de Final de Curso, desenvolvidos por estudantes que integram ambos os projetos mais abrangentes. Ao longo desta apresentação, busca-se fazer uma síntese dos principais resultados parciais alcançados até agora, fornecendo-se uma visão geral daquilo que tem sido mais detalhadamente analisado no âmbito mais específico de cada um destes subprojetos. Alguns destes últimos são apresentados ao longo deste evento sob a forma ISSN 0000-0000 2
de pôsteres ou nas sessões coordenadas, complementando o que será exposto e discutido aqui desta perspectiva mais global. Ao longo das entrevistas conduzidas com os/as psicólogos, foi possível escutar experiências muito diversas e significativas, caracterizando diferentes posturas destes/as profissionais no trato às questões de natureza religiosa de seus pacientes, quando estas aparecem intrincadas com aspectos psicológicos. A despeito destas diferenças, entretanto, alguns aspectos se mostram transversais e tendem a se apresentar em praticamente todos os relatos, conforme descrito a seguir. Um primeiro aspecto que se mostrou convergente nos relatos dos profissionais entrevistados foi a referência de que as questões de religiosidades se manifestam cotidianamente em sua prática profissional, seja no contexto hospitalar, seja no contexto dos serviços de saúde mental. Todos os entrevistados relataram diversas situações e modos pelas quais esta religiosidade se apresenta, seja trazida pelos próprios pacientes, seja por seus familiares: nas consultas, nas enfermarias, nas reações aos diagnósticos, durante os procedimentos cirúrgicos, nas reações às perdas ou risco de vida, nas sessões de grupo, nos objetos considerados sagrados que carregam consigo, nas atitudes de preces ou orações, nos pedidos de visitas por capelães ou líderes religiosos, nos relatos sobre os acontecimentos da semana, nos rituais específicos conforme as pertenças religiosas dos pacientes ou familiares, nas conversas informais entre os próprios pacientes ou entre estes e os familiares, nas formas de aderir ou não ao tratamento ou procedimentos médicos recomendados, nos conteúdos delirantes ou alucinatórios, dentre outros. Um segundo aspecto que se mostrou convergente nas entrevistas refere-se à postura que relatam adotar frente às expressões de religiosidade dos pacientes e familiares. A palavra respeito foi a mais frequentemente empregada, permeada por uma preocupação de ordem ética em comum: a de diferenciar e caracterizar seu papel, enquanto psicólogo/a, de modo a não deixar-se afetar pelos seus próprios valores religiosos em relação às questões trazidas pelos pacientes, com o intuito de evitar efetuar julgamentos de valor sobre as experiências de outros, mesmo quando estas são completamente diferentes da sua própria. Estas preocupações foram frequentemente mencionadas e em referência implícita ou explícita ao que está estabelecido no Código de Ética Profissional do Psicólogo. ISSN 0000-0000 3
Entretanto, mais de 80% dos entrevistados fizeram também referências a situações onde, eventualmente, assumem o papel de buscar colocar alguns limites à expressão da religiosidade de pacientes e familiares. Os modos como o procuram fazer apresentam algumas variações, algumas delas relacionadas à situação e forma específica com que tais religiosidades se manifestam. Assim, no contexto de internação hospitalar, por exemplo, foram frequentemente relatadas situações em que certos rituais religiosos podem comprometer a rotina hospitalar, gerar riscos de contaminação, perturbar outros pacientes, ou ainda, situações em que, devido às próprias crenças e valores religiosas, pacientes ou familiares se recusam a aceitar diagnósticos sombrios ou a atender orientações médicas quanto a procedimentos clínicos e tratamentos recomendados. Neste caso, cabe ao psicólogo mediar a situação, o que muitas vezes significa um verdadeiro desafio, envolvendo simultaneamente uma atitude de acolhimento mas também de colocação clara de limites. Já no contexto de saúde mental, todos os entrevistados mencionaram os delírios de cunho religioso, sendo que a maioria referiu que lhes cabe um papel de acolher o sofrimento do paciente, mas também de oferecer-lhes dados de realidade. Isto consiste em grande desafio, pois não pode se dar de modo a confrontar os conteúdos delirantes e as crenças dos pacientes. Nestes casos, costumam envolver as famílias, como também buscar entrar e sair do delírio do paciente, empregando as técnicas psicológicas, mas sem entrar no mérito dos conteúdos religiosos. Por outro lado, foi comum ouvir que, em alguns momentos, fica a dúvida entre o que seriam legítimas experiências espirituais e o que seriam conteúdos delirantes. Mais raras, mas também relatadas, foram as situações em que o/a próprio/a psicólogo/a está convicto de que se trata de experiências que ultrapassam o âmbito psicológico. Estas situações foram relatadas na terceira pessoa, ou seja como observadas em relação aos comportamentos de outros psicólogos, mas também houveram relatos onde o/a próprio/a entrevistado/a, como pessoa que também tem uma religião e crê, interpreta a experiência de pacientes como sendo de cunho espiritual / religioso. E aqui se registra um aspecto bem delicado, onde o profissional refere buscar distinguir seu papel como psicólogo e não entrar em outro terreno. Nestas situações, houve quem relatou buscar encaminhar a questão em consonância com a crença do paciente, outros que costumam fazer orações em prol do paciente, em silêncio e em geral antes ou depois dos atendimentos. ISSN 0000-0000 4
Sintomático relato foi o de um psicólogo, que também é pastor evangélico e que, diante dos dilemas existenciais e religiosos de um paciente, referiu explicitar a distinção de interpretações, para o próprio paciente, mostrando o que seria a sua posição enquanto psicólogo e o que seria a sua posição enquanto religioso. Em relação à própria religiosidade, verificou-se que a grande maioria mantem um sentimento religioso, embora não necessariamente seja praticante de uma religião específica. Predominaram os católicos e o evangélicos, enquanto religiões de tradição familiar, sendo que alguns se afastaram muito destas tradições, em especial depois que iniciaram a graduação em Psicologia. Dentre os que se afastaram, alguns se aproximaram de outras religiões, como o espiritismo ou budismo, enquanto outros tornaram-se céticos e/ou agnósticos. Três entrevistados citaram situações pessoais e familiares, em geral relacionadas a perdas ou riscos de vida, que os levaram mais tarde ao reconhecimento de sua própria fé ou espiritualidade, mesmo que não sejam adeptos de uma religião específica. Por outro lado, a experiência no hospital, de certa forma, também tem levado alguns à relativização do ceticismo que se desenvolveu a partir da formação em psicologia. Outra grande convergência registrada entre os entrevistados foi o relato de que o binômio religiosidade e saúde ou religiosidade e saúde mental não foi abordado ao longo da sua formação. Dentre os 20 entrevistados, apenas três relataram ter visto, superficialmente, alguma referência à noção de enfrentamento religioso, em psicologia da saúde ou psicologia hospitalar. Eventualmente, também na disciplina de ética, o tema foi citado rapidamente quando do estudo do código que regulamenta a profissão. Vários mencionaram ainda o fato de que, além de não ter sido abordado durante a graduação, o tema foi sempre considerado sem importância, alheio à psicologia. Deste modo, quando eventualmente abordado, isto costumava ser feito em tom de desprezo e de modo bastante pejorativo. Diante da pergunta sobre como desenvolveram os recursos e repertórios para manejo do tema na prática profissional, já que não tinham recebido o preparo durante a graduação, as respostas mais comuns foram: das próprias vivências pessoais, da própria personalidade e/ou formação familiar e religiosa; da própria experiência de atuação naquele contexto (ou seja, aprendendo com a própria prática); ou busca de leituras ou ISSN 0000-0000 5
formações paralelas por conta própria, na medida em que se viram muito mobilizados para tanto. Enfim, estes resultados, ainda que parciais, ilustram que o manejo da religiosidade no contexto hospitalar ou no contexto dos serviços de saúde mental, por parte de psicólogos, ainda que inevitável, tem se dado muito mais a partir da experiência pessoal ou profissional com o assunto. Este processo de aprendizagem conta, em geral, com contribuições muito genéricas da própria psicologia, tendo muito maior peso a sensibilidade, a intuição ou o esforço de estudos autodidatas do próprio profissional. De fato, embora as contribuições específicas da psicologia da religião venham se tornando cada vez mais acessíveis, por meio de livros e artigos publicados, elas tem chegado aos profissionais muito mais pelas suas iniciativas individuais, em vez de por meio de disciplinas específicas da graduação em Psicologia. Isso provavelmente se explica em função do fato de que a maioria dos professores em psicologia no Brasil, atualmente, foram formados por paradigmas onde o tema da religiosidade foi absolutamente excludente e visto com muitas suspeitas, desconfiando-se da possibilidade de que pudesse ser tratado de modo científico, tecnicamente consistente e eticamente sustentável. Conclui-se portanto que, do ponto de vista do seu ensino, especialmente no nível de graduação, a Psicologia da Religião ainda tem um longo caminho a percorrer. Recomendamos, pois, mais pesquisas e iniciativas que contribuam para tornar viável e mais acelerado este percurso. Palavras chave: Religiosidade; Saúde; Saúde Mental; Psicólogo ISSN 0000-0000 6