LITERATURA DÁ SAMBA Alexandre Neiva (UERJ) neivadearaujo@yahoo.com.br



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Transcrição:

LITERATURA DÁ SAMBA Alexandre Neiva (UERJ) neivadearaujo@yahoo.com.br O objetivo deste artigo é demonstrar a validade da participação do samba-enredo no contexto disciplinar das aulas de língua portuguesa e literatura para que, com isso, se estabeleçam novas interações do aluno com o texto. Como as considerações sobre a fala e a escrita incluem a dificuldade de operar com os fenômenos fônicos da língua, é possível explorar a produção musical com vistas a descrever e documentar a riqueza de nossa língua numa perspectiva diacrônica ou sincrônica. Portanto, a letra de um samba-enredo pode ser u- tilizada como um material de alta produtividade nas aulas de língua portuguesa. Uma letra de samba-enredo, mesmo de uma estrutura simples, pode oferecer boas oportunidades de análise da estruturação linguística, seja do ponto de vista da seleção do vocabulário, da organização dos termos na oração, seja dos efeitos fônicos ou semânticos pretendidos. As letras oferecem rico exemplário para estudo, tornando as aulas bem mais interessantes e participativas. Qual o significado de samba-enredo? O samba-enredo, também chamado de samba de enredo, é um subgênero do samba moderno, surgido no Rio de Janeiro em 1930, feito especificamente para o desfile de uma escola de samba. Neste período, convém aclarar, as estações de rádio, em plena difusão pelo Brasil, passam a tocar os sambas para os lares. O samba surgiu da mistura de estilos musicais de origem africana e brasileira. É tocado com instrumentos de percussão (tambores e surdos) e acompanhado por violão e cavaquinho. Geralmente, as letras dos sambas-enredo contam a vida e o cotidiano de quem mora nas cidades, com destaque para as populações pobres. O termo samba de origem africana tem seu significado ligado às danças típicas tribais do continente. As raízes do samba foram fincadas em solo brasileiro na época do Brasil Colonial com a chegada da mão-deobra escrava em nosso país.

2818 No período clássico, foram os enredos que tocavam mais diretamente o sentimento popular que permitiram sambas melhores e deram oportunidade a que os compositores desenvolvessem uma linguagem poética própria, sem a empolgação dos primeiros tempos. Esses enredos de apelo popular continuaram na época de ouro gerando uma grande quantidade de excelentes sambas de enredo. (MUSSA e SIMAS, 2010, p. 77) O que a letra do samba nos proporciona é geralmente uma história que enfatiza a luta de um povo, que evoca determinados personagens, seja da nossa história, da literatura ou até mesmo algum sentimento em forma de prosopopeia, levando-nos a um simulacro geralmente com alcance estritamente regional, embora haja a apreciação dos estrangeiros e dos turistas de outros estados do equivalente à expressão que obras como Odisseia ou Ilíada deram ao mundo. O samba-enredo apresenta uma estrutura linguística e discursiva particular em que devem estar bem coordenados às personagens, o tempo, o espaço e o ponto de vista do narrador, contando uma história ou louvando fatos, lugares, objetos ou pessoas. A característica textual mais evidente do samba-enredo está na aproximação formal com a epopeia literária, pela constante presença da proposição (anunciação do tema cantado), da invocação e da louvação heroica de fatos, objetos e personagens, provenientes do texto épico clássico. O samba-enredo é composto sempre a partir da sinopse do enredo, que proporciona legítimos exemplos para trabalhar a intertextualidade em sala de aula. O seu uso abre possibilidades para o estudo de aspectos semânticos, sintáticos e morfológicos que a caracterizam. Os enredos históricos geralmente produzem sambas-enredo de qualidade e com informações relevantes à prática na sala de aula. Sabemos que todo recurso didático deve ser anteriormente analisado pelo professor para que não haja dúvidas sobre a forma como ele deve ser utilizado em sala de aula e o samba-enredo entra favoravelmente nesta dinâmica devido ao conteúdo rico e diverso, muito útil à prática docente. Muitos dos sambas-enredo, utilizados como ferramentas pedagógicas, servem para despertar o interesse do aluno em relação ao conhecimento de vocabulário, interpretação e produção de texto. O professor de língua portuguesa precisa estar em sintonia com outras disciplinas, como história, artes, música, ciências, geo-

2819 grafia, entre outras. Sem querer adentrar os meandros dos estudos da Educação, vale afirmar que aplicar projetos interdisciplinares facilita a aprendizagem do aluno e desperta o interesse em participar mais a- tivamente das aulas, atestado por muitos profissionais do ensino. Como exemplo, é possível dar uma excelente aula de Literatura, a- bordando o modernismo partindo dos enredos Pauliceia Desvairada (Estácio de Sá, 1992) e Macunaíma (Portela, 1975). Outro exemplo poderia ser o samba-enredo cantado em 2007 pela Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Trata-se de uma homenagem à língua portuguesa em seu enredo, que levava o longo título de Minha pátria é minha língua. Mangueira meu grande amor. Meu samba vai ao Lácio e colhe a última flor. Em meados de 2006, os imortais da Academia Brasileira de Letras tomaram conhecimento da escolha do tema pela escola de samba, se dispondo a participar da folia esclarecendo questões sobre a língua portuguesa. O samba-enredo é também um recurso para o trabalho com a intertextualidade, pois muitos são os que trazem em sua letra trechos de obras de grandes autores da literatura nacional, principalmente. Inclusive, o trabalho com a disciplina literatura, obrigatória no ensino médio, pode-se enriquecer e vitalizar por intermédio dos sambasenredo. Dessa forma, podemos escapar da fórmula antiga mais ainda reproduzida de decoreba de obras cujas características marcantes a inserem em determinado movimento literário. Sabemos que a literatura cumpre um papel cultural na sociedade e a escola tem o papel de transmitir essa cultura para os alunos. A literatura oferece ainda um acervo interessante para a construção de nosso carnaval. As histórias contadas nos livros ganham movimento, adquire um novo olhar (de quem se apropriou naquele instante do trabalho do autor original), que fornece aos espectadores que não leram a obra literária um convite especial à leitura desta ou, ainda, aos que já tiveram contato, uma coleção de itens da imaginação do carnavalesco que a adaptação agrega para a releitura. Cabe à literatura dialogar com o aluno e esse diálogo terá frutos sadios e variados se o professor souber diagnosticar, dentro de uma comunidade linguística, aquilo de que ela necessita para poder

2820 começar a caminhar, no mundo literário, sem a necessidade inicial de muletas teóricas que visem somente à classificação das obras, em detrimento do valor de seu conteúdo, causando, por fim, somente uma leitura mecânica que termina geralmente no mais profundo enfado. Se a literatura é uma forma de linguagem que interage com o homem contemporâneo, por que não sondarmos o que a nossa gente pensa ao entrar em contato com os sambas-enredo? Se a literatura, ao mesmo tempo, é algo que não fica indiferente perante a evolução da sociedade, não é sensato pegarmos como matéria-prima de nossas aulas algo que esteja bem mais próximo do povo do que, por exemplo, um livro com o português arcaico de Camões e suas já tão distantes aventuras? Não que não seja importante o trabalho com a literatura consagrada, mas não se pode abster-se da manifestação cultural que produz releituras, transforma literatura e gera nova obra literária, como o gênero que queremos evidenciar. Neste caso, o diálogo é ainda mais intrínseco, pois a obra original passa a falar com o povo através de outros artifícios. Dotam-na de recursos visuais, de vozes, de movimento, resultados fatalmente de outro ponto de vista e, por conseguinte, uma obra como Os Lusíadas, tonifica-se de tal forma, diante de uma adaptação carnavalesca, que ao menos curiosidade vai deixar no indivíduo de saber como foi aquela narrativa. E o mais importante: com espontaneidade; não por exigência da disciplina. Entretanto temos, a todo o momento, homenagens a obras consagradas na literatura que percorrem a avenida nos dias de desfile. Atribuindo um novo olhar a uma obra consagrada, como resultado dessa homenagem proporcionada pelo samba-enredo, o aluno pode se defrontar com um horizonte mais amplo que o auxilie na busca pela compreensão do texto. Tomemos como exemplo Os Sertões, um texto que em algumas publicações aparece em dois volumes, de tão vasto o conteúdo. Na busca por uma forma de apresentar ao aluno essa fração da nossa literatura, sem com isso utilizar-se de caminhos enfadonhos, é possível exibir um vídeo ou áudio do samba-enredo junto da letra, propondo ao aluno interação, seja acompanhando com a voz, seja atra-

2821 vés de trabalhos em grupo. É uma opção de que dispõe o professor, que complementa ou até mesmo, inova a trajetória comum das aulas. Vale um aparte acerca das sobreposições do samba pelo mundo literário. Grandes obras brasileiras viraram samba-enredo no carnaval carioca, como Memórias de um Sargento de Milícias (Portela, 1966), obra literária do escritor Manuel Antônio de Almeida, que é um romance de costume que aborda certo período de nossa história. A escola homenageou a obra em dezenas de versos que contava as aventuras do personagem Leonardo Pataca nos tempos do Rei; ou Macunaíma (Portela, 1975), um dos grandes romances modernistas do Brasil, escrita em 1928, por Mário de Andrade. A obra é considerada um indianismo moderno e foi escrita sob uma ótica cômica. Com uma estrutura inovadora, Mário de Andrade critica o Romantismo e faz uso de mitos indígenas, de lendas, provérbios do povo brasileiro para registrar alguns aspectos do folclore do país até então pouco conhecidos. Além das obras citadas acima, que viraram enredos, algumas agremiações homenagearam nossos escritores. A primeira escola de samba a exaltar um escritor foi a do bairro de Madureira, Império Serrano, em 1948, com o enredo que homenageava o poeta baiano do Romantismo, Castro Alves. Em 1952, a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira cantou na avenida o indianismo de Gonçalves Dias, com um belíssimo samba. O poeta procurou formar um sentimento nacionalista ao incorporar assuntos, povos e paisagens brasileiras na literatura nacional. Por sua importância na história da literatura brasileira, podemos dizer que Gonçalves Dias incorporou uma ideia de Brasil à literatura nacional. No ano de 1967, a Escola de Samba Mangueira homenageou o escritor paulista Monteiro Lobato com o enredo O mundo encantado de Monteiro Lobato. O escritor foi o precursor da literatura infantil brasileira e ficou popularmente conhecido pelo conjunto educativo, bem como divertido, de sua obra de livros infantis, o que seria aproximadamente metade da sua produção literária. Outra escola de samba, Império Serrano, conseguiu levar o escritor pernambucano Ariano Suassuna para a avenida, devidamente consagrado pelas arquibancadas da praça da Apoteose como o legítimo Imperador da Pedra do Reino, com seu universo crítico e mágico no carnaval de

2822 2002. E para finalizar, em 2009, o centenário da morte de Machado de Assis e o nascimento de Guimarães Rosa foi o enredo da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, que conseguiu unir no mesmo enredo os dois autores. Como apontado acima, os enredos apresentados permitem trabalhar as obras literárias e os autores em sala de aula estimulando o conhecimento da cultura popular, por intermédio das letras dos sambas-enredo. Convém ainda acrescentar que não se propõe aqui transformarem as aulas de português numa sucessão de análises de textos musicais. A proposta é mesclar as aulas do tipo convencional (com textos literários e jornalísticos em geral) com aulas que explorem o gênero e assim diversificar o trabalho, tornando mais atraente e, por conseguinte, mais produtivo. O consenso entre os docentes é que o grande desafio da educação está cada vez mais na busca por recursos que fujam da educação tradicional, utilizando livros, músicas, filmes e dinâmicas. Utilizar o lúdico para facilitar o aprendizado é a chave para uma educação do futuro e para formação de cidadãos cientes de seu papel no processo histórico. Ângela Kleiman (2002) questiona a necessidade do professor em buscar propostas de trabalhos e alternativas metodológicas para que possam obter resultados significativos na sua prática pedagógica, pois, antes de qualquer coisa, é preciso haver uma comunicação integrada entre o professor e o aluno e, sobretudo o respeito da construção do conhecimento que o aluno obteve fora da escola que certamente, ao viverem nesta sociedade são capazes de refletirem e responderem sobre quaisquer assuntos que lhes forem apresentados, levando-se em conta, os aspectos no processo da construção do conhecimento. Nesse sentido, é possível afirmar que a utilização de enredos cuja temática é a literatura brasileira, ajuda a promover aspectos da cultura brasileira, a partir do momento que utiliza a literatura em conjunto com o carnaval, uma forma de cultura popular. É o tipo de tema que permite um conhecimento maior da literatura, além de gerar um maior interesse por parte dos alunos pelas obras literárias.

2823 Seria algo ingênuo se pensássemos em cultura popular como expressão da personalidade de um povo. Canclini afirma que pensar assim é pensar idealisticamente, porque tal personalidade de um povo não existe como uma entidade a priori, metafísica, e sim como um produto da interação das relações sociais. (CANCLINI, 1999, p. 42) Podemos concluir que a língua é usada de forma precisa nesse processo, envolve o uso da norma culta; das informalidades, quando exige o tema; de expressões adequadas à época em que se passa o tema abordado, ou seja, um material tão válido quanto os textos retirados de contos de Machado de Assis ou as poesias de Drummond, itens frequentes nos livros didáticos e, principalmente, nos vestibulares. Assim como a arte, que é uma representação dotada de sentido, o carnaval é uma manifestação social cujo sentido é dado pelo próprio folião, com o objetivo de diversão, tradição e protesto. Neste caso, essa representação é temporária, dura apenas algumas noites, mas mesmo assim a ordem social muda, como é o caso do carnaval de hoje, onde pobres, ricos e milionários desfilam e cantam lado a lado. [...] Eis que um frenesi ganha este povo, Risca o asfalto da avenida, fere o ar. O Rio toma forma de sambista. É puro carnaval, loucura mansa, A reboar no canto de mil bocas, De dez mil, de trinta mil, de cem mil bocas, No ritual de entrega a um deus amigo, Deus veloz que passa e deixa Rastro de música no espaço Para o resto do ano. ( Retrato de uma cidade de Carlos Drummond de Andrade) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de história. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003. CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.

2824 CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de castro. O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. COSTA, Haroldo. 100 anos de carnaval no Rio de Janeiro. São Paulo: Irmãos Vitale, 2001. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. KLEIMAN, Ângela B. Oficina de leitura. Teoria e prática. Campinas: Pontes, 2002. MUSSA, Alberto e SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.