SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA DUPLA-REFERÊNCIA EM ÉMILE BENVENISTE

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Transcrição:

SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA DUPLA-REFERÊNCIA EM ÉMILE BENVENISTE Stefania Montes Henriques 1 Introdução A Teoria da Enunciação, na abordagem benvenistiana, propõe-se a trabalhar as marcas da subjetividade presentes na realização do discurso. Segundo muitos linguistas, essa corrente parte de conceitos teóricos saussurianos, como língua e fala, além de atribuir grande importância à ordem própria da língua. Entretanto, as correntes enunciativas muitas vezes modificam ou contrariam as noções saussurianas, permanecendo filiadas às mesmas, na medida em que dão continuidade ao pensamento de Saussure, reconstruindo-o. Acreditamos que nesse último caso Émile Benveniste pode ser enquadrado, já que segundo Flores e Barbisan (2009), ele considera a língua enquanto sistema de signos e, com o desenvolvimento de sua teoria, concebe-a como um instrumento de comunicação. Segue, assim, um caminho distinto daquele sugerido por Saussure: parte da análise formal da língua, mas não se prende a ela, já que, tendo como foco o sentido, leva sua teoria ao encontro do discurso. Para Benveniste (2005), a língua não somente é como também significa: e essa característica principal explica todas as suas outras funções. (cf. BENVENISTE, 2005, p. 222). Em Problemas de Lingüística Geral I, especificamente no artigo intitulado O Aparelho Formal da Enunciação, esse autor considera a língua como o instrumento do qual o locutor se serve para produzir um discurso, ou seja, o locutor apropria-se da língua para estabelecer seu discurso, marcando, consequentemente, o interlocutor, o espaço e o tempo. Essa marcação dialógica, temporal e espacial dá-se na utilização de índices específicos denominados indicadores de subjetividade ou dêiticos, que têm a função de apontar com o dedo e só existem na e pela enunciação. Os dêiticos, nesse ponto de vista, não possuem uma referência estável tendo em vista que cada enunciação é única. Mesmo que algo ou alguém seja sempre indicado pelo uso dessa 1 Discente do Curso de Letras Português/Francês e Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/FAPEMIG) do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, temontess@gmail.com

categoria e, consequentemente, esse indicador tenha sempre uma referência, ela será instável porque depende da situação da enunciação. Assim, se proferirmos a sentença Eu bati meu pé aqui, as referências dos pronomes eu e aqui são, respectivamente, eu e o local no qual eu bati o pé, que poderia ser uma cadeira por exemplo. Se, no entanto, João proferir a mesma sentença no momento em que bate o pé em uma pedra, esses pronomes ainda teriam referências, entretanto, elas seriam distintas daquelas evocadas pela sentença que eu proferi. Podemos afirmar que, no caso dos dêiticos, a noção de referência não dispõe de uma natureza ontológica, devido à sua dependência do processo de enunciação. Em contrapartida, a própria noção de referência é problemática. O ato de nomear ou apontar com o dedo um objeto por meio da utilização de signos, ainda hoje não foi, de fato, sistematizada de maneira coerente. Saussure, por exemplo, excluiu toda e qualquer positividade (incluindo a referência) ao afirmar que o sistema de signos possui uma ordem própria, independente de qualquer outra ordem que lhe seja exterior. Entretanto, podemos afirmar que em Benveniste não só a relação entre linguagem e mundo é defendida, como também ela ocorreria de duas maneiras distintas. No decorrer desse artigo apresentaremos exemplos de que essa interpretação da teoria benvenistiana é coerente e que se fundamenta em duas categorias de signos principais: os dêiticos e os nomes próprios Dessa forma, a questão que norteará nossas considerações será a seguinte: na teoria de Benveniste, existem outras categorias de signos que, ao contrário dos dêiticos, possuem uma referência estável? Se a resposta a essa pergunta for afirmativa, seria possível, então, conceber uma noção de dupla referência? Tentaremos responder essas questões com base nas premissas benvenistianas apresentadas na obra Problemas de Linguística Geral I, especificamente nos artigos Natureza do Signo Linguístico (1939), Aparelho formal da enunciação (1970), Estrutura da língua e estrutura da sociedade (1968) e A forma e o sentido na linguagem (1966). Saussure e Benveniste: a questão do arbitrário linguístico Muito já foi discutido sobre a filiação de Benveniste à Saussure. Esse tópico, entretanto, faz-se necessário por dois motivos: primeiro, para expor nossa opinião quanto à essa filiação e, segundo, para discutir o ponto de tensão no encontro dos dois autores, que é a questão do arbitrário do signo.

Quanto à questão da filiação, partilhamos da mesma opinião de Claudine Normand (2006), no artigo intitulado Saussure-Benveniste, no qual ela explicita que não há filiação e sim um encontro teórico, mesmo que, em alguns pontos, não houvesse concordância de ambas as partes: Das diferenças impostas ou escolhidas, Benveniste, evidentemente, não dirá nada; o encontro dos dois só diz respeito à inteligência e ao amor, que lhes é comum, pela língua. No entanto, sobre o mesmo assunto, seria correto afirmar que houve acordo? E ainda, sobre o princípio maior da arbitrariedade : Benveniste nunca modificou a crítica feita em 1939 e conservada na antologia de 1966, uma vez que todos os artigos são posteriores à 1945: a ligação, dizia, não é só arbitrária do ponto de vista de Sirius, entre a coisa e o nome; entre o significante e o significado; é, ao contrário, para todo locutor, necessária. (NORMAND, 2006, p. 18) É, portanto, um encontro teórico entre Saussure e Benveniste que faz com que alguns elementos cunhados pelo primeiro sejam utilizados pelo segundo, sem obedecer necessariamente ao que Saussure colocaria como função da linguística. A forma com que Benveniste desenvolve os conceitos de língua, fala e arbitrariedade de Saussure, abarca aspectos que antes foram rejeitados, como o sujeito e a referência. No artigo Natureza do signo linguístico publicado em 1939, por exemplo, a noção saussureana colocada em questão é a arbitrariedade. Se relembrarmos esse princípio, apresentado no Curso de Linguística Geral 2 como o princípio primeiro do sistema linguístico, veremos que ele é colocado como interno ao signo: O laço que une significante e significado é arbitrário, ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo lingüístico é arbitrário. (SAUSSURE, 1979, p. 81). O que Benveniste propõe no artigo supracitado é que essa relação arbitrária seja deslocada para a ligação entre o signo e o objeto extra-linguístico, tendo em vista que, segundo ele, Saussure faz referência ao objeto físico inconscientemente. Como foi dito por Normand (2007), esse artigo foi conservado na antologia de 1966, apesar de ter sido escrito em um período anterior, o que, talvez, possamos considerar como uma tentativa, de Benveniste, de mostrar-se seguro com a crítica feita e com a argumentação desenvolvida. 2 Utilizaremos a denominação CLG no percurso desse artigo.

Há duas consequências no deslocamento do princípio da arbitrariedade: a primeira é que ao afirmar que a relação entre signo e objeto é arbitrária, Benveniste pressupõe a influência desse objeto no funcionamento linguístico; e a segunda consiste no fato de que a relação interna ao signo, entre significante e significado torna-se necessária esses dois termos são impressos em nossa mente concomitantemente, tornando-se indissociáveis. Assim, Não é entre o significante e o significado que a relação ao mesmo tempo se modifica e permanece imutável, é entre o signo e o objeto; é, em outras palavras, a motivação objetiva da designação, submetida, como tal, à ação de diversos fatores históricos. O que Saussure demonstra permanece verdadeiro, mas a respeito da significação, não do signo. (BENVENISTE, 2005, p.58) Segundo Normand (2007), é nesse momento que Benveniste separa-se de Saussure, tendo em vista que as considerações sobre o deslocamento do arbitrário insinuam uma preocupação com a relação entre o signo e o mundo, e, consequentemente, um afastamento dos postulados saussurianos: Aqui Benveniste separa-se, sem o declarar, de Saussure. Ele nos diz que se trata somente de ir além no estudo da significação; na realidade, pode-se pensar que ele vai a outro lugar: retorno a uma fenomenologia que um estruturalismo metodológico não tinha recoberto, abertura para descrições integrando traços da subjetividade nos enunciados e sua presença ativa em toda enunciação. Nunca abandonar a língua, na sua matéria significante, em suas estruturas comuns, no seu aparelho semiótico, mas conciliar esse gesto saussuriano com a singularidade subjetiva, com a comunicação sempre situada, com o acontecimento inebriante que é todo enunciado. Analisar o semântico : eis a aposta de Benveniste. (NORMAND, ibidem, p. 19). Podemos afirmar que é dessa maneira que Benveniste consegue reintroduzir, harmoniosamente, fatores que antes foram excluídos pelo corte epistemológico saussuriano: o sujeito e a referência. Levando em consideração esses aspectos, explicitaremos, a partir de agora, o quadro conceitual benvenistiano que dá lugar à referência no funcionamento linguístico, com a análise das premissas presentes nos artigos citados em nossa introdução. A enunciação, os dêiticos e a referência

Em Aparelho formal da enunciação, Benveniste tem como objetivo elaborar um quadro formal de realização da enunciação, dando ênfase aos aspectos formais que são mobilizados pelo locutor no momento em que se apropria da língua. Assim, o termo enunciação diz respeito ao ato individual de mobilização da língua: o sujeito coloca a língua em funcionamento, selecionando os caracteres que lhe convém para a expressão de uma idéia. Dessa forma, a enunciação pode ser considerada, enquanto realização individual, como uma forma de apropriação: O locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, de outro. (BENVENISTE, 1989, p. 84). É plausível afirmar que, nas elaborações de Benveniste, o sujeito adquire um novo estatuto 3, tendo em vista que tem a capacidade de modificar a língua, por intermédio da enunciação, utilizando-se de determinados caracteres linguísticos para expressar a relação que mantém com seus interlocutores e a situação de enunciação. Além disso, temos que, segundo o autor, o processo de enunciação deve ser estudado sob três aspectos principais, a saber, 1) a realização vocal da língua, 2) o mecanismo de enunciação e 3) o quadro formal da enunciação. Defenderemos a tese de que, é no terceiro, o quadro formal da enunciação, que a noção de referência aparece de maneira explícita, em concordância com o sujeito que enuncia. O objetivo de Benveniste, ao explicitar esse quadro formal, é esboçar os caracteres formais da enunciação no interior da língua, tendo como prerrogativa a seleção desses caracteres pelo sujeito. Tentaremos esboçar, no interior da língua, os caracteres formais da enunciação a partir da manifestação individual que ela atualiza. Esses caracteres são, uns necessários e permanentes, os outros incidentais e ligados à particularidade do idioma escolhido. (BENVENISTE, ibidem, p. 83) Para esboçar os caracteres formais, o autor considera o próprio ato de enunciar, o contexto de sua realização e os instrumentos utilizados pelo locutor. O ato de enunciar seria o ato individual de utilização da língua e colocaria o locutor como parâmetro nas condições necessárias da enunciação. Assim, uma nova função seria adquirida pelo sujeito face à língua: é por meio da manifestação individual que a língua se consolidaria e permitiria a comunicação de um locutor 3 Se nas considerações de Saussure o falante é passivo com relação à língua, e sua subjetividade não influi no funcionamento da língua, com Benveniste o falante e sua subjetividade estão inseridos na análise linguística.

com seu interlocutor. Quanto aos instrumentos utilizados pelo locutor na enunciação e o contexto de sua realização, o autor afirma que ao enunciar, o sujeito colocar-seia em sua própria fala, utilizando-se de índices específicos que só têm existência nesse processo, tais como, os índices de pessoa (eu-tu) e de ostensão (este, aqui, etc.). Estes últimos inserem a referência no processo de apropriação efetuado pelo sujeito na língua e designam, ainda, a presença da situação dessa apropriação. A sentença Eu tenho amigos aqui, por exemplo, indica que o locutor possui algumas amizades no local em se encontra no momento exato da enunciação, o que evidencia a capacidade que os dêiticos possuem de se referir a algo. Em uma passagem posterior, Benveniste explicita que, na enunciação, o locutor emprega a língua para expressar uma relação desta com o mundo. Deteremo-nos um momento nesse trecho, tendo em vista que ele diz respeito à ligação entre referência e sujeito, intermediada pela língua: Por fim, na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação. (BENVENISTE, ibidem, p. 84). Com base no que foi exposto até agora, podemos afirmar que o sujeito, ao colocar a língua em funcionamento pela enunciação, utiliza-se de caracteres específicos para marcar sua presença na própria fala, da mesma maneira que também se utiliza de outros índices para inserir em sua fala a situação na qual se encontra. Esses últimos índices de ostensão - serviriam para apontar um estado de coisas mutável ao mesmo tempo em que o termo que o designa é pronunciado. Os índices de pessoa, por sua vez, efetuariam um processo de referência do sujeito a si mesmo já que ao falar Eu vou embora, o pronome pessoal eu refere-se à mim, na medida que eu sou o locutor nesse caso, se o locutor for outra pessoa e proferir a mesma frase, a referência será diferente. A questão principal que se coloca nesse ponto é a natureza da referência proposta por esse autor: ela aparenta, em alguns aspectos, ser mais subjetiva do que ontológica. Quanto a isso Pires e Werner (2006) afirmam que: A dêixis, como já citado, também denominada na obra de Benveniste, por indicadores de subjetividade, contém a categoria de pessoa o que dá a

ela a característica de ser única, particular e pertencente ao discurso e não a uma realidade determinada. Benveniste define então os dêiticos como signos vazios que só ganham plenitude e significação no ato da enunciação, quando assumidos pelos indivíduos; sendo, portanto, de natureza diferente da de outros signos lingüísticos que são plenos, os nomes, por exemplo. Ou seja, o contexto dêitico é sui-referencial. (PIRES e WERNER, 2006, p. 156) É necessário que nos detenhamos por um instante na afirmação acima. Em primeiro lugar cumpre explicitar uma noção que até agora não havíamos colocado de maneira explícita: a dêixis ou os indicadores de subjetividade. Pois bem, os dêiticos seriam justamente a classe de signos que abrange os índices de pessoa e ostensão. Como vimos anteriormente, esses índices formais acontecem na e pela enunciação, o que nos faz constatar que o fenômeno de referência só acontece, nesses casos, de uma maneira sui-referencial, ou seja, interna e subjetiva, independente de qualquer realidade ontológica. Daí serem considerados signos vazios em oposição aos nomes, que seriam signos plenos. A diferença principal entre esses dois tipos de signos seria que os nomes possuem significação fora da enunciação, enquanto que os dêiticos só significam quando inseridos nesse processo. Quanto a esse aspecto, Flores (2005) afirma que, com relação aos dêiticos não há a possibilidade de se considerar a referência ontológica, tendo em vista que ao adotar o conceito saussuriano de signo constituído por significante e significado Benveniste admite que o mesmo constitui-se independentemente do objeto extralingüístico. Entretanto, cabe aqui uma questão. No artigo A natureza do signo lingüístico, Benveniste define a relação entre signo e objeto extra-lingüístico como arbitrária, o que nos leva a crer que, nesse caso, o autor trata da referência ontológica dos nomes, na medida em que esses signos seriam signos plenos e manteriam uma relação com o mundo. Haveriam, portanto, dois tipos de referência para Benveniste? Antes de respondermos essa questão convém darmos continuidade à análise dos argumentos propostos pelo autor, no que diz respeito à noção de referência e sua articulação com o funcionamento linguístico. A realidade, a referência e o discurso. No artigo Estrutura da língua e estrutura da sociedade, Benveniste afirma que existe um mecanismo complexo que relaciona língua e referência, no quadro formal da enunciação. Segundo o autor, é por intermédio do estudo do vocabulário que os historiadores, por exemplo, conseguem

apreender testemunhos sobre a estrutura de uma sociedade em uma determinada época. Isso só seria possível porque há uma ligação entre língua e realidade. De um ponto de vista sincrônico, ao analisarmos uma língua em um determinado período, é possível e evidente que encontraremos signos que se referem a objetos. O nome de um país ou de um rio, por exemplo, não muda constantemente e, se por algum motivo essa mudança ocorrer, a massa falante oferecerá certa resistência para acatá-la. Todavia, Benveniste afirma que haveria certa oscilação da referência, prejudicando assim uma correspondência exata entre os nomes e as coisas: Os testemunhos que a língua dá desse ponto de vista só adquirem todo o seu valor se eles forem ligados entre eles e coordenados à sua referência. Existe aí um mecanismo complexo cujos ensinamentos é preciso interpretar prudentemente. O estado da sociedade numa época dada não aparece sempre refletido nas designações de que ela faz uso, pois as designações podem muitas vezes subsistir quando os referentes, as realidades designadas já mudaram. (BENVENISTE, ibidem, p. 100) A referência seria mutável enquanto o nome que a designa seria permanente. Acreditamos que essa oscilação da referência só é perceptível do ponto de vista diacrônico e não anula uma correspondência entre os nomes e as coisas. Essa mutabilidade da referência resultaria, segundo Benveniste, na polissemia, ou seja, na capacidade de um único termo abrigar uma variedade de tipos e em seguida admitir a variação da referência na estabilidade da significação (BENVENISTE, ibidem, p. 100). Pode, então, haver um ou mais referentes denominados por um mesmo termo, sendo que, só será possível determinar em que caso um objeto específico é denominado se levarmos em consideração o momento no qual fazemos uso desse termo. Por fim, no artigo A forma e o sentido na linguagem, Benveniste coloca novamente, de maneira explícita, a defesa de que a referência é parte fundamental do funcionamento lingüístico, ao diferenciá-la do sentido: Se o sentido da frase é a idéia que ela exprime, a referência da frase é o estado de coisas que a provoca, a situação de discurso ou de fato a que ela se reporta e que nós não podemos jamais prever ou fixar. Na maior parte dos casos, a situação é condição única, cujo conhecimento nada pode suprir. A frase é então cada vez um acontecimento diferente, ela não existe senão no instante em que é proferida e se apaga nesse instante, é um acontecimento que desaparece. (BENVENISTE, ibidem, p. 231). [grifo nosso]

É conveniente que nos detenhamos um instante nessa citação, tendo em vista que ela remete à distinção semiótico/semântico defendida por Benveniste no artigo em questão. O semiótico seria, para esse autor, o domínio dos signos e das relações mantidas por eles no interior do sistema. Enquanto que o semântico advém da atividade de apropriação da língua pelo sujeito, ou seja, da colocação da língua em uso, pelo sujeito, em uma determinada situação de enunciação. Ao falar da frase, portanto, Benveniste remete-se ao domínio do semântico, e é por tal motivo que a referência da frase é o estado de coisas que a provoca, já que por trás dessa enunciação há uma situação de discurso. Haveria, portanto, a determinação da influência exercida pela referência no funcionamento da língua, já que, a frase sempre adquire um novo sentido devido ao fato de ser pronunciada por diferentes sujeitos, em momentos e situações distintas que são verificáveis somente no ato da enunciação. Nas palavras de Benveniste: A noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e ação; vemos dessa vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando, constrangendo, em resumo, organizando toda a vida dos homens. É a língua como instrumento da descrição e do raciocínio. Somente o funcionamento semântico da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao mundo, e, por consequência a normalização do pensamento e o desenvolvimento do raciocínio. (BENVENISTE, ibidem, p. 229). Conclusão O objetivo desse artigo foi examinar a noção de referência na teoria da enunciação de Benveniste e e encontrar argumentos para defender a possibilidade de ocorrência de variações de referência na língua. Para tal, utilizamo-nos da reflexão de Benveniste em 1939, 1966, 1968 e 1970, selecionando momentos em o autor marcava, explicitamente, o lugar da referência no funcionamento da língua. Ao realizar o nosso percurso pelos textos benvenistianos, entretanto, nos deparamos com uma nova questão: há dois tipos de referência na teoria de Benveniste? Tal percurso nos levou, por fim, a considerar o lugar dessa reflexão no quadro mais geral da teoria da enunciação de Benveniste.

Retomaremos alguns pontos expostos neste artigo, para que seja possível fundamentar a nossa conclusão. Em primeiro lugar temos que os dêiticos existem na e pela enunciação, de maneira que consistem em signos vazios, ou seja, não possuem significação por si mesmos. Partindo dessa prerrogativa temos que os índices de pessoa (eu e tu) e os índices de ostenção (aqui, este e isto) possuem a capacidade de designarem uma referência interna, determinada no momento da enunciação e por tal motivo oscilante. Dessa forma, os dêiticos estão intimamente ligados com o contexto da enunciação, com o momento no qual ela ocorre e com quem a realiza, considerando-se assim a referência como uma sui-referência. Entretanto, em oposição ao signo vazio há a categoria do signo pleno, sendo que essa última abarcaria a classe dos nomes, na medida em que, de um ponto de vista lógico, eles se remetem a um estado de coisas, possuindo uma significação própria, positiva. Ao falar, portanto, da questão da arbitrariedade do signo, do vocabulário como espelho da estrutura da sociedade e ainda, da distinção entre sentido e referência, Benveniste admite como evidente a seguinte relação: o sujeito relaciona-se com o mundo por intermédio da língua, e é por esse motivo que conseguimos apreender os objetos e as pessoas que nos cercam. Assim, chegamos à conclusão de que, na teoria de Benveniste, os dêiticos são o lugar de ocorrência de um tipo de referência distinto, a saber, uma referência interna. Em oposição a essa classe, há uma categoria de referência que se remete a um determinado estado de coisas, relação esta estabelecida unicamente por intermédio da língua e que, consequentemente, não a concebe como nomenclatura e sim como instrumento de ação, descrição e raciocínio. Esse último tipo de referência encontra-se explicitado, especificamente no artigo A natureza do signo linguístico, que, por sua vez, pode ter sido a maneira encontrada pelo autor para inserir o sujeito na enunciação. Dessa forma, somos levados a ir mais além, e afirmar que não só existem dois tipos de referência na teoria de Benveniste, mas também que a ligação arbitrária entre o signo e os objetos, e sua consequente necessidade da relação estabelecida entre significante e significado, proporcionam ao autor os fundamentos necessários para uma reflexão que prioriza a inserção, no quadro teórico da lingüística, de um sujeito que tem a capacidade de apropriar-se da língua na e pela enunciação.

Referências Bibliográficas BENVENISTE, E. Natureza do signo linguistico [1939]. In: Problemas de Linguistica Geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes Editores, 2005.. A forma e o sentido na linguagem [1966]. In: Problemas de Linguistica Geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes Editores, 2005.. Estrutura da língua e estrutura da sociedade [1968]. In: Problemas de Linguistica Geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes Editores, 2005.. O aparelho formal da enunciação [1970]. In: Problemas de Linguistica Geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes Editores, 2005. FLORES, V. BARBISAN, L. B. Sobre Saussure, Benveniste e outras histórias da linguística. In: NORMAND, C. Convite à linguística. São Paulo: Contexto, 2009. FLORES, V. TEIXEIRA, M. Introdução à linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2005. GUIMARÃES, E. Os limites do sentido: um estudo histórico enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes Editores, 1995. NORMAND, C. Saussure-Benveniste. Revista Letras, Santa Maria, n. 33, p. 13-21, jul/dez. 2006. PIRES, V.L. WERNER, K. C. A dêixis na teoria da enunciação de Benveniste. Revista Letras, Santa Maria, n. 33, p. 145-160, jul/dez. 2006.