ANOTAÇÕES SOBRA A CRÍTICA DE MARX À CONCEPÇÃO DO ESTADO DE HEGEL

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Transcrição:

1 ANOTAÇÕES SOBRA A CRÍTICA DE MARX À CONCEPÇÃO DO ESTADO DE HEGEL Wellington de Lucena Moura Mestrando em Filosofia Universidade Federal da Paraíba O objetivo deste trabalho é o exame das críticas à filosofia do direito, especialmente ao conceito de Estado de Hegel a partir da obra de Marx. Com esta finalidade empreendemos uma leitura da Filosofia do Direito de Hegel em comparação com a crítica marxiana. Os focos dessa crítica são, principalmente, as relações entre o Estado e as classes sociais e o Estado e a opressão. Marx limitou sua crítica à concepção do Estado de Hegel, notadamente aos conceitos do poder do Príncipe, a soberania, do poder do Governo e do poder legislativo. O jusnaturalismo, na filosofia do direito de Hegel, aparece como um dever ser. Hegel contrapõe ao jusnaturalismo, a filosofia que trata do que o Estado é. A filosofia do direito explica o Estado como a razão autoconsciente. O conceito jusnaturalista de contrato social é negado por ser uma transposição indevida do direito privado para o direito público, tratando o direito como uma convenção arbitrária dos indivíduos, semelhante ao que acontece no que Hegel denomina de sociedade civil.

2 De forma análoga trata Hegel o estado de natureza. Considera-o um mito de origem, tanto relativamente ao tempo, como se racionalmente considerado. Hegel assegura que sobre tal estado a única afirmação segura é que dele é preciso sair. Hegel não aceita, também, a teoria de Rousseau do bom selvagem ; prefere afirmar, como Hobbes, a guerra de todos contra todos. Entretanto, tal guerra não foi uma realidade passada. Para Hegel, ela é uma realidade possível no presente e convive, em permanente tensão, com a sociedade constituída em Estado, conforme a lei. A sociedade civil, conceito introduzido por Hegel, faz referência direta ao estado de natureza, pois, trata-se de um remanescente deste estado, mediando entre as famílias o grupo social mais próximo da natureza e o Estado racionalmente constituído. Assim não existe homem sem humanidade, ou cidadão sem cidade, político sem polis. O indivíduo abandonado na natureza é um deus ou uma besta, segundo Aristóteles, mas não um homem. O estado aristotélico é restabelecido, e se antes era estático, metafísico, o Estado hegeliano é orgânico e se move em decorrência da permanente tensão interna e externa. A filosofia do direito de Hegel sofreu a dura crítica de Marx. Dois escritos, Crítica de Filosofia do Direito de Hegel e Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução, formulam a concepção do Estado em Marx. Ao contrário de Hegel, Marx vê o Estado como um instrumento de luta de classes e, sendo assim, como indício seguro da existência de opressão na sociedade. O Estado hegeliano não é, como afirma a Lei, de todo o povo, mas das classes socialmente dominantes, no caso presente, da classe burguesa, que o utiliza para oprimir as demais. Hegel

3 idealizou o Estado quando pensou a sociedade civil como um todo submetido à lei pelo Estado. A sociedade civil, para Marx, está divida em classes, caracterizadas conforme a sua relação com a produção da vida social, e tais classes interagem de forma diferenciada com o Estado. O Estado não é condição da sociedade, mas condicionado por ela. O que Hegel fez foi uma inversão de premissas e conclusão. Se, para Hegel, o que se pode dizer do estado de natureza é que dele é preciso sair, para Marx, o mesmo deve ser dito em relação ao Estado de Direito, e, conseqüentemente, em relação à atividade política. Ambos, Estado e política, decorrem da divisão da sociedade em classes, uma das quais se sobrepõe às outras e o Estado é um instrumento dessa opressão - é uma forma que se aliena na Filosofia do Direito ao ocultar a divisão de classes e a opressão e se afirmar como sendo garantia da liberdade de todos quando, de fato, garante a liberdade de alguns em detrimento da liberdade da maioria. Para Hegel, o Estado é uma necessidade externa frente à família e à sociedade civil. O Estado constitui a superação da família e da sociedade civil e aparece perante as mesmas como realidade autônoma diante da qual a família e a sociedade se subordinam. Mas, tal subordinação é no seu próprio interesse, assim como, em Aristóteles, o escravo se subordinava ao senhor por conveniência própria, pois necessitava de orientação. Nesta dialética hegeliana, a família e a sociedade civil formam um par semelhante ao do senhor e do escravo, descrito pelo próprio Hegel. Assim há uma relação de dependência e subordinação da família e da sociedade civil frente ao Estado, mas, também, uma unidade do fim imanente do Estado com os interesses individuais; existe uma unidade entre deveres do indivíduo e da

4 sociedade para com o Estado e direitos concedidos pelo Estado aos indivíduos (cidadãos) e à sociedade. Para Marx, configura-se na formulação hegeliana uma antinomia entre necessidade externa, caracterizando uma oposição entre o Estado e a sociedade civil e as famílias de um lado e, por outro lado, o fim imanente, caracterizado pela coincidência entre os interesses individuais e o fim do Estado, ou seja, caracterizado pela unidade dialética entre deveres e direitos. O fim imanente sugere uma contradição interna a uma totalidade, ao passo que a necessidade externa contrapõe um ser a uma negação de outro gênero, que lhe é externo. Para Hegel, o Estado é o pressuposto que se divide em família e sociedade civil; segundo Marx, tal raciocínio é misticismo lógico, panteísta, e o que é real é que o empirismo vulgar considera como Lei algo externo. Marx considera a família e a sociedade civil como pressupostos do Estado, ao contrário da especulação hegeliana. O estado político não pode existir sem a sociedade civil, sua base artificial, tampouco exite sem a família, sua base natural, mas, para Hegel, o condicionante aparece como condicionado, o produtor como produto do seu produto ; o Estado surge da multidão, mas a especulação o anuncia como sendo não uma idéia da multidão, mas da idéia subjetiva e mística. Para Marx, Hegel parte das determinações concretas individuais para as determinações abstratas que lhe correspondem; Hegel transforma a idéia em sujeito e faz do sujeito real propriamente dito (...) o predicado i : Estado político relação racional organismo. Hegel inverte sujeito e predicado. Torna independente o predicado. O que é determinado -o Estado- aparece como determinante; assim o trabalho filosófico não procura encarnar o pensamento em

5 determinações políticas, mas sim volatizar as determinações políticas em pensamentos abstratos ii. Entretanto, Marx, vê o mérito em Hegel não de descrever o ser do Estado moderno tal como existe, mas de entender como ser do Estado o existente.

6 BIBLIOGRAFIA BOBBIO N. Hegel E O Jusnaturalismo. Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1989. HEGEL G. Princípios Da Filosofia Do Direito. Tradução Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. KONDER, L.Hegel: a razão quase enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, 1991. MARX, K. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel-Introdução. Tradução Alex Marins. S. Paulo: Martin Claret, 2001. MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Editorial Presença/Livraria Martins Fontes, 2ª Edição, 1983. i MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Editorial Presença. 2ª ed. Lisboa: 1983. Pg. 16 ii Idem, pg 26