Diagnóstico precoce da surdez infantil e estratégias terapêuticas

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Transcrição:

96 Jornal 0021-7557/95/71-02/96 de Pediatria - Vol. 71, Nº2, 1995 Jornal de Pediatria Copyright 1995 by Sociedade Brasileira de Pediatria RELATO DE CASO Diagnóstico precoce da surdez infantil e estratégias terapêuticas Early diagnosis of childhood deafness and therapeutic workup Luiz C. A. Souza * Resumo O objetivo deste artigo é ressaltar a importância da audição como elemento fundamental da comunicação humana, da identificação do grupo de risco para as deficiências auditivas, e do papel dos potenciais evocados auditivos de tronco cerebral (BERA) como método de detecção precoce das perdas auditivas infantis. A detecção precoce é essencial para iniciar a intervenção médica e educacional, que, por sua vez, é indispensável à otimização do desenvolvimento da comunicação e das habilidades sociais da criança. O autor apresenta um caso de surdez diagnosticado no primeiro dia de vida. J. pediatr. (Rio J.). 1995; 71(2):96-100: deficiência auditiva na infância, potenciais evocados auditivos de tronco cerebral, triagem audiológica no berçário, fatores de alto risco para a surdez. Abstract The aim of this paper is to emphasize the importance of hearing as the main component of human communication, the identification of the risk group for hearing deficiencies and the role of brainstem evoked auditory potentials as an early detection method, which is essential for starting both medical and educational intervention in order to optimize the child s communication development and social abilities. The author presents a case report of a severe hearing loss patient whose diagnosis was done on his first day of life. J. pediatr. (Rio J.). 1995; 71(2):96-100: childhood hearing loss, brainstem auditory evoked potentials, neonatal audiologic screening, high risk factors for hearing loss. Introdução A comunicação oral distingue o homem dos outros seres viventes e é obtida por meio de uma corrente de aquisições, cujo elo mais importante é a audição. É através do sentido da audição que o ser humano adquire linguagem e se comunica com seus semelhantes. A surdez, definida como a perda ou diminuição considerável do sentido da audição, é o principal distúrbio da comunicação, concorrendo com 60% dos casos 1. A surdez é um complexo infortúnio, pois representa a perda do estímulo mais vital - o som da voz humana, que veicula a linguagem, agita os pensamentos e nos mantêm na companhia intelectual do homem. * Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ex-Residente do Depto. de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Univ. de São Paulo. Ex-Fellow do Depto. de Otorrionaringologia da Universidade de Minnesota. Presidente da Fundação Paparella de Otorrinolaringologia, Ribeirão Preto, SP. Médico do Serviço de Otorrinolaringologia do Instituto Santa Lydia e da Clínica Paparella de Ribeirão Preto, SP. A audição é tão importante para a educação normal e o desenvolvimento global da criança que sua falta pode ser devastadora. Ela é necessária para a aquisição da linguagem e da fala, para o reconhecimento dos sons para a identificação dos objetos e eventos e para a interiorização de conceitos. Possibilita ao homem abstrair-se, viajar no pensamento 2. Através da imitação de modelos, pessoas que rodeiam as crianças, palavras e sentenças são formadas, idéias e sentimentos são expressados. Identificação do grupo de risco para as deficiências auditivas (D.A.) A deficiência auditiva durante a infância sempre resulta em déficits na recepção e expressão da linguagem, que se torna comprometedor no desempenho das funções cognitivas, emocionais, sociais e comunicativas da criança. Nos últimos anos, tem havido um crescente interesse na identificação e educação precoce dos deficientes auditivos. Em 1990, a Joint Commitee on Infant Hearing 3, junta composta por organizações norte americanas (American Speech language Hearing Association - ASHA; American 96

Diagnóstico precoce da surdez infantil... - Souza, LCA Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº2, 1995 97 Academy of Otolaryngology; American Academy of Pediatrics) preocupada em priorizar, a nível nacional, uma responsável abordagem do deficiente auditivo, propôs o desenvolvimento de um programa de triagem em recémnascidos, que consistia na seleção de um protocolo de identificação precoce (figura 1) e na definição de fatores de risco para as deficiências auditivas (figura 2), que motivariam uma cuidadosa avaliação audiológica. Sem qualquer fator de risco Informação e educação dos pais ou responsáveis sobre desenvolvimento auditivo e linguagem Alta e Acompanhamento Todos os Recém-Nascidos Fatores de risco para D.A. Normal Pelo menos 1 fator de risco Triagem Audiológica (BERA) Alterado Reavaliação Programa de Habilitação Figura 1 - Protocolo de identificação das deficiências auditivas Em se tratando de crianças maiores (29 dias a 2 anos), o comitê americano propunha a observação de outros critérios de risco, além daqueles mencionados na figura 2, que serão importantes na identificação das D.A.: - suspeita de alterações no comportamento auditivo da criança - não responde aos estímulos sonoros; - atraso no desenvolvimento da fala e linguagem - crianças que não articulam quaisquer palavras com significado de comunicação até o final do segundo ano de vida; - traumatismo crânio-encefálico com fraturas dos ossos temporais; longa exposição a ruídos; - doenças neurodegenerativas (por ex.: Leucodistrofias); - Otite Média Aguda de repetição e Otite Média com Efusão persistente. Após minuciosa análise da literatura sobre audição na infância, incluindo resultado de estudos retrospectivos, e da observação de dados estatísticos expressivos da ASHA (figura 3), o comitê americano concluiu que todos os recémnascidos (RN) do grupo de risco, ou seja, aqueles com pelo menos um fator de risco para as D.A., deveriam ser submetidos à triagem audiológica através do BERA (Audiometria de respostas evocadas de tronco cerebral). BERA - o exame computadorizado da audição A neurofisiologia do sistema auditivo e seus meios de avaliação eram de conhecimento restrito aos laboratórios de pesquisa em audiologia até há 20 anos. Com a evolução dos equipamentos eletrônicos, já foi possível o desenvolvimen- to de sistemas de estimulação, captação, amplificação, computação e registro de atividades neurofisiológicas do sistema auditivo que possibilitaram sua aplicação clínica. Iniciou-se assim um novo e fascinante capítulo dentro da Audiologia: a Eletrofisiologia da Audição (Audiometria de Respostas Elétricas - ERA). A ERA é a denominação genérica dos métodos que permitem a análise dos fenômenos bio-elétricos que ocorrem no sitema auditivo, como resposta a estímulos sonoros, desde o ouvido interno até a córtex cerebral. Estas respostas (potenciais evocados) são estudadas em todos os aspectos, permitindo uma avaliação objetiva não somente da função como da integridade fisiológica das vias auditivas. Dentre os métodos de audiometria de respostas elétricas, o registro dos potenciais evocados auditivos de tronco cerebral (BERA) é considerado, pela maioria dos autores, de melhor escolha para a avaliação da acuidade auditiva em crianças 4,5,6. Trata-se de método prático, objetivo e não invasivo na investigação audiológica do RN ou qualquer criança não cooperativa, incapaz de ser submetida a uma audiometria convencional. O BERA proporciona uma estimativa válida e fiel da sensibilidade auditiva periférica destes pequenos pacientes. Os estímulos sonoros utilizados são sinais acústicos (cliks) de curta duração e banda larga, que, próximo aos limiares, contém energia capaz de estimular a coclea na faixa de freqüências da fala humana (2.0 a 4.0 KHz) 7,8. Característica marcante do protocolo proposto pelo comite americano (1990) é a realização da triagem audiológica através do BERA previamente à alta hospitalar, assegurando acesso a todos os RN do grupo de risco para as D.A. Seriam considerados positivos para as D.A. aqueles RN que não apresentassem respostas evocadas por estímulos cliks de intensidades maiores do que 40 dbnhl em um dos ouvidos 9. Estas crianças seriam reavaliadas (BERA, testes Fatores de risco para as deficiências auditivas 1. História familiar de D.A. infantil; 2. Infecções congênitas (rubéola, sífilis, toxoplasmose, citomegalovírus e herpes); 3. Anomalias craniofaciais ou síndromes congênitas; 4. Peso de nascimento menor do que 1.500g; 5. Hiperbilirrubinemia maior do que 20mg/100ml de soro; 6. Medicação ototóxica por mais de 5 dias (Por exemplo: aminoglicosídeos e diuréticos); 7. Meningite Bacteriana / Encefalite viral; 8. Sofrimento neonatal (apgar aos 5 min. de 0 a 3, ausência de respiração espontânea em 10 minutos e hipotonia persistente por 2 horas); 9. Ventilação mecânica por mais de 10 dias; 10. Septicemia neonatal grave. Figura 2 - Fatores de risco para as deficiências auditivas

98 Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº2, 1995 Diagnóstico precoce da surdez infantil... - Souza, LCA A detecção e o tratamento precoces das perdas auditivas vêm se tornando, nos últimos anos, aspectos de grande importância na prática pediátrica. Principalmente por trata-ser de uma privação sensorial, o diagnóstico precoce da surdez infantil é arma imprescincomportamentais aos seis meses, impedanciometria) e encaminhadas aos serviços de intervenção precoce para adequada orientação familiar e programas de habilitação para o bebê deficiente auditivo. Discussão Dados Estatísticos (ASHA) 60% dos casos dos distúrbios da comunicação é representado pelas deficiências auditivas; 1 em 1000 crianças nasce surda; 2% das crianças em idade escolar são portadoras de D.A. que exigiriam o uso de AAS; 10 a 15% das crianças em idade escolar são portadoras de D.A. leves e flutuantes; 7 a 12% de todos recém-nascidos tem pelo menos 1 fator de risco para as D.A.; 2,5 a 5% dos recém-nascidos do grupo de risco são portadores de D.A. moderada a severa; 50 a 75% das D.A. são passíveis de serem diagnosticadas no berçário através da triagem audiológica (BERA). Figura 3 - Dados estatísticos (ASHA) Qualquer grau de privação do sentido da audição na infância poderá acarretar sérios prejuízos na aquisição da fala e da linguagem, afetando sobremaneira o aprendizado e o desenvolvimento social e emocional da criança. Além do mais, habilidade reduzida para ouvir na juventude compromete adversamente o potencial vocacional e econômico da pessoa. Apesar destas graves conseqüências, a média de idade de identificação das D.A. está em torno dos 3 anos nos Estados Unidos da América do Norte (E.U.A.), longe do período crítico para o desenvolvimento da fala e linguagem 10. Na minha experiência em investigação objetiva dos limiares auditivos (BERA) de 1000 crianças, constatou-se média de idade de identificação de 3 a 4 anos, e somente 7% destes pacientes foram examinados ainda no primeiro ano de vida. O ideal seria o diagnóstico das D.A. no berçário ou, no mais tardar, até os 6 meses de idade, quando após o irrestrito consentimento dos pais seria deflagrado um serviço de intervenção precoce, que nos E.U.A.é regulamentado por lei pública (P.L. 99-457 - USA). Este serviço consistiria na formação de um grupo de apoio aos familiares, avaliação da criança por equipe multidisciplinar (otologistas, neuropediatras, fonoaudiólogos, psicólogos, foniatras), adaptação de aparelhos de amplificação sonora, monitorização do status audiológico e o desenvolvimento das habilidades auditivas da criança. Infelizmente o que se observa via de regra é a conduta expectante de médicos, familiares e educadores frente a alterações do comportamento auditivo e a atrasos na aquisi- ção da linguagem das crianças, atribuindo-se tais fatos a inúmeras razões e postergando a investigação da acuidade auditiva destes pacientes. A abordagem precoce dos pais nos possibilita lidar logo cedo com a angústia familiar de possuir um filho deficiente auditivo. Via de regra os pais procuram dissimular frente aos circunstantes a deficiência do filho, propiciando, assim, o desenvolvimento de uma atitude anti-social que certamente mais tarde levará a criança a afastar-se do convívio das pessoas normouvintes. Deste modo cria-se um círculo vicioso, no qual o deficiente revida o ultraje tornando-se praticamente intratável. Quando a ansiedade familiar é dissipada e a criança é logo cedo inserida no meio social não haverá marcas na sua personaliade e teremos a oportunidade de nos deparar com dóceis criaturas. Relato de Caso Trata-se de um caso de Rubéola congênita adquirida no quarto mês de gestação. A mãe, 27 anos, apresentou manifestações clínicas características,e a doença foi comprovada por provas laboratoriais no seguimento pré-natal. O pediatra que recepcionou o recém-nascido, aparentemente uma criança hígida sem quaisquer alterações no exame físico, solicitou a avaliação audiológica que foi realizada através do BERA ainda no primeiro dia de vida. Utilizaram-se o audiômetro de tronco cerebral modelo portátil (GSI 55 ABR Screener-Lucas GSI) e os eletrodos de superfície aplicados sobre a pele na linha de implantação do cabelo e nos lóbulos das orelhas. Não foram registrados potenciais dos nervos cocleares e das vias auditivas de tronco cerebral evocados por cliks de 85 dbnhl de intensidade deflagrados em ambos ouvidos através de plugs de inserção (figura 4a), o que constitui forte indício eletrofisiológico de deficiência auditiva severa nas frequências médias e altas. Compare o traçado isoelétrico deste paciente com um traçado normal do BERA em RN da mesma idade (figura 4b). Os pais foram informados sobre a possibilidade da deficiência auditiva e orientados para trazerem a criança para nova avaliação com 4 meses de idade, que foi realizada na clínica utilizando-se outro equipamento de registro de potenciais evocados, o Multisensory System Amplaid MK- 10, que revelou resultado idêntico ao exame do berçário. Confirmada a deficiência auditiva os pais foram encaminhados para psicoterapia de apoio, e a criança inserida num programa especial de habilitação. Considerações Finais

Diagnóstico precoce da surdez infantil... - Souza, LCA Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº2, 1995 99 Figura 4a - Ausência dos potenciais auditivos (clicks 85dBnHL), sugestivo de D.A. severa Figura 4b - BERA normal (clicks 85dBnHL) dível para o sucesso terapêutico. Além disso, avanços nos métodos de detecção têm propiciado aos especialistas (otologistas, fonoaudiólogos) diagnóstico precoce e objetivo da surdez infantil, não havendo necessidade da colaboração da criança, que, às vezes, é submetida ao BERA sob sedação. A identificação do grupo de risco para as D.A. no berçário ou, no mais tardar, aos 6 meses, a avaliação audiológica através do BERA e a deflagração do serviço de intervenção precoce seria o ideal. Muito embora ainda passassem despercebidas as D.A. obra da loteria genética, infecções congênitas sub-clínicas etc. O esquema proposto pelo comitê americano de 1990, regulamentado por lei pública, constitui-se crivo considerável para as D.A. Obviamente temos nossas prioridades sociais, o que tampouco nos impede de pensar na questão das D.A. Podemos avaliar a resposta aos estímulos sonoros de uma criança utilizando-se um computador mediador de sinais (potenciais evocados) ou através de simples observação comportamental ou pesquisando o reflexo córneo-palpebral batendo palmas atrás do pequeno paciente. O que precisamos é pensar na possibilidade das D.A., seja no período neonatal, frente a presença de um fator de risco, ou mais tardiamente, quando nos deparamos com crianças desatenciosas, com mau desempenho escolar, por- tadoras de dislalias e atrasos na aquisição da linguagem verbal ou com comportamento auditivo suspeito (por exemplo assistir televisão com volume alto). Após quinze anos de experiência no diagnóstico e tratamento precoces das deficiências auditivas infantis, proponho algumas razões para o diagnóstico das D.A. antes dos seis meses de idade: - até a criança chegar ao maternal, quando se intensifica o convívio social, os pais tiveram tempo suficiente para dissipar a ansiedade de possuir um filho deficiente auditivo; - a criança não revida o ultraje (rejeição) e não desenvolve atitudes anti sociais; - o processo de adaptação do aparelho de amplificação sonora é muito mais tranqüilo. Observa-se melhor aceitação da prótese por parte da criança 11 ; - a estimulação auditiva precoce mantém a integridade neurofisiológica das vias auditivas periféricas e centrais, evitando uma degeneração pelo desuso 12 ; - a criança será submetida precocemente à estimulação diferenciada pelos familiares, psicólogos e fonoaudiólogos durante o período crítico para o desenvolvimento da linguagem; - a criança tem chances de desenvolver suas habilidades comunicativas e freqüentar escolas de normouvintes. Somando-se a capacidade de adaptação do ser humano à intervenção precoce da privação sensorial, teremos condições ideais para o desenvolvimento social, educacional e vocacional da criança deficiente auditiva. Agradecimentos Agradecemos a nossa secretária Lucia Maria Peixoto por sua inestimável colaboração na preparação deste artigo. Referências bibliográficas 1. American Speech-Language-Hearing Association Committee on Infant Hearing: Guidelines for audiologic screening of newborn infants who are at risk for hearing impairment. ASHA 1989; 31(3):89-92. 2. Yellin MW. Hearing measurement in children. In: Paparella MM, Shumrick DA, Gluckman JL, Meyerhoff WL.(ed) Otolaryngology, 4ª edition, Saunders 1994 ;951-959. 3. Joint Committee on Infant Hearing 1990: Position Statement. Audiology Today 1991; 3(4):14-17. 4. Diedendorf AO, Renshaw JJ, Cox JB, Teitz PS. Infant Hearing Impairment. ENT Journal 1992; 71(10): 503-507 5. Davis H. Brainstem and other responses in electric response audiometry. Ann Otol 1976; 85:3-14. 6. Klein AJ. Properties of the Brainstem response slow-wave component. I. Latency, amplitude and threshold sensitivity. Arch Otolaryngol 1983; 109:6-12. 7. Coats AC, Martin JL. Human auditory nerve action potentials and brainstem evoked potentials. Arch Otolaryngol 1977; 103:605-622.

100 Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº2, 1995 Diagnóstico precoce da surdez infantil... - Souza, LCA 8. Hyde ML, Riko K, Malizia K. Audiometric accuracy of the click ABR in infant for hearing loss. J Am Acad Audiol 1990; 1:59-66. 9. Turner RG. Recommended guidelines for infant hearing screening: Analysis. ASHA, september 1990; 57-62. 10. NIH Consensus Development Conference: Early identification of hearing impairment in infants and young children. March 1993. 11. Matkin ND. Hearing aids for children. In: Hodgson W, Hearing aid assessment and use in audiologic habilitation. 3ª edition, William & Wilkins, 170-190. 12. Webster D, Webster M. Neonatal sound deprivation effects on brainstem auditory nuclei. Arch Otolaryngol 1976;103:392-392. Endereço para correspondência Rua Bernardino de Campos, 1503 CEP 14015-130 - Ribeirão Preto, SP Fone: (016) 634.4740 - Telefax: (016) 634.4916