Pedro Ivo de Sousa Mariana Machado Santos Sousa RESUMO



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Transcrição:

(IM)POSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO JUDICIAL DIANTE DO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO FORMULADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO JULGAMENTO PROFERIDO PELO STF NO HC 82.844/RJ * (IM) POSSIBILITY OF JUDICIAL CONVICTION AHEAD OF THE ORDER OF ABSOLUTION FORMULATED FOR THE MINISTÉRIO PÚBLICO: A CRITICAL ANALYSIS OF THE JUDGMENT PRONOUNCED FOR THE STF IN THE HC 82.844/RJ RESUMO Pedro Ivo de Sousa Mariana Machado Santos Sousa Trata o presente estudo de uma análise crítica do julgamento proferido pela 2ª Turma do STF no HC 82.844/RJ. Apresenta, sucintamente, o caso analisado pela 2ª Turma no julgamento do HC 82.844/RJ. Propõe um estudo da evolução dos sistemas processuais penais durante o progresso da humanidade, focando sua atenção para a compreensão do sistema acusatório, de forma a evidenciar as suas principais características. Investiga a (im)possibilidade de o juiz proferir decisão condenatória quando o Ministério Público formula, em sede de manifestação final no curso do processo, pedido de absolvição, procurando apresentar as posições doutrinárias existentes sobre o assunto e oferecer nova sugestão de resolução da questão. Primando por uma análise paradigmática constitucional do Estado Democrático de Direito, critica a decisão proferida pela 2ª Turma do STF que entendeu ter a manifestação final do Ministério Público no curso do processo penal natureza de mera sugestão. PALAVRAS-CHAVES: SISTEMA ACUSATÓRIO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO FORMULADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO (IM)POSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO JUDICIAL. ABSTRACT This objective study makes a critical analysis of the judgment in HC 82.844/RJ, pronounced by the 2ª Group of the Supreme Court. It presents the case analyzed for the 2ª Group in the judgment of the HC 82.844/RJ. It considers a study of the evolution of the criminal procedural systems during the progress of humanity, giving especial attention for the understanding of the accusatory system, in a way to evidence its main characteristics. It investigates the (im)possibility of the judge to pronounce condemnatory decision when the Ministério Público request absolution, in final headquarters of manifestation in the course of the process, trying to present the existing doctrinal positions on the subject and to offer new suggestion of resolution of the * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. 1854

question. Through a constitutional analysis of the paradigm of the Democratic State of Right, criticizes the decision pronounced by the 2ª Group of the Supreme Court that understood to have the final allegation of the Ministério Público in the course of the criminal proceeding nature of mere suggestion. KEYWORDS: ACCUSATORY SYSTEM - DEMOCRATIC STATE OF RIGHT - REQUESTED OF ABSOLUTION FORMULATED FOR THE MINISTÉRIO PÚBLICO - (IM) POSSIBILITY OF JUDICIAL CONVICTION. 1 INTRODUÇÃO O desenvolvimento social da humanidade fez com que diversos institutos das mais diferentes áreas do conhecimento humano sofressem forte evolução conceitual, possibilitando um progresso dinâmico em todas as ciências existentes. A modificação da compreensão da participação do ser-humano no complexo sistema da natureza, com todas as conseqüências advindas deste processo, é um ótimo exemplo do progresso mencionado. Certamente, essa evolução também pode ser percebida no campo do direito processual penal, especialmente no que se refere ao sistema processual penal[1]. É bem verdade que, desde que o homem decidiu se agrupar em sociedade, de uma forma ou de outra, sempre existiram regulamentos determinando a forma com que se responsabilizaria um indivíduo que violasse as regras postas, principalmente quando este cometesse algum crime[2]. E é justamente sobre esta forma de responsabilização do indivíduo infrator criminal que trata o presente estudo.da análise dos procedimentos utilizados pela sociedade moderna para se buscar apurar e processar um indivíduo criminoso, pode-se, inicialmente, afirmar que profundas foram as mudanças aplicadas na metodologia do sistema processual penal[3]. Com o surgimento do Estado Democrático de Direito, que procura salvaguardar os direitos fundamentais sob uma perspectiva democrática de participação popular na formulação das decisões político-jurídicas, buscou-se conferir aos indivíduos processados o maior número possível de direitos que possibilitassem a sua melhor defesa. Dentre esses direitos, o da imparcialidade do juiz pode ser apontado como um dos principais, rompendo-se assim com a figura do juiz-acusador, de forma a garantir uma maior participação do indivíduo na formação da sua própria defesa. Esta separação das figuras do julgador e do acusador segue a lógica da especialização das funções utilizada pelo princípio da separação de poderes, através do qual se busca tutelar os direitos fundamentais, impedindo-se a concentração de poder na mão de uma única pessoa, de forma a se evitar o arbítrio. Sabe-se que a aplicação do direito penal ocorre através de um sistema processual penal formado por um conjunto de princípios e regras constitucionais. Esse sistema se desenvolve, como afirmado, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas. 1855

De fato, no sistema jurídico brasileiro, o art. 385 do CPP permite que o juiz profira um julgamento condenatório em discordância com o entendimento do Ministério Público, que é órgão estatal responsável por formular a acusação em desfavor dos infratores penais, autorizando a formação de um título executivo condenatório constituído pela única vontade do juiz. Desta forma, a questão que se pretende responder ao final do presente é se é possível, em pleno Estado Democrático de Direito, com a vigência do sistema processual penal acusatório, o julgador proferir sentença condenatória criminal num processo em que o Ministério Público formula, em manifestação final, pedido de absolvição. 2 ANALISE DO CASO JULGADO PELA 2ª TURMA DO STF NO JULGAMENTO DO HC 82.844/RJ O caso avaliado pela 2ª Turma do STF no julgamento do HC 83.844/RJ se revela mais um daqueles casos que merecem uma especial atenção da comunidade jurídica brasileira. Não tanto pelo contexto fático em que ocorreu, mas principalmente em decorrência da solução jurídica apresentada pela 2ª Turma do STF. Numa rápida reconstrução do caso, o Paciente do HC referido foi denunciado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, juntamente com outros envolvidos, por supostamente ter cometido o crime de incêndio no interior de uma firma comercial situada no município de Petrópolis/RJ, devidamente tipificado no art. 250, 1º, I, do CPB. Após o trâmite processual normal, esse Paciente foi absolvido pelo juízo de 1º grau, que, acolhendo manifestação do Ministério Público, entendeu por declarar o estado de inocência dos acusados no processo. Ocorre que, a assistência de acusação recorreu desta sentença judicial, tendo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendido pela condenação dos acusados, terminando por impor ao referido Paciente do HC a pena de 5 (cinco) anos 4(quatro) meses de reclusão e 80 (oitenta) dias multa, como incurso nos arts. 250, 1º, I c/c o 29, do C. Penal. Desta decisão proferida em acórdão pelo TJRJ este Paciente se insurgiu, tendo recorrido ao Supremo Tribunal de Justiça no intuito de ver restabelecida a sentença proferida pelo juízo de 1º grau, fundamentando-se, dentre outros argumentos, no pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público. Entretanto, não obteve êxito nesse Tribunal Federal, motivo pelo qual impetrou habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. No STF, sob relatoria do então Ministro Nelson Jobim, a 2ª Turma, no dia 04 de maio de 2004, analisou e julgou, em unanimidade, pelo deferimento do habeas corpus. Assim, ordenou a invalidação do acórdão emanado da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mantido pela 5ª Turma do egrégio Superior 1856

Tribunal de Justiça, restabelecendo, em conseqüência, a sentença penal absolutória de 1º grau, tendo a ementa sido publicada no dia 28 de maio de 2004, a saber: EMENTA: HABEAS CORPUS. INCÊNDIO DOLOSO. DOIS LAUDOS PERICIAIS. ABSOLVIÇÃO NA 1ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA 2ª INSTÂNCIA. RECURSO DA ASSISTÊNCIA DE ACUSAÇÃO. A apresentação de dois laudos periciais - um realizado logo após o incêndio por perito experiente e renomado na região, outro realizado dias após o ocorrido por perito vindo da capital do Estado com conclusões totalmente divergentes, demonstra séria dúvida para a comprovação irrestrita da intencionalidade do incêndio. Justificam ainda a concessão da ordem elementos como: a) o Ministério Público de 1º grau ter sugerido a absolvição do réu, sugestão acompanhada pelo juízo criminal; b) a segunda perícia que concluía pelo incêndio doloso ter sido elaborado dias depois do evento; e c) a dúvida do Ministério Público acerca da idoneidade do perito que formalizou o segundo laudo. A configuração dessas sérias incertezas demonstra falta de base sólida para a condenação do paciente. Habeas corpus deferido. (STF. HC 82.844/RJ. 2ª Turma. Relator Min. Nelson Jobim. Data de Publicação no DJ: 28/05/04) (grifos nossos) Pode-se, então, observar da ementa acima que os Ministros da 2ª Turma do STF entenderam, conforme a fundamentação exposta, pelo deferimento do habeas corpus em razão de três justificativas, sendo a primeira delas a da sugestão do Ministério Público pela absolvição do réu. A questão proposta para análise no presente trabalho é de saber se o pedido de absolvição formulado no processo criminal pelo Ministério Público possui natureza de sugestão, como afirmado pelos Ministros da 2ª Turma do STF, ou de vinculação de atuação jurisdicional, dado a vigência do sistema processual acusatório em nosso ordenamento jurídico brasileiro. Desta resposta, poder-se-á extrair a possibilidade, ou não, do juiz proferir sentença penal condenatória diante de um pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público. Assim, propõe-se, inicialmente, a análise da evolução dos sistemas processuais penais durante o progresso dos sistemas jurídicos da humanidade, focando sua atenção para a compreensão do sistema acusatório, de forma a evidenciar as suas principais características. 3 O SISTEMA ACUSATÓRIO NO ÂMBITO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS Tradicionalmente, a forma com que o Estado buscou responsabilizar aqueles que cometiam infrações criminais sempre esteve subjugada a um sistema normativo capaz de conferir garantias para a sociedade e para cada indivíduo, ainda que, 1857

excepcionalmente, possam ser apontados alguns exemplos de excessos na história da humanidade. Este sistema, normalmente chamado de sistema processual penal de determinado Estado, é o garantidor da obediência de normas pré-estabelecidas, que visam conferir, na prática, direitos e obrigações instituídas para manutenção da paz social de determinada comunidade[4]. Assim, depois de estabelecidas as condutas criminais inadmitidas pela comunidade, instituem-se as formas com que estas condutas serão investigadas e processadas pelo Estado, no intuito de se entregar o maior número possível de ferramentas para o Estado cumprir o seu mister institucional, preservando-se, ao máximo, os direitos individuais dos cidadãos. Interessante observar que, no início do constitucionalismo moderno, em plena vigência do paradigma do Estado Liberal, estes sistemas eram caracteristicamente formados por regras, que estabeleciam ditatorialmente e abstratamente as diretrizes a serem seguidas no processo de investigação e processamento das condutas típicas criminais. Entretanto, no atual paradigma do Estado Democrático de Direito, os sistemas processuais penais dos Estados têm sido marcados por um conjunto normativo de regras e princípios, que conferem ao intérprete da norma uma maior possibilidade de, no caso concreto, construir a melhor resposta que o sistema normativo possa oferecer. Desta forma é que Paulo Rangel (2006, p. 45) define o sistema processual penal como o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto [5]. De fato, em regra, a doutrina aponta, pelo menos, três sistemas processuais penais que norteiam, ou nortearam, as ações punitivas sociais: o inquisitivo, o misto e o acusatório. O sistema inquisitivo foi antecedido pelo sistema acusatório privado no qual o próprio particular iniciava a persecução penal. Com o passar do tempo conclui-se que era melhor que o Estado detivesse o poder de reprimir a prática de delitos, sob pena de o particular utilizar o sistema como meio de vingança, ora interessando-o a interposição da ação ora não, gerando impunidade e desestabilização social. Como reação a esse sistema particular, surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o direito canônico o sistema inquisitivo. A principal característica desse sistema é a concentração das funções de julgar, defender e acusar nas mãos do juiz. Tal concentração quebra obviamente seu dever de imparcialidade, pois se é o juiz quem colhe as provas na fase de investigação preliminar e decide se a ação será ou não deflagrada, demonstra que ele já exerceu juízo de valor sobre o objeto daquele processo. Outro traço interessante é o sistema de provas adotado, qual seja o da prova tarifada, prova legal ou ainda sistema da certeza moral do legislador, onde nenhuma prova valia mais do que a confissão do acusado (LOPES JR., 2008, p. 65). De acordo com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, dissertando sobre a gestão da prova a qual era confiada 1858

essencialmente ao magistrado no sistema inquisitivo, "o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos fatos - de todos os factos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na 'a acusação' - dado seu domínio único e onipotente do processo em qualquer das suas fases (COUTINHO, 2001, p. 24) Preocupado em regrar, pelo menos em parte, a atuação do magistrado, o legislador impõe ao mesmo um sistema tarifado de provas, que significa dizer que todas as provas têm seu valor prefixado pela lei. Portanto, o juiz não poderia decidir pela absolvição mesmo que três testemunhas oculares do fato não reconhecessem o acusado como autor do fato, se esse fosse réu confesso. Isso porque o legislador definiu que a confissão era a rainha das provas, retirando do magistrado qualquer margem de discricionariedade[6]. A terceira característica é o sigilo. O juiz recolhia a prova secretamente, inviabilizando a fiscalização e o contraditório, que é o último elemento caracterizador do sistema. Não há contraditório nem ampla defesa no sistema inquisitivo, o que faz do acusado mero objeto do processo, quase um objeto de pesquisa científica, não lhe sendo garantida a defesa de seus direitos. Mas uma vez, faremos menção ao professor Jacinto Nelson Miranda Coutinho, que define o trabalho do juiz como delicado, senão vejamos: "O trabalho do juiz, de fato, é delicado. Afastado do contraditório e sendo senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato (COUTINHO, 2001, p. 24) O sistema processual penal misto possui esta nomenclatura por justamente se constituir da junção de elementos do sistema inquisitivo e do sistema acusativo. Também chamado de sistema acusatório formal, costuma-se identificar as raízes desse sistema com o sistema acusatório privado de Roma (RANGEL, 2006, p. 49). A razão da criação deste sistema é muito bem explicada pelo próprio Paulo Rangel: Procurou-se com ele temperar a impunidade que estava reinando no sistema acusatório, em que nem sempre o cidadão levava ao conhecimento do Estado a prática da infração penal, fosse por desinteresse ou por falta de estrutura mínima e necessária para suportar as despesas inerentes àquela atividade; ou, quando levava, em alguns casos, fazia-o movido por um espírito de mera vingança (RANGEL, 2006, p. 50) Neste sistema, embora mantendo a condução das investigações nas mãos do próprio magistrado, a grande novidade é a distinção entre as funções acusatória e decisória durante o processo, com a inclusão do Ministério Público na formação da culpa do indivíduo. Assim, este sistema possui duas fases procedimentais bem distintas: a primeira, na qual as investigações são conduzidas pelo próprio juiz, com inspiração direta do sistema inquisitivo e; a segunda, na qual a acusação é feita por um órgão público distinto do Judiciário, em regra, cabendo ao Ministério Público tal incumbência, sendo reservado ao juiz a condução dos trabalhos e a decisão final sobre o caso[7]. De fato, o advento do paradigma do Estado Democrático de Direito, com a inclusão de novos direitos nas Constituições mundiais, proporcionou a rejeição das idéias defendidas neste sistema, por não proporcionarem uma isenção ideal do juiz no julgamento de cada indivíduo acusado de cometer alguma infração penal. É que a 1859

condução judicial da fase preliminar investigativa compromete profundamente o julgamento judicial do caso analisado, impedindo que o indivíduo desfrutasse amplamente os seus direitos fundamentais. O sistema processual acusatório[8] é apresentado, então, como uma alternativa mais coerente com o paradigma constitucional vigente, no qual se procura blindar a atuação judicial de contaminações que comprometam um julgamento imparcial, contido contemporaneamente no princípio constitucional do devido processo legal. Nessa espécie de sistema processual, o juiz restringe a sua atuação ao processo, cabendo a outros órgãos as investigações e as acusações dos infratores penais. No cenário brasileiro, por exemplo, cabe à autoridade policial a condução dos trabalhos investigativos e ao Ministério Público o controle externo desses trabalhos e a formulação das acusações contra os infratores penais. A atuação judicial na fase preliminar de investigação se limita, então, à tutela das liberdades públicas (OLIVEIRA, 2008, p. 11). Obviamente, com a retirada da atuação judicial do controle das investigações criminais e da própria acusação penal, o sistema é recheado com garantias que possibilitam uma real análise dos fatos praticados, em tese, pelo indivíduo acusado judicialmente. Isto faz reaparecer, por exemplo, requisitos básicos de transparência do processo judicial como o princípio da publicidade, que permeia todo o sistema acusatório. É que não se visualiza um sistema processual democrático que vede às partes e a sociedade a possibilidade de obterem informações sobre a condução do processo, sendo certo, também, que tal princípio pode ter sua aplicação, excepcionalmente, limitada diante de uma real necessidade que vise a proteger o bom andamento dos trabalhos, quando então será admitida a decretação de sigilo. É também com Paulo Rangel (2006, p. 48-49) que encontramos algumas características do sistema acusatório, podendo ser identificadas, além das já mencionadas a da adoção do princípio do livre convencimento motivado e a da imparcialidade do julgador.[9] Ainda que parte da doutrina entenda que o sistema processual vigente no ordenamento jurídico brasileiro seja o misto, em razão da condução unilateral da fase preliminar investigativa, é de se reconhecer que, na verdade, o sistema processual penal adotado no Brasil é o acusatório, ainda que apresente algumas distinções peculiares (OLIVEIRA, 2008, p.12 )[10]. Em razão até mesmo da complexidade do sistema vigente é que se buscará analisar neste momento a aplicação adequada do artigo 385 do Código de Processo Penal ao sistema processual acusatório, especialmente quando o Ministério Público formula pedido de absolvição do acusado, tratando de focar o estudo na conduta do juiz imparcial, que deve se afastar do espírito acusatório do processo. 1860

4 O ARTIGO 385 DO CPP E A (IM)POSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO JUDICIAL DIANTE DO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO FORMULADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO No nosso sistema jurídico, como já afirmado, existe a possibilidade expressa de o juiz proferir sentença condenatória em dissonância com o entendimento do Ministério Público, prescrevendo o art. 385 do Código de Processo Penal que "Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição (...)". Alicerçados no princípio da livre convicção ou da persuasão racional das provas e na própria proteção de direitos fundamentais, é que parte da doutrina entende constitucional a previsão do art. 385 do CPPB (OLIVEIRA, 2008, p. 11)[11]. Neste mesmo sentido, o julgamento da 2ª Turma do STF proferido no caso do HC 83.844/RJ, ao se referir à manifestação ministerial como mera sugestão, revela nítida concordância com a sua constitucionalidade, mesmo diante da vigência do sistema acusatório no paradigma constitucional atual. Acontece que esta norma processual deve ser interpretada à luz do sistema acusatório, no qual as funções do acusador e do julgador são separadas, garantindo-se a imparcialidade do julgador, de forma a proteger os direitos fundamentais do indivíduo acusado. Assim, cabe indagar, quando o Ministério Público pede a absolvição de determinado indivíduo em sede de alegações finais, qual o efeito processual penal produzido? De outra forma, qual é a natureza jurídica do ato do Ministério Público de pedir, no curso do processo, a absolvição do acusado? Como visto acima, parte da doutrina e da jurisprudência pátrias entendem que a acusação separada da função julgadora se sustenta somente até o momento do seu oferecimento, através da peça processual inaugural do processo, tendo o juiz, a partir de então, uma missão constitucional de busca da verdade real que ultrapassa um juízo absolutório formulado pela própria acusação. Desta forma, com o oferecimento da denúncia, as manifestações ministeriais teriam natureza meramente opinativa, ou como descrito no julgamento acima, natureza sugestiva. Entretanto, conforme a melhor doutrina, ao pedir a absolvição do acusado, o Ministério Público estaria retirando totalmente a acusação contra o mesmo, esvaziando a própria pretensão acusatória no processo, que é o seu objeto principal. Este ato processual praticado pelo Ministério Público teria uma natureza de retirada/esvaziamento da própria acusação, tornando o processo, desde então, carente de seu objeto principal. Desta forma, com a retirada da pretensão acusatória pelo Ministério, incumbe investigar a possibilidade do julgador emitir decisão condenatória em desfavor do acusado, pois estaria assumindo, sozinho e ao mesmo tempo, as funções acusadora e julgadora sobre os fatos descritos na ação acusatória inicial, tornando totalmente dispensável a ação e o processo penal. 1861

É importante que, neste ponto, busque-se diferenciar ação penal, processo e acusação, para que se evitem pequenas incompreensões da temática. Preceitua o artigo 42 do CPP que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal. Pois bem, ensina-nos Paulo Rangel que em razão do princípio da inércia, a ação deflagra a jurisdição. Por outro lado a acusação é a pretensão processual que por sua vez é o objeto do processo. Vejamos o que diz o referido autor sobre o tema: "A ação deflagra a jurisdição e instaura o processo, porém se esgota quando a jurisdição é impulsionada. Agora daqui para frente o que temos é o processo, não mais a ação" (RANGEL, 2006, p 61). Sendo assim, quando o Ministério Público formula pedido absolutório, ele não está desistindo da ação, ele está esvaziando o próprio objeto do processo penal, que é a pretensão acusatória. Cabe-nos nesse ponto mencionar valioso ensinamento de Aury Lopes quando diz que: "Sem embargo de tais limitações, entendemos que se o Ministério Público pedir a absolvição (já que não pode desistir da ação) a ela está vinculado o juiz. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não-exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como conseqüência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. (LOPES JR., 2008, p. 103) De maneira resumida, deve-se lembrar que o impulso oficial da jurisdição penal é realizado através de uma análise sintética, onde vige o princípio do in dúbio pro societat, através da qual se busca constatar a certeza da materialidade e o indício da autoria. De fato, o parquet, em momento processual posterior, possui maiores condições de análise de verificação da autoria e da materialidade do que ele tinha quando da propositura da ação, já que no inquérito as provas são produzidas na ausência do contraditório, diferente do que ocorre na fase judicial. Assim, pode ocorrer de o próprio Ministério Público, no desempenho de suas funções constitucionais, visualizar o pedido de absolvição do acusado diante, por exemplo, da insuficiência de provas, formulando um juízo absolutório em favor do acusado, devidamente expresso em sede de alegações finais. Como afirmado, com esta atitude, o Ministério Público estaria retirando a acusação contra o acusado, esvaziando o objeto principal do processo penal, qual seja a pretensão acusatória. Pode-se afirmar, então, que, a partir deste momento, não haveria mais qualquer apontamento pelo Ministério Público de uma conduta praticada pelo acusado digna de uma condenação estatal. Assim, dificilmente se poderia sustentar uma condenação judicial que não violasse a separação das funções acusatória-julgadora defendidas pelo sistema acusatório, ainda que este seja o entendimento de alguns. É certo que, em nosso ordenamento vigente, não cabe ao juiz assumir a função de sustentador da acusação inicial formulada. Ainda 1862

que se sustente a separação da ação e do processo, este só se sustenta com a manutenção daquela. Mesmo nos procedimentos investigativos originários dos Tribunais, verifica-se que aquele magistrado que, excepcionalmente, exerce função de presidente da investigação preliminar, não atua no julgamento principal das condutas criminais apuradas. Isto é lógico, pois privilegia a imparcialidade e o julgamento justo, incólume de préjulgamentos. Garante amplamente ao acusado a possibilidade de realizar sua defesa. No entanto, ao se defender uma total vinculação do juiz à manifestação do Ministério Público, também não se estaria concentrando nele a figura do acusador e do julgador de fato, tornando o juiz um mero carimbador da decisão do agente acusador?[12] De outra forma, se o Ministério Público pede absolvição e o juiz fica vinculado a proferir sentença absolutória, da mesma maneira o parquet não estaria cumulando também as duas funções: de julgar e de condenar. Qual seria então a solução mais adequada? De fato, não se pode falar em total equivalência das situações visualizadas acima, pois, ainda que o Ministério Público formule pedido absolutório, a decisão final é a do julgador, que, no entanto, não poderá condenar alguém diante de uma falta de acusação. Assim, o Ministério Público quando pede a absolvição de determinado acusado não acumula a função julgadora, mas exerce plenamente a sua função acusadora no processo penal vigente, marcado pela sua característica de parte imparcial. Bem, o que se defende até o momento é que, diante de um pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, o juiz fica impossibilitado de proferir uma sentença penal condenatória em desfavor do acusado, uma vez que o ato processual praticado pelo órgão ministerial retira do processo o seu objeto principal, vinculando, em regra, a atuação judicial. Fala-se em regra pelo fato de que o juiz pode não concordar com a manifestação ministerial. O que fazer então diante do arcabouço normativo pátrio. É preciso pensar numa solução para este caso que encontre total sintonia com o sistema processualconstitucional vigente, pois, como nos lembra Eugênio Pacelli: "(...) em matéria penal, não se disponibiliza a nenhum órgão do Estado a exclusividade na identificação do interesse público (OLIVEIRA, 2008, p 11). De maneira geral, percebe-se no sistema processual penal brasileiro, uma constante preocupação do legislador com os equívocos humanos. Pode-se afirmar, assim, que esse sistema também é construído com base no princípio da falibilidade humana. Tanto assim, que prevê uma ampla estrutura recursal, não ficando nem mesmo o pedido de arquivamento do inquérito policial insuscetível de uma reanálise. Assim, mesmo defendendo a tese da impossibilidade de condenação judicial diante do pedido ministerial de absolvição do acusado, necessário que se construa uma possibilidade de reanálise da posição adotada pelo membro do Ministério Público, que também é passível de erro[13], buscando uma indispensável harmonização sistemática. 1863

Desta forma, a aplicação analógica do artigo 28 do Código de Processo Penal para o caso de formulação pelo Ministério Público de pedido de absolvição se apresenta como uma boa solução. Como na hipótese de arquivamento, se o juiz discordar do pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, ele deverá remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça. Este poderá concordar com a manifestação ministerial originária e pedir a absolvição, ficando o juiz definitivamente vinculado a esta posição, ou discordar da manifestação do órgão de 1º grau e requerer a condenação do acusado, quando então o juiz poderá proferir sentença condenatória[14]. Neste sentido, diante da manifestação ministerial pela absolvição do réu, qual seria a solução jurídica para o caso? Os profs. Américo Bedê Freire Jr. e Gustavo Senna propõem que o processo seja extinto sem julgamento de mérito por falta do interesse de agir (FREIRE JR.; MIRANDA. No prelo), sustentando a tese da análise superveniente das condições da ação penal. Entretanto, como já visto, o processo é figura independente da ação, havendo inúmeras críticas da importação das noções do processo civil para o processo penal, dentre as quais a do conceito do interesse de agir[15]. Com relação à maneira de extinção do processo, pode-se apresentar outra solução jurídica, que é proposta para fins de uma maior reflexão, que é a de extinguir o processo através de uma sentença extintiva da punibilidade pela perempção com base no artigo 107, IV, do CP. É cediço que o instituto da perempção é aplicado somente nas ações penais exclusivamente privadas, em virtude do império do princípio da disponibilidade, ao contrário da ação penal pública regida pelo princípio da indisponibilidade. Entretanto, propõe-se aqui a utilização da perempção nas ações penais pública de forma restrita e especial, ou seja, apenas para a hipótese aventada no artigo 60, III, segunda parte, do Código de Processo Penal, quando o Ministério Público, interpretado analógicamente na figura do ofendido, deixar de formular pedido de condenação nas alegações finais. Como já afirmado, o pedido de absolvição dá causa à retirada material da acusação, ou, como visto, da pretensão acusatória. E, o que é a perempção clássica senão uma das formas pelas quais o querelante, leia-se neste caso o Ministério Público, pode dispor do conteúdo material do processo? (RANGEL, 2006, p 61). É claro que a perempção não poderá ser transportada nos demais casos, que em síntese, resumem-se em situações nas quais o querelante abandona o processo, em virtude do já citado princípio da indisponibilidade na ação penal pública, mas não há razões para não utilizá-la neste caso. Neste sentido são as sábias palavras de Aury Lopes Jr. (2008, p. 104-105) para quem: "(...) pedida a absolvição pelo Ministério Público, necessariamente a sentença deve ser de extinção do feito sem julgamento do mérito (ou ao menos absolutória, considerando 1864

a lacuna legislativa), pois na verdade o acusador está deixando de exercer sua pretensão acusatória, impossibilitando assim a efetivação do poder (condicionado) de penar. Igual decisão deveria ser tomada a qualquer momento, quando deixar o acusador de exercer a pretensão acusatória (por que pensar a perempção somente na ação penal privada?). Pensamos, inclusive, que analogicamente pode ser aplicada a perempção (especialmente no caso do art. 60, III, última parte, do CPP) também na ação penal pública (...). Por fim, e não menos importante, justamente ao contrário, de enorme relevância nas reflexões formuladas, como responder às indagações feitas por Mauro Fonseca Andrade (2008, p. 261) de que a vinculação do juiz ao pedido absolutório do Ministério Público poderia trazer prejuízos maiores para o acusado diante de uma provável absolvição por sua absoluta inocência? Estaria, assim, este posicionamento fadado a se tornar mais um mecanismo de desrespeito aos direitos fundamentais de cada cidadão, impedindo a declaração judicial da absoluta inocência de um acusado? Bem, a resposta desta questão proposta é construída sob o raciocínio de que o juiz, no processo penal, possui uma dupla missão, que é desempenhada de forma simultânea: a primeira, que o acompanha desde o início dos trabalhos investigativos, que é a da tutela dos direitos fundamentais, especialmente os da liberdade; e, o segundo, que se refere à formulação isenta do título executivo penal condenatório. O que se defendeu, até aqui, é a impossibilidade de o juiz constituir este título condenatório na ausência de acusação, o que retiraria a própria imparcialidade judicial, vital para o momento constitucional vivido no país. Entretanto, no desempenho da sua primeira missão, a da tutela dos direitos fundamentais, o juiz não se submete à mesma regra, devendo, inclusive, agir de ofício para sanar qualquer prejuízo mais grave. Esclarecido estes pontos necessários, imagine que, ao final de determinado processo, o membro do Ministério Público se manifeste pela absolvição do acusado por falta de prova suficiente para condenação (art. 386, VI, do CPP). Diante deste fato, como já defendido, o juiz não poderia proferir sentença condenatória em desfavor do réu, sendolhe facultado, no máximo, uma remessa ao órgão superior para uma reanálise do caso. Entretanto, e se, ao invés de querer condenar, o juiz verificasse a existência de uma causa que permitisse ao acusado uma melhor solução do processo, como, por exemplo, o reconhecimento de uma prescrição? Estaria o juiz absolutamente vinculado à manifestação ministerial? A vinculação judicial, como defendida, só atua no sentido de inviabilizar uma condenação diante da falta de acusação, e não no sentido de impedir a declaração do melhor direito para o acusado. Não há impedimento para o reconhecimento de direitos do cidadão acusado, que espera que o seu estado de inocência seja totalmente declarado e absolutamente restabelecido. 1865

A questão ganha contornos preocupantes diante de um pedido ministerial que se manifeste pela absolvição do acusado em decorrência de questões puramente processuais, permitindo uma nova investigação futura diante de fatos novos, como, por exemplo, ocorre na absolvição por falta de provas. Neste caso, verificando o juiz a existência de causa para proferimento de um julgamento de mérito que reconhecesse a plena inocência do acusado, ou de alguma outra forma viesse a impedir a abertura de um novo processo, como proceder? Ou seja, tendo o Ministério Público formulado pedido absolutório por falta de provas, poderia o juiz se desvincular de tal manifestação e proferir decisão absolutória mais favorável para o acusado, como, por exemplo, com o reconhecimento de uma prescrição ou de uma decadência? A resposta deste aparente enigma é fornecida através da tutela judicial dos direitos fundamentais, não podendo se falar em prejudicialidade da manifestação ministerial diante de uma declaração judicial absolutória de mérito, sendo dever do juiz, e direito do acusado, o proferimento de uma decisão que lhe seja mais favorável, desde que plenamente comprovada. 5 CONCLUSÃO Este artigo teve por finalidade inicial avaliar o caso julgado pela 2ª Turma do STF no HC 83.844/RJ, onde se entendeu que a manifestação final absolutória do Ministério Público no curso de um processo criminal teria uma natureza meramente sugestiva. Posteriormente, buscou analisar o sistema acusatório no contexto dos sistemas processuais penais, quando se pode verificar que este sistema foi uma reação ao sistema inquisitivo, cujas maiores características são a ausência de contraditório e ampla defesa, o réu como puro objeto do processo, o sigilo das informações, a confecção da prova de forma tarifada e o acumulo das funções de julgar, defender e acusar nas mãos do juiz. Já o sistema acusatório traz a publicidade dos atos, os princípios do contraditório e da ampla defesa, e conseqüentemente uma importante mudança do papel do acusado que passa a ser sujeito de direitos. Quanto à prova, é adotado o sistema da livre persuasão racional. E um agente incumbido de cada tarefa, o autor acusa, o juiz julga e o réu devidamente assistido por uma defesa técnica se defende. Diante desta explanação, concluiu-se que a regra contida no artigo 385 do CPP deve ser revista à luz do sistema acusatório apresentado acima, pois se o Ministério Público pede absolvição, ele retira a acusação, objeto principal do processo, e o juiz, ao proferir sentença condenatória, estaria exercendo simultaneamente as funções de julgador e acusador. Por outro lado, enfrentou também a questão da acumulação de funções pelo Ministério Público quando do pedido de absolvição, tendo se afirmado que o Ministério Público quando pede a absolvição de determinado acusado não acumula a função julgadora, mas exerce plenamente a sua função acusadora no processo penal vigente, marcado pela sua característica de parte imparcial. Assim, defendeu-se a plena impossibilidade de o juiz proferir sentença condenatória diante de um pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público. Entretanto, 1866

diante da sistemática do ordenamento pátrio, no qual vige o princípio da falibilidade humana sustentou-se a possibilidade de revisão da manifestação emitida pelo órgão ministerial de 1º grau, com aplicação analógica do art. 28 do CPP, devendo o processo ser remetido ao órgão superior para confirmação ou não da manifestação inicial. Ainda, enfrentou a natureza jurídica da decisão judicial que acatasse a manifestação ministerial, tendo, inicialmente, identificado que Américo Bedê Freire Júnior e Gustavo Senna (FREIRE JR.; MIRANDA. No prelo) sugerem que o processo seja extinto sem julgamento de mérito por falta do interesse de agir, o que possui algumas críticas na doutrina brasileira. De forma alternativa a esta, foi proposta solução pela extinção do processo através de uma sentença extintiva da punibilidade por perempção, com base no artigo 107, IV, do Código Penal. Afirmou-se que, embora a perempção seja instituto das ações penais exclusivamente privadas, é possível a sua utilização nas ações penais públicas apenas de forma restrita, somente na hipótese em que o Ministério Público formular pedido de absolvição. Por fim, concluiu, também, que a vinculação judicial, como defendida, só atua no sentido de inviabilizar uma condenação diante da falta de acusação, e não no sentido de impedir a declaração do melhor direito para o acusado. Não há impedimento para o reconhecimento de direitos do cidadão acusado, que espera que o seu estado de inocência seja totalmente declarado e absolutamente restabelecido. Desta forma, havendo possibilidade de se julgar o processo mais favoravelmente ao acusado, não se pode falar em prejudicialidade da manifestação ministerial, sendo dever do juiz, e direito do acusado, o proferimento de uma decisão que lhe seja mais favorável, desde que plenamente comprovada. Conclui-se, por fim, que o julgamento proferido pela 2ª Turma do STF no HC 83.844/RJ não considerou toda a complexidade do problema envolvendo a formulação ministerial de pedido de absolvição, não tendo esta manifestação natureza meramente sugestiva, mas impeditiva de constituição de título executivo judicial condenatório. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá Editora, 2008. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In: (Coord.). Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 3. 1867

FREIRE JR, Américo Bedê. Da impossibilidade do juiz condenar quando há o pedido de absolvição formulado pelo ministério público. Boletim IBCCrim. São Paulo, a. 13, n. 152, p. 19, jul. 2005. FREIRE JR., Américo Bedê; MIRANDA, Gustavo Senna. Os princípios constitucionais do processo penal. (No prelo). JARDIM, Afrânio Silva. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª ed.- Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10ª ed.- Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. [1] Afrânio Silva Jardim (1998, p. 18) afirma que o processo penal é fruto do avanço civilizatório da humanidade, resultante da jurisdicização do poder punitivo do Estado [2] Pode-se afirmar que mesmo no período da vingança privada existia um procedimento estabelecido, qual seja, o da possibilidade do próprio indivíduo se proteger e se vingar. A diferença é que, neste momento, não importava ao Estado a persecução penal. [3] É importante destacar que para Aury Lopes Jr. (2001, p. 6): A evolução do processo penal está intimamente relacionada com a própria evolução da pena, refletindo a estrutura do Estado em um determinado período. [4] Aury Lopes Jr. (2008, p. 55) afirma que: Na história do Direito se alternaram as mais duras opressões com as mais amplas liberdades. É natural que nas épocas em que o Estado viu-se seriamente ameaçado pela criminalidade o Direito Penal tenha estabelecido penas severas e o processo tivesse que ser também inflexível. Os sistemas processuais inquisitivo e acusatório são reflexo da resposta do processo penal frente às exigências do Direito Penal e do Estado da época. [5] Analisando criticamente a função do processo penal, Aury Lopes Jr. (2001, p. 20) afirma que: O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena, e de outro, 1868

servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade dos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc. [6] É bom esclarecer, ainda, que foi este sistema de valorização da confissão como Rainha das provas que permeou, e ainda permeia, toda a cultura de repressão do Estado brasileiro, incentivando a prática inescrupulosa da tortura nas delegacias de polícia, justificada pela obtenção das confissões dos investigados, que, muitas vezes, são declarações irreais, prestadas em momentos de grande desespero e intenso sofrimento. [7] Outras características do sistema processual misto podem ser encontradas em RANGEL, Paulo. Direito processual penal Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 50. [8] Por uma visão histórica dos sistemas processuais penais, ver PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 65-101. Aury Lopes Jr. (2008, p. 56) afirma, ainda, que: Cronologicamente, em linhas gerais, o sistema acusatório predominou até meado do século XII, sendo posteriormente substituído, gradativamente, pelo modelo inquisitório que prevaleceu com plenitude até o final século VXIII (em alguns países, até parte do século XIX), momento em que os movimentos sociais e políticos levaram a uma nova mudança de rumos. [9] Outras características podem ser encontradas na obra de PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 102-165. Ver também LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª ed.- Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 56-60. [10] Não se desconhecem as críticas formuladas por parte da doutrina que entende vigente no ordenamento processual penal brasileiro o sistema inquisitivo em razão da gestão da prova, sendo o art. 156 do CPP, para os críticos, uma demonstração da adoção do sistema inquisitivo. Neste sentido, ver LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª ed.- Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 70-74. Entretanto, é de se entender que não existe mais sistema processual puro, devendo ser o mesmo entendido na dinâmica de cada Estado, de acordo com as suas peculiaridades. [11] Também neste sentido: Quando o Ministério Público opina pela absolvição do réu não está desistindo da ação já exercitada, pois ela é indisponível (art. 42). Preciso o código quando usa a palavra opina, pois o pedido formulado na denúncia não pode ser objeto de retratação. Não se pede duas vezes e, com mais razão, não poderia o Ministério Público pedir em testilha com o seu pedido original. Desta forma, a pretensão punitiva do Estado será sempre apreciada pelo órgão jurisdicional, pois nenhum comportamento do Ministério Público poderá obstar o julgamento de mérito quando cabível. (JARDIM, 1998, p. 128). 1869

[12] Neste sentido, defende Marcos Fonseca Andrade a possibilidade de condenação judicial mesmo diante de um pedido ministerial de absolvição, sustentando que, dentro do sistema acusatório, as partes não estão isentas de sofrerem controle por parte do órgão julgador (ANDRADE, 2008, p. 262). [13] Não se quer aqui cogitar de desvios intencionais de função na atuação do órgão acusador, mas somente dos casos de simples equívocos, pois naqueles casos a manifestação seria absolutamente nula, passível de responsabilização penal do ato praticado. [14] Ressalte-se, neste ponto, que melhor seria que a estrutura revisional dos Ministérios Públicos Estaduais fosse equivalente à do Ministério Público Federal, submetendo as manifestações dos órgãos de 1º grau a uma análise colegiada, que no caso do MPF é feita através das Câmaras de Coordenação e Revisão, mitigando uma atuação política nas funções ministeriais. [15] Neste sentido, ver LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª ed.- Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 333-335. 1870