Educação, alteridade e respeito à dignidade humana do negro na abordagem policial

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Transcrição:

CURSO EDUCAÇÃO, RELAÇÕES RACIAIS E DIREITOS HUMANOS AIRTON EDNO RIBEIRO Educação, alteridade e respeito à dignidade humana do negro na abordagem policial SÃO PAULO 2012

O cidadão que ingressa na Polícia Militar do Estado de São Paulo, desde o primeiro momento, já é designado policial militar, mas há a necessidade de adaptação à vida militar e à nova profissão policial que exercerá, e aí entra o papel das escolas policiais-militares, que é de oferecer formas de ajustes do homem à sua nova vida, para se tornar cidadão militar e policial. Freire reconhece isto, mas critica a forma como acontece essa adaptação, a qual trata o homem como depósito de informações: Não é de se estranhar, pois, que nesta visão bancária da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos. (FREIRE, 2006, p. 68) Vale lembrar que esse processo de educação bancária foi imposto às polícias militares do Brasil pelo regime autoritário de 1964, que controlou tudo que era ensinado nas escolas até o ano de 1988, daí o caráter militarizado das polícias brasileiras, criticado tanto por civis: É preciso repensar toda a organização das polícias, a questão da desmilitarização da Polícia Militar para que esse militar seja um servidor público com responsabilidade social. Como por policiais militares: Calcado em princípios militares, a conduta da PM, em certas ações e em certas regiões, mais se assemelha à ação de uma tropa de ocupação em área de conflito que de corporação voltada para o bem comum da sociedade. A libertação autêntica é a humanização em processo (FREIRE, 2006, p. 77), por isso, se pretendemos que os policiais militares se libertem, não será possível mantê-los alienados. A educação bancária não se coaduna com esse ideal de libertação; a educação problematizadora, sim. Esta traz em seu bojo a superação e afirma a dialogicidade, que tanto faz falta na relação policial-cidadão, conforme afirmam os próprios policiais militares. Aliás, não é somente na relação policial-cidadão, na relação entre policiais também há problemas na dialogicidade. Como é possível que tenhamos nas ruas de

São Paulo, patrulheiros com sentimentos de opressão própria, prontos para enfrentar o cidadão e nele descontar sua frustração, como neste depoimento? [...] meus problemas se iniciam ao retornar para a unidade após um turno de serviço, antes trocar tiros com um marginal a tentar dialogar com meus superiores. Além de Freire, as teorias de Dussel caracterizam muito bem este anseio de convivência dialógica, por isso também é autor-referência para esta discussão, especialmente por se tratar de um latino que retrata o pensamento da nossa realidade periférica e questiona a formação do cidadão. É Dussel quem afirma que, na maioria das vezes, no processo de formação, o professor exerce a dominação pedagógica sem nenhuma consciência de culpa. A ingenuidade, a acriticidade, a consciência ideológica fazem com que ele aja com a melhor das intenções (s.d., p. 223). Transferindo esta crítica para o ensino da abordagem policial, há reprodução do que Dussel chama de ontologia pedagógica da dominação, a qual necessita de uma anti-pedagogia do sistema. A ontologia pedagógica é dominação porque o filho-discípulo é considerado como um ente no qual se deve depositar conhecimentos, atitudes; o Mesmo é o mestre ou preceptor. [...]. Neste caso, o filho-discípulo é o educável: o educado é o fruto, efeito da causalidade educadora.[...] O pro-duto (o conduzido diante da vista ou da razão que avalia o resultado), é um adulto formado, informado, constituído segundo o fundamento ou pro-jeto pedagógico: o Mesmo que o pai, o mestre, o sistema já é. (s.d., p. 185). Também na filosofia de Dussel nos deparamos com a questão da exploração sofrida pela periferia. Isto tudo acontece quando o Mesmo fecha-se em si, torna-se autossuficiente, melhor, etnocêntrico e não aceita o Outro, a alteridade; não aceita o diferente. Este, se aceito, poderia constituir uma ameaça para o mesmo. O outro quase nem é percebido. Contra a lógica que não aceita a exterioridade, Dussel propõe a analética, isto é, tenta organizar um discurso a partir da liberdade do outro; nesta lógica, o outro se apresenta como alteridade quando irrompe com o estranho, o diferente, o distinto, o

pobre, o oprimido, aquele que está à beira do caminho, fora do sistema, e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça. A analética tem origem no outro. A gravidade na relação social é ver o outro revestido da impessoalidade do inimigo ou do estranho ou do inferior, então não há problema se o outro estiver sendo exterminado... Este outro está fora da totalidade; não acrescenta e nem diminui à totalidade. Não pode ser o que acontece no caso do negro na relação com a polícia? Este mal não aparece de uma hora para outra, mas é transmitido de geração em geração, e a prática histórica ganha característica de lei. A libertação constitui-se num novo projeto histórico que aposta na liberdade de Outro, dá ao oprimido a possibilidade de ser livre, tentando superar a dominação a que sempre foi submetido. Façamos uma analogia com a relação do negro com a polícia e aí reforçamos a contribuição de Dussel no nosso intuito, no novo projeto educacional policialmilitar. Aliás, não é coincidência que as palavras mestre, discípulo, preceptor, conduzido, formado e informado sejam muito repetidas nessas escolas policiaismilitares, principalmente na de formação de oficiais. O respeito à dignidade do negro no relacionamento com a Polícia Militar não existirá se não houver uma educação humanizante, dialógica e conscientizadora. Há necessidade da re-construção do modo de ensino da abordagem nas escolas policiais. Há necessidade de se reconhecer o Outro. Estas afirmações constituem partes das falas tanto dos representantes da comunidade negra como de policiais. Eis uma delas: Há necessidade de alteração cultural, as disciplinas dos cursos devem respeitar a transversalidade e a transdisciplinaridade, pois a formação do profissional e sua conscientização são tarefas da universalidade curricular, sendo isto a matiz do raciocínio pedagógico. A docência, responsável pelo caminhar diário da formação e informação dos alunos, deve ser intelectual e cientificamente preparada a tal ministério de transformação, já que são formadores (nada desprezíveis) de opinião e ideário.

Uma vez admitida a diferenciação de tratamento policial à comunidade negra, os cursos devem se pautar por um necessário dinamismo em sua metodologia escolar, oriundos de resultados técnicos e científicos balizados em pesquisas sociais e na coleta de dados não-formalizados, advindos da colheita de relatos pessoais dos mais diversos segmentos sociais, inclusive da própria PMESP. Reconhecer a desumanização do processo de abordagem policial contra negros representa o primeiro passo para a humanização desse processo, reconhecimento este que deve ser feito espontaneamente por parte dos órgãos policiais, em especial, a Polícia Militar paulista. Conhecer esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir desta dolorosa constatação que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade a de sua humanização. (FREIRE, 2006, p. 32) A conscientização está baseada na relação consciência-mundo e implica transformar o mundo, é inserção crítica na História e exige que os sujeitos criem a própria existência com aquilo que o mundo lhes dispõe. A conscientização exige que ultrapassemos a esfera da espontaneidade, que substituamos a consciência ingênua das coisas pela consciência crítica. (FIORI, 1986) Freire (1987) diz que a consciência do homem pode evoluir em diferentes níveis. Na consciência transitivo-crítica o homem cria e recria suas ações, é sujeito, conhece a causalidade dos fenômenos sociais, assimila criticamente a realidade e tem consciência da historicidade de suas ações. É a consciência transitivo-crítica que possibilita a construção da autonomia. É essa consciência que deve ter o policial militar para não incorrer em abusos contra as chamadas minorias desfavorecidas. Não pode o ensino policial-militar impedir ou ignorar a participação comum, para não incorrer na simples transmissão dos valores dominantes, que, segundo Fiori, não dominam por sua validez, mas, isto sim, pelo poder dos interesses que, simultaneamente, ocultam e manifestam. E estes interesses excluem parte da sociedade de ser." (FIORI, 1986, p. 8) É pelo distanciamento/aproximação que o mundo é problematizado, decodificado, que os seres humanos se descobrem instauradores do próprio

mundo, descobrem que não apenas vivem, também existem. A consciência do mundo e consciência de si crescem juntas. Uma cultura alienada e alienante não se desaliena, pois, tão só pelo esforço exclusivo de um saber crítico. Consciência crítica é consciência histórica. O saber é solidário com todo o processo que o gerou e de que ele deve ser a mais lúcida expressão de consciência histórica (FIORI, 1986, p. 8). Não há um mundo para cada consciência, elas se desenvolvem em um mundo comum a elas, se desenvolvem essencialmente comunicantes, por isso se comunicam. A intersubjetividade das consciências se dá junto com a mundaneidade e a subjetividade. O sujeito se constitui em sua subjetividade pela consciência do mundo e do outro. E o diálogo é o próprio movimento constitutivo da consciência, que é consciência do mundo. Ao objetivar os negros, a polícia os historiciza, os humaniza, eles passam a fazer parte do mundo da consciência, que é uma elaboração humana. Assim, os negros passam a ser projeto humano, passam a merecer o respeito da instituição. É isso que desejamos. Referências: DUSSEL, Enrique D. A pedagógica latino-americana (a Antropológica II). In: DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da Libertação Latino Americana III: Erótica e Pedagógica. São Paulo: Loyola; Piracicaba: UNIMEP, [s.d.], p. 153-281.. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. 2. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002. FIORI, Ernani Maria. Conscientização e educação. Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS. 11(1): 3-10. jan.-jun., 1986. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006a.. Pedagogia do Oprimido. 44. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006b. RIBEIRO, Airton Edno. A Relação da Polícia Militar Paulista com a Comunidade Negra e o Respeito à Dignidade Humana: A Questão da Abordagem Policial. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) - Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos/SP, 2009.