A QUESTÃO DE RECURSOS HUMANOS NA CONFERÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA



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A QUESTÃO DE RECURSOS HUMANOS NA CONFERÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA Cristina Fekete, Mestre em Saúde Pública e Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva / Universidade Federal de Minas Gerais INTRODUÇÃO A reorientação dos sistemas de saúde tem exigido um processo amplo de construção social, de revisão na concepção do processo saúde-doença e transformação das práticas sanitárias. As mudanças no campo da saúde no Brasil expressam variadas dimensões decorrentes do avanço do conceito de direito à saúde, da modernização e complexidade das organizações prestadoras desses serviços, das novas possibilidades tecnológicas e das modificações dos padrões demográfico-epidemiológicos. Por esta razão o setor saúde precisa trabalhar próximo aos setores e movimentos que buscam enfrentar e equacionar os problemas do mundo atual, tais como o desenvolvimento humano sustentável, o direito à moradia, os direitos do consumidor e, enfim, as questões referentes à promoção e proteção à saúde, entendidas como produto de um conjunto de fatores relacionados com a qualidade de vida. Os problemas no campo de recursos humanos representam desafios para a consolidação do SUS. No caso da Vigilância Sanitária tais desafios são de grande magnitude e complexidade, na medida em que o desenvolvimento de ações nesta área é muito dependente de sua força de trabalho. Algumas das características acerca do perfil dos trabalhadores de VISA podem ser observadas através da análise dos dados do Levantamento da situação dos serviços de Vigilância Sanitária no Brasil. Neste dimensionamento foram coletadas informações sobre os trabalhadores de VISA nos Estados, nos municípios capitais e nos municípios com mais de 200 mil habitantes. Nos serviços estaduais atuam 3.146 profissionais, distribuídos da seguinte forma: 225 de nível elementar (7%), 1.208 de nível médio ( 37,8%) e 1.713 de nível superior (53,6%). No que se refere à qualificação de profissionais de nível superior, 219 têm curso de Saúde Pública (12,8% dos profissionais de nível superior), 111 têm curso de especialização em VISA (6,5% dos profissionais de nível superior), 53 (3%) são mestres e 4 são doutores (0,2%). A Região Sudeste é a que apresenta maior concentração de profissionais com curso de saúde pública e especialização em VISA. O Estado de São Paulo é o que apresenta maior proporção de profissionais com curso de saúde pública. Quanto aos serviços estaduais, as categorias profissionais mais numerosas são: os farmacêuticos (246 profissionais), os enfermeiros (179 profissionais), os veterinários (199 profissionais), os dentistas (157 profissionais) e os médicos (105 profissionais). Já os profissionais de nível médio que atuam nos serviços estaduais somam 1.208, sendo a maior parte sem formação específica na área da saúde ou de VISA.

Nos serviços dos municípios capitais, o quadro de recursos humanos é composto por 2.340 profissionais, assim distribuídos segundo o nível de escolaridade: nível superior - 1.101 (47%), 945 (40%) de nível médio e 294 (13%) de nível elementar. Nos serviços municipais de VISA atuam 831 (50,5%) profissionais de nível médio, 167 (10,2%) de nível elementar e 646 (39,3%) de nível superior, totalizando um quadro de 1.644 profissionais. Esses dados demonstram que o desenvolvimento das ações em VISA depende da participação e do trabalho de equipes multiprofissionais e com distintos graus de escolaridade. Tal quadro tem implicações para os processos de gestão e preparação de recursos humanos, pois a natureza das ações de Vigilância Sanitária requer a atuação de equipes com enfoque multidisciplinar e com capacidade de desenvolver trabalho intersetorial. Por sua vez, a reorientação das práticas profissionais em VISA deve ter como referência o processo de consolidação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. A ordenação de recursos humanos representa um ponto crítico para o alcance deste objetivo, tendo em vista o fato de que a área se ressente da escassez de profissionais com formação específica e de iniciativas no que se refere à motivação e qualificação de seus quadros. Os processos de formação para nível superior- graduação, pós-graduação-, e para nível médio, são insuficientes quanto aos aspectos mais abrangentes do processo saúde/doença e quanto ao desenvolvimento de competências e habilidades para atuar no manejo de questões econômicas, políticas e sociais, que são desafios constantes no campo da VISA. Há amplo consenso no reconhecimento de que os problemas relativos à qualificação profissional e aos mecanismos de gestão do trabalho são alguns dos fatores que comprometem o alcance dos objetivos do SUS. Neste sentido, o elenco das atribuições e competências institucionais das três esferas governamentais do SUS, no campo de recursos humanos, deve abarcar as responsabilidades adscritas à gestão do trabalho e à promoção da qualificação para o seu desempenho. A regulação do trabalho, a concepção de gestão, a natureza intensiva do trabalho em saúde e as características do processo de trabalho em Vigilância Sanitária são aspectos da política de recursos humanos, como expressão de um processo social complexo que reflete interesses distintos e muitas vezes contraditórios. A identificação desses aspectos permite situar a política de recursos humanos no contexto organizacional e analisar os processos operacionais de gestão. O propósito da Política de Recursos Humanos para a Vigilância Sanitária, subsidiária à Política Nacional de Saúde, suas estratégias e seus programas, constitui-se na promoção do desenvolvimento da força de trabalho do setor, entendendo, como tal, seu planejamento, sua formação e capacitação, gestão, regulação e contínuo aperfeiçoamento, com vistas ao alcance da universalidade, integralidade, eqüidade das ações de saúde e aumento de controle social. Assim sendo, a questão das funções a serem desempenhadas pelas instâncias de gestão do SUS, no campo de recursos humanos, reveste-se da maior prioridade. As reflexões aqui apresentadas visam a oferecer alguns subsídios que contribuam para a discussão do tema, possibilitando contemplar as particularidades da área de Vigilância Sanitária. 2

GESTÃO DO TRABALHO Os modelos tradicionais de planejamento e gestão de recursos humanos não guardam correlação com a complexidade dos problemas existentes. O enfoque normativo da política de pessoal tem como pauta a montagem de um sistema administrativo configurado por uma série de rotinas orientadas exclusivamente para o controle dos trabalhadores. Os instrumentos de planejamento são inadequados para orientar a tomada de decisão, transformando em mera formalidade a elaboração de planos e projetos no campo da gestão do trabalho. O setor saúde representa um importante campo de atuação do Estado, como agente diferenciado de regulação dos fatores que determinam suas características e, no caso da VISA, como principal empregador. As questões relativas à remuneração do trabalho, oferta de oportunidades de emprego, forma de ingresso, distribuição e modalidades dos vínculos contratuais, ao controle do exercício profissional, às vagas educacionais e aos perfis profissionalizantes, além de tantas outras, devem ser objeto de investigação e análise por parte dos dirigentes que atuam no setor. Ao abordar o tema da gestão de recursos humanos no âmbito da saúde, é indispensável considerar as bases conceituais subjacentes às práticas vigentes na administração pública como um todo, e também ter em vista as peculiaridades das organizações de saúde que, no caso do setor público, estão submetidas a injunções políticas ou meramente burocráticas que, em geral, nada têm a ver com suas finalidades. O objeto dos serviços de saúde envolve complexas relações entre diferentes atores: usuários, profissionais, corporações, gestores, dirigentes políticos e segmentos empresariais. Esse argumento leva ao reconhecimento das organizações de saúde como espaços de realização de múltiplos interesses, que não devem reger-se por regras fixas ou rotinas burocráticas. A gestão do trabalho e os mecanismos adotados para sua implementação ocorrem no interior de uma determinada configuração política que, na atualidade, guarda estreita relação com as transformações do trabalho na sociedade globalizada. A nova forma de administração pública tem sido caracterizada pelo termo flexibilidade, implicando a idéia de que é necessário reforçar as possibilidades de tomada de decisões de forma descentralizada, emprestando a todos os atores maior autonomia de ação, a fim de ampliar os espaços de criatividade e ousadia na busca de soluções (Dussault, 1992). Contudo, a gestão no setor público conserva ainda em vigor mecanismos tradicionais e processos rígidos de regulação do trabalho. Tais processos mostram-se ineficazes, tendo em vista os aspectos relacionados com o crescimento do porte e da complexidade das organizações de saúde, não apenas como conseqüência da incorporação tecnológica, mas também em função da evolução dos direitos sociais. Neste cenário, a administração do trabalho enfrenta desafios na busca de seu ordenamento com efetividade e qualidade, segundo os requisitos de interesse social. Na prática, apesar dos avanços do SUS, particularmente quanto à diretriz da descentralização, verificam-se alguns vazios em termos de encaminhamentos e propostas de enfrentamento de aspectos da gestão do trabalho em saúde, e da incorporação/reposição dos recursos humanos, de modo compatível com as transformações do modelo de gestão setorial. 3

A descentralização com controle público, pactuada entre as esferas de governo, com transparência e gradação de responsabilidades entre os três níveis, e com um processo permanente de avaliação de resultados, envolve questões de redistribuição do poder. A expressão concreta, dada por esta dimensão política, situa-se no âmbito das relações que se estabelecem entre os atores que participam do processo de produção e consumo dos serviços de saúde (Lenhardt & Offe,1984). O enfrentamento dessas questões vem requerendo a adoção de práticas de gestão participativa e de flexibilização nas formas de remuneração do trabalho. Com o advento da Gestão de Qualidade, na década de 60, ganhou força a discussão acerca da mudança do processo produtivo, na perspectiva de garantir a satisfação do cliente. A adoção dos pressupostos da qualidade tem implicações no desenvolvimento do modelo gerencial, que passa a ter como suporte os princípios da gestão flexível. Neste sentido a formulação de diretrizes políticas de recursos humanos para a saúde deverá, necessariamente, considerar a participação dos trabalhadores através de suas legítimas representações. Será preciso avançar no estabelecimento e aperfeiçoamento de canais de comunicação e negociação com as entidades corporativas - associações, sindicatos e Conselhos, possibilitando a discussão para formação e ampliação de consensos em torno de pontos de interesse coletivo. O trabalhador de saúde é um agente ativo no processo de produção de serviços. Esta visão supera os enfoques tradicionais da administração do trabalho que o têm na conta de um recurso que se soma a outros recursos físicos, materiais e financeiros para o alcance dos objetivos da produção. Apesar do caráter estratégico atribuído à problemática de recursos humanos, pouco se tem avançado no enfrentamento dos atuais problemas relativos à gestão do trabalho em saúde, que vêm se avolumando e impactando desfavoravelmente na consolidação do SUS. Tal indicativo foi constatado em 1986, quando se realizou a I Conferência Nacional de Recursos Humanos, apontando a necessidade de uma política que regulasse salários, jornada e regime de trabalho, novas bases para a preparação de pessoal da saúde, redução da jornada semanal e melhoria das condições de trabalho (Brasil,1993). Entretanto, essa política de regulação não superou o âmbito das proposições, já que poucas dessas medidas foram implementadas de forma sistemática no País. Tal fato pode ser constatado pela apreciação do documento sobre tipos de vínculo, remuneração e incentivos nas Secretarias Estaduais de Saúde - SES, resultado de um levantamento realizado em 1997 pelo Ministério da Saúde, em parceria com o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde - CONASS - e com a Organização Panamericana de Saúde - OPAS (Brasil, 1997). As informações fornecidas pelas SES permitem constatar a tendência à diversificação dos tipos de vínculo, com a identificação da coexistência de distintas alternativas que variam do Regime Jurídico Único até a terceirização. Tal sobreposição de vínculos vem dificultando o desenvolvimento das ações e das práticas de gestão de recursos humanos na saúde. As formas de incentivos informadas no referido estudo sugerem a utilização de mecanismos de complementação salarial, em decorrência da baixa remuneração praticada pelas SES, não traduzindo uma relação direta entre a concessão do incentivo e a melhoria da qualidade dos serviços prestados. 4

Nas considerações finais do levantamento (Brasil, 1997), os autores apontam que: o quadro atual revela, portanto, uma situação de flexibilização pragmática das modalidades de vínculo e sistemas de remuneração e incentivo, como respostas as demandas do setor em cada Unidade Federada... o estudo não esgota as possibilidades e a necessidade de estudos nesta área, constituindo-se como uma primeira aproximação a problemática da regulação e da gestão de recursos humanos no SUS. Na verdade, o grande desafio no que se refere à gestão do trabalho no SUS é garantir a implementação de políticas de recursos humanos que, respeitados os preceitos constitucionais e legais, permitam a flexibilização sem precarização do trabalho. PREPARAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS Considerando-se que o processo de produção de serviços de saúde é marcado por intensa dependência do trabalho humano, a disponibilidade de recursos humanos adequadamente preparados é fator indissociável da qualidade e do volume da produção de serviços. Esta afirmação é válida tanto para o caso da formação profissional propriamente dita, quanto para os processos de atualização e aperfeiçoamento dos trabalhadores nos serviços (educação continuada), ou ainda de treinamento para o desempenho de funções específicas no interior das organizações. É responsabilidade do gestor promover o desenvolvimento de seus recursos humanos através de processos de formação, capacitação e educação continuada. Para tanto, é fundamental viabilizar a articulação com o setor educacional que deverá contribuir com uma ação formativa crítica, centrada na prática, coerente com as necessidades do serviço. No que se refere ao nível superior, é preciso conferir ênfase especial à terminalidade dos processos de graduação e revisar as prioridades da especialização. Em relação ao nível médio, o setor saúde vem, historicamente, incorporando pessoal sem qualificação específica para atuar nas distintas áreas, incluindo a VISA. Para resolver este problema, vêm sendo criadas, pelos gestores públicos, escolas de formação técnica em saúde, com cursos descentralizados, na perspectiva de garantir a integração ensino-serviço. Não há dúvida de que o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da área Enfermagem PROFAE representa um grande avanço na qualificação de um contingente significativo de trabalhadores da saúde. Contudo, é preciso ampliar os processos de formação profissional em nível médio. Para tanto, é importante identificar os principais problemas relativos à qualificação do pessoal engajado na rede de serviços e às questões referentes à integração ensino-serviço. Qualificação do pessoal engajado na rede de serviços: habilitação formalizada, mas desqualificada para o serviço; políticas e práticas de capacitação de programas verticais, o que fortalece a polarização e a fragmentação do trabalho de saúde; 5

inadequado preparo dos docentes frente às novas exigências educacionais e às necessidades do SUS; utilização de metodologias pedagógicas que não têm, como eixo substantivo, o processo de trabalho; inexistência de programas de capacitação permanente para o pessoal que atua nas atividades meio; multiplicidade de treinamentos e cursos, sem uma coordenação que garanta a implementação de um projeto global de desenvolvimento de recursos humanos; dificuldades na viabilização de financiamento específico para as atividades de preparação de pessoal. Integração ensino-serviço: inexistência de metodologia adequada para efetiva integração; dificuldade no estabelecimento de relação jurídico-normativa entre as instituições de ensino e o serviço; desqualificação dos serviços, dificultando o processo de ensino, e pouco investimento na qualificação dos docentes para atuação nos serviços; compartimentalização do ensino; projeto pedagógico pautado no espontaneidade e no empirismo. PROPOSTAS DE AÇÃO/TÓPICOS PARA DISCUSSÃO Tendo em vista os desafios no campo de recursos humanos, a ANVISA instituiu um Comitê de Políticas de Recursos Humanos para Vigilância Sanitária COPRH, visando a racionalizar e imprimir direcionalidade às iniciativas das diferentes áreas. O Comitê, após amplo processo de discussão, identificou problemas e definiu os seguintes projetos prioritários: Formação e Capacitação continuada para a ANVISA tem por objetivo formar e capacitar os profissionais da ANVISA no campo geral de VISA e nas áreas específicas. Apoio ao Desenvolvimento de Recursos Humanos dos Estados e municípios objetiva fortalecer as VISAs estaduais e municipais na institucionalização do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. 6

Desenvolvimento de Parcerias e Mobilização Social para as ações de VISA busca ampliar o conhecimento sobre a VISA na sociedade e garantir o seu reconhecimento na área de saúde, como instância de promoção, proteção e regulação. Fomento à Pesquisa e Difusão do Conhecimento em Vigilância Sanitária relacionado à produção e utilização de novos conhecimentos tecnológicos. Desenvolvimento da Gestão de Recursos Humanos da ANVISA visa a contribuir para melhorar a gestão e preparação de pessoal para o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Os seguintes tópicos deverão compor a agenda de discussão em torno da temática de recursos humanos a ser aplicada ao campo da Vigilância Sanitária, objetivando garantir a adoção de estratégias para o enfrentamento dos problemas anteriormente apontados e para a implementação dos projetos prioritários definidos pelo COPRH: - identificar mecanismos e metodologias de preparação de pessoal para atuar em Vigilância Sanitária, tanto no âmbito da ANVISA quanto das secretarias estaduais e municipais; - estabelecer parcerias entre os Ministérios da Educação e da Saúde, e identificar centros de cooperação de desenvolvimento de recursos humanos em VISA; - desenvolver mecanismos que permitam a negociação permanente com as representações dos trabalhadores; - organizar e manter um sistema de informação sobre recursos humanos em VISA e fomentar a produção de conhecimento na área; - cumprir, em articulação com as demais esferas de governo e do setor privado, o item III do art. 200 da Constituição: ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde ; - garantir educação continuada e especialização de recursos humanos que atendam às necessidades da VISA; - elaborar e implementar um plano de desenvolvimento de recursos humanos. Os pontos aqui listados objetivam, evidentemente, à sistematização de uma ampla gama de questões, cujo equacionamento terá de ser enfrentado pela ANVISA e pelos Estados e municípios. Cada um dos tópicos anteriores deverá ser desdobrado em diversos itens, cujo detalhamento e ênfase dependerão das peculiaridades de cada realidade. Cabe ainda destacar que a resolução do vasto elenco de problemas referentes a cada um dos tópicos mencionados deverá contemplar os seguintes pressupostos: - adesão e compromisso com os princípios e diretrizes do SUS, quais sejam: universalidade, equidade, descentralização, integralidade e participação popular. - adesão dos profissionais ao modelo de organização do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. - observância aos preceitos constitucionais e legais referentes à formação e regulação de recursos humanos para a saúde. 7

Finalmente, cumpre considerar que os dispositivos legais, a Emenda Constitucional nº. 19 e a Lei nº 8.142/90 apontam responsabilidades e competências no que se refere à regulação dos recursos humanos em saúde, mas são ainda incompletos e requerem melhor discussão e regulamentação, para que possam favorecer a adequada formação profissional, assegurar direitos trabalhistas e garantir instrumentos flexíveis de gestão do trabalho em saúde. 8

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