Marina de Oliveira Furlan O ORIENTE SAGRADO. OS SANTOS NA SOCIEDADE BIZANTINA E ORTODOXA. Comunicação apresentada ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Nossa História com todas as Letras. I Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais 09 a 12 de Novembro de 2004 Mariana
Um estudo sociológico do início dos anos 1950 demonstrou a existência de 2.489 santos (conhecidos), dentre os quais apenas 3% eram oriundos de classes inferiores, as quais, no entanto, representavam então cerca de 80% da população no Ocidente(Ste. Croix, G.E.M., 1981.p.27). Não se trata apenas de um dado provocador e picante; pelo contrário, levanta uma questão da mais alta importância, se comparado com o estudo dos motivos que podem ter provocado, ao longo da história na sua fase cristã, por um lado a vocação para a santidade e, por outro, a profunda necessidade que diferentes sociedades demonstram ter deles. A partir desses dados podemos formular uma questão duplamente pertinente: qual a necessidade histórica do fenômeno da santidade e quais as reações, certamente contraditórias tal como mostra o estudo mencionado, da sociedade no seio da qual o santo se manifesta e qual o comportamento adotado pela instituição da Igreja. Assim, nosso trabalho tem por objetivo focalizar o estudo da vida dos santos situando-se, portanto no domínio da hagiografia (narrativa de vidas de santos). Trata-se de área pouco estudada, o que não corresponde à importância histórica que a beatificação assume na história da sociedade cristã (ocidental e oriental). Assim partimos da seguinte premissa, que é uma interrogação: o por que da necessidade que a sociedade tem de cultuar seus santos, num mecanismo que, por princípio, contradiz uma religião que se apresenta como monoteísta, ou seja, cultua um Deus único. Faz-se necessário observar que a palavra santo, derivada do epíteto latino sanctus, do grego hagios e hebraico qdôsh (ATTWATER, 1991, p.10), é aplicada, segundo The Oxford Dictionary of Bizantium, a pessoas que possuem como características sua luta constante contra demônios e sua capacidade de realizar milagres (KAZHDAN, 1997, p.1828). Ainda segundo o verbete Santo da Enciclopédia Espasa-Calpe, o santo é aquele que é perfeito e livre de toda culpa, possui especial virtude e exemplo. Cabe então perguntar: o que é o demônio e o que é a culpa? Para que uma pessoa se torne um santo é necessário, pelo menos o consentimento da Igreja local; o reconhecimento oficial é chamado de canonização, que, por sua vez constitui o reconhecimento oficial de que a pessoa foi santa durante a vida terrestre, ou seja, que teve uma vida dedicada ao bem e vivida num nível heróico de fidelidade, constância e integridade cristãs. No Ocidente, a canonização ficou reservada para a Sé Romana a partir do pontificado do papa Alexandre II(1061-1073) no século IV. No Oriente ortodoxo (Grécia e Rússia) o processo de canonização foi e é menos rigoroso que na Igreja romana; lá até um imperador (Constantino no século IV) foi canonizado. Em Bizâncio não há um processo formal de canonização até muito tarde na sua história. Além disso, no livro Holy Women of the Syrian Orient, mostra que a maioria das canonizações no Oriente eram concebidas para homens e de classe dominante. Além das fontes primordiais, que são as narrativas de santos, existem também as fontes auxiliares, que para o estudo da vida dos santos são encontradas nas inscrições, dentre as quais os epitáfios antigos têm valor especial, nos registros oficiais, nas coleções de cartas, nos panegíricos antigos lidos nos dias de festa de cada santo e nas obras de cronistas e historiadores. È preciso ter em vista que entre os inúmeros relatos, muitos foram escritos após se ter perdido toda memória da história verdadeira e revelam-se completamente fictícios; outros surgem de uma combinação de história e lenda, cujos distintos componentes são dificilmente deslindados (ATTWATER, 1991, p.10-11). 2
Para o presente estudo, o que pode ser considerado como fonte primária é constituído, na verdade, por referências secundárias, que são as vidas dos santos, muitas vezes redigidas posteriormente ao tempo de vida dos mesmos. Nossas atividades serão realizadas através de consultas a relatos de vidas de santos, predominantemente no Oriente, embora não perdendo de vista o Ocidente. Tecnicamente trata-se, como já dissemos de fontes secundárias. Mas são essas as fontes essenciais para nosso objeto de estudo. Tais relatos, originalmente em língua grega, siríaca ou copta (Egito), vêm sendo alvo de traduções para o inglês, o francês, o italiano, ou o espanhol (conforme bibliografia). É de se registrar a importância de tais traduções devido às enormes dificuldades relativas ao conhecimento das línguas originais, dificuldades essas enfatizadas pelos próprios tradutores. Lembrando que, os hagiógrafos dos primeiros tempos, interessados apenas nos aspectos diretamente espirituais e edificantes da vida dos santos, faziam da biografia uma simples lista de milagres, muitas vezes fantásticos. Na hagiografia dos primeiros tempos o fato histórico e o grau de autenticidade eram elementos raríssimos. Apesar do objetivo do estudo da vida de santos tocar por vezes a verdade, durante séculos os objetivos principais das obras de vida dos santos foram a instrução, o aperfeiçoamento, a gratificação dos leitores e a glorificação do herói dos relatos. Em épocas recentes, tornou-se aceito que a biografia de um santo deve fornecer o verdadeiro registro de uma vida individual e que para atingir esse propósito, deve-se fazer uso dos métodos e das descobertas do estudo crítico dos testemunhos e também das ações daquele a que se quer canonizar. Mas vale salientar que apesar do seu aspecto maravilhoso, as narrativas podem constituir importantes instrumentos de trabalho, ao fornecer indiretamente informações preciosas para o estudo do social, do político, ou mesmo do econômico. O Oriente cristão foi escolhido para estudo por vários motivos: primeiramente pelo fato de ainda não ter sido estudado em nosso país; em segundo lugar o fato de que é lá que surge o fenômeno histórico do santo nos primeiros séculos do Cristianismo, assim como é lá que tem origem um outro fenômeno interligado que é o monaquismo; também devemos registrar o fato de lá terem florescido inúmeras divergências acerca da questão fundamental da religião cristã, qual seja: como estabelecer consenso acerca da natureza de um Deus que foi também homem? A relação desse ponto com a divindade se dá precisamente pelo fato de o santo tentar superar sua circunstância inevitável de ser apenas uma daquelas duas naturezas, a humana. É aí que surge o papel do santo, da necessidade sincera de superação das misérias inerentes à condição humana e carnal? Se pensarmos na intensa política de beatificações do papa atual (João Paulo II), não parece haver muita razão para dúvidas: vida material cada vez mais difícil e multiplicação de igrejas refletindo fortes necessidades de conforto espiritual. Toda época de crises produz movimentos de misticismo, sendo precisamente essa a situação na qual se insere o surgimento de eremitas, anacoretas e santos nos primeiros séculos da Igreja cristã, a qual progressivamente adere ao poder temporal (que nada tinha de altruísmos) ao longo do século IV de nossa era. Em nossos dias esse fenômeno se manifesta de maneira flagrante na enorme proliferação de igrejas (evangélicas e outras), além de necessidades espirituais preenchidas por tradições vindas do Oriente e que podem também adquirir um caráter simultaneamente espiritual e medicinal (vide a milenar acupuntura chinesa). 3
Portanto, acreditamos que a justificativa maior do nosso objeto de estudo é sua inegável atualidade tanto no que diz respeito ao prestígio de que os santos desfrutam no dia a dia da vida da sociedade diante dos tempos difíceis que sempre se encontram presentes. Diante do que foi exposto podemos enumerar o que se pretende desenvolver nesse trabalho: explicar o que é o santo ou a santa; mostrar as circunstâncias nas quais nascem esses dois fenômenos concomitantes, a santidade e o culto aos santos (a figura do santo e o desenvolvimento do seu culto); estabelecer uma comparação entre o fenômeno santo no Ocidente e no Oriente; demonstrar o significado da santidade e do culto ao santo na vida de uma Igreja-Estado como a cristã no Oriente (Igreja ortodoxa); explicar como se desenvolvem as muito íntimas relações, no Cristianismo, entre o santo e sua imagem na arte; estudar os mecanismos referentes à importância dos santos no Oriente ortodoxo (Grécia e Rússia); verificar o prolongamento da religiosidade bizantina fundada na Rússia no hesicasmo, na Idade Moderna, nos dias atuais; como objetivo maior: ilustrar a importância do estudo das vidas de santos para um maior conhecimento do social, do político, e/ou do econômico. Tentar responder à questão inicial: o por que da necessidade da Igreja cristã instituir um número tão grande de santos. 4
5 Bibliografia ATTWATER, Donald. Dicionário de Santos. 2.Ed. São Paulo: Art Editora Ltda, 1991. BROCK, Sebastian P., HARVEY, Susan Ashbrook. Holy Women of the Syrian Orient. Upted edition. London. BROWNING, Robert. The Greek World: Classical, Bizantine and Modern. London: Thomas e Hudson ltd, 1985. BROWN,Peter. Authority and Sacred: Aspects of the Christianisation of the Roman World. Cambrige University Press,1995. COHN, Norman. Na Senda do Milênio: Milenaristas revolucionários e anarquistas misticos da Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, 1970. ENCICLOPÉDIA Universal Ilustrada Europeu-Americana. Madrid: Espasa-Calpe, S., 1927. tomo LIV, p.356-357. LOID, Enzo. Os Santos do Calendário Romano. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1992. STE. CROIX, G.E.M.. De. The Class Struggle in the Ancient Greek World from the Arcaic the Arab Conquest. London: Duckworth, 1998, p.1-27.
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