OS VALORES AMBIENTAIS DE UMA EXPERIÊNCIA VAGABUNDA

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Transcrição:

OS VALORES AMBIENTAIS DE UMA EXPERIÊNCIA VAGABUNDA Cae Rodrigues - UFSCar Eixo temático: ludomotricidade Agência financiadora: CNPq Resumo O objetivo desse trabalho é divulgar a ideia do lazer vagabundo como parte de uma proposta de aprendizagem experiencial com base na educação ambiental crítica, sustentandose na importância da desconstrução/reconstrução fenomenológica em processos educativos críticos. A proposta de lazer vagabundo é fundamentada pela vivência perceptiva/sensorial com o ambiente por meio de uma concepção de tempo e de espaço que permita certo desconforto e estranheza, assim como a construção de relações que se distanciem dos objetivos de desempenho (performance), considerando que esse tipo de vivência possa potencialmente criar um espaço com aberturas para se discutir diferentes aspectos estéticos, éticos e políticos que envolvem as relações ser humano(sociedade)-mundo(natureza). Palavras chaves: educação pelo lazer; educação experiencial; meio ambiente. Introdução e objetivos A problemática ou questão socioambiental é caracterizada por um conjunto de conhecimentos e de práticas que abrangem discursos situados em um lugar de fronteira entre a legitimação e a busca pela legitimação. Nesse processo, transita por diferentes campos e espaços numa constante disputa entre o tradicional e o emergente. Diante dessa realidade, destaca-se a importância em compreender que o discurso de um período histórico particular possui uma função normativa, reguladora, que, por meio da produção de saberes e de estratégias de poder, faz funcionar mecanismos de organização do real (FOUCAULT, 2006). Dentro do espectro dessa disputa, o saber ambiental inscreve-se no campo discursivo do ambientalismo enquanto discurso contemporâneo que se desdobra nas práticas discursivas do desenvolvimento sustentável, incorporando princípios e valores relacionados à diversidade cultural, às questões de equidade e solidariedade e à sustentabilidade ecológica, social e econômica, constituindo um saber que, consciente da racionalidade dominante no campo das ciências, busca diferentes estratégias na construção de uma racionalidade ambiental (FARIAS, 2008). A edificação dessa racionalidade ganha força na incorporação do discurso ambiental por diferentes discursos contemporâneos, como o científico, o econômico, o jurídico, o educacional e o comunitário, e em diversos contextos, como no âmbito da inovação tecnológica, das práticas de autogestão comunitária, dos novos direitos socioambientais, do ativismo dos movimentos sociais, da produção do conhecimento científico e tecnológico, dos programas curriculares, das práticas pedagógicas e dos espaços 483

institucionais de diálogos interdisciplinares. Importante destacar que a construção da racionalidade ambiental não conforma um conjunto homogêneo, fechado e acabado de conhecimentos, pelo contrário, está inserida na disputa pela hegemonia de sentido, se desdobrando em um campo de formações ideológicas heterogêneas, criando territorialidades em luta, constituídas por uma multiplicidade de interesses e práticas sociais e evidenciando as marcas das contradições e contestações existentes entre suas matrizes discursivas (LEFF, 2006). Dentre essas matrizes discursivas as propostas e práticas associadas às teorias críticas e, mais recentemente, pós-críticas (HART, 2005) ganham força globalmente. No entanto, diante do conservadorismo e tradicionalismo acadêmico/científico e das dificuldades associadas aos complexos processos de transformações paradigmáticas, essas propostas e práticas ainda se encontram nas margens (periferia) do campo ambiental, inclusive em suas associações com o campo educacional. Ao mesmo tempo, são cada vez mais frequentes exemplos de práticas locais (em raros casos nacionais, regionais e até mesmo globais) com sólidos pilares nas teorias críticas e pós-críticas, e a divulgação dos caminhos (possibilidades e limitações) dessas práticas é de essencial importância para o contínuo desenvolvimento e legitimação das bases teóricas da educação crítica (inclusive no campo ambiental). Nesse sentido, o objetivo desse trabalho é divulgar a ideia do lazer vagabundo como parte de uma proposta de aprendizagem experiencial com base na educação ambiental crítica, sustentando-se na importância/necessidade da desconstrução/reconstrução fenomenológica em processos educativos críticos. Para tanto, o trabalho será dividido em três partes: a) na primeira parte do texto serão apresentados elementos teóricos que sustentem a ideia da importância/necessidade da desconstrução/reconstrução fenomenológica em processos educativos críticos; b) a segunda parte será dedicada à ideia do lazer vagabundo como meio para a desconstrução/reconstrução fenomenológica, especialmente em uma proposta de aprendizagem experiencial com base na educação ambiental crítica; c) na última parte serão apresentadas as considerações finais, apontando as possibilidades e limitações dessa proposta. Desconstrução/reconstrução fenomenológica e os processos educativos críticos Dentre as matrizes discursivas associadas ao campo educacional e seus diversos (con)textos, as propostas e práticas fundamentadas em teorias críticas e, mais recentemente, pós-críticas (HART, 2005) ganham força globalmente, processo que começa especialmente a partir dos anos 1970 e se fortalece nas últimas duas décadas. De acordo com os discursos críticos, grande parte dessas propostas e práticas urge por/são dependentes de 484

mudanças/transformações de elementos que, no geral, são constituintes de e constituídos por paradigmas dominantes da atual sociedade, ou seja, rogam por novas/diferentes maneiras de pensar, fazer e ser/existir que implicariam em verdadeiras viradas paradigmáticas. No campo ambiental, por exemplo, as abordagens "holísticas" ou "ontológicas" (no sentido de um retorno ao corpo ou ao humano ), influenciadas em especial pelas correntes filosóficas existencialistas (como, por exemplo, a fenomenologia), ganham força dentro da lógica da educação crítica e, especialmente, pós-crítica buscando o que seria uma virada corporal (SHEETS-JOHNSTONE, 2009). Essas abordagens primariam pela percepção enquanto principal intermédio do corpo com o mundo, o que implicaria numa relação dialógica e integral/não fragmentária. Dessa maneira, teriam forte relação com princípios associados, por exemplo, à justiça social e educação democrática, sendo uma crítica direta às ainda dominantes abordagens com primazia na razão que, legitimando os mecanismos de produção/divulgação do conhecimento pelas estruturas simbólicas e materiais de força, naturalizam os paradigmas dominantes causando a manutenção da ordem social vigente. No entanto, o fato dos ideais da educação crítica, defendidos por movimentos que gozam de certa legitimação global, ainda se encontrarem nas margens (periferia) do campo educacional (incluindo a educação ambiental) nos leva a pensar sobre as limitações dessa abordagem. "Naturalizamos" há séculos uma "ontologia fragmentária" (mente-corpo, homemmundo, teoria-prática, homem-ciência objetiva, etc.), e nossa estrutura social em seu conjunto construiu-se e desenvolveu-se partindo desses princípios fragmentários (inicialmente no ocidente, porém mais recentemente de forma global/globalizada). Além disso, há uma série de premissas "idealistas comumente associadas às abordagens críticas, tais como: a) são as ideias das pessoas (ou melhor, o fato que elas têm essas ideias) que exclusivamente causam comportamentos sociais; b) para as pessoas mudarem (se transformarem, transcenderem) tudo o que têm que fazer é mudar suas ideias sobre o que são e o que estão fazendo no mundo; c) que as pessoas estão dispostas a ouvir a análises racionais de suas vidas e agirem de acordo com essas análises (FAY, 1987). Processos de transformação/transcendência social ou de quebra paradigmática/ virada filosófica dependem de uma complexa teia de acontecimentos de ordem sociológica, e assumir uma postura não idealista é um dos grandes desafios de teorias verdadeiramente críticas. Nesse sentido, o ponto de partida para abordagens críticas está necessariamente associado à ideia de uma desconstrução fenomenológica (PAYNE; WATTCHOW, 2009), seguida de uma reconstrução fenomenológica (des/reconstrução fenomenológica), que possibilite ao indivíduo compreender através da experiência (corporal) os mecanismos de 485

força que fazem parte da construção de estruturas de poder que, classificando/categorizando/legitimando certos saberes sobre outros, servem de pano de fundo para a constituição do real (FAY, 1987; BOURDIEU, 1989; FOUCAULT, 2006). O reconhecimento fenomenológico (corporal/corpóreo) dessa estrutura social organizada por sistemas hierárquicos de poder associado a uma insatisfação legítima/genuína do indivíduo pela ideologia dominante são elementos fundamentais para uma possível virada paradigmática/filosófica, inclusive as que clamam por abordagens educacionais/pedagógicas holísticas/ontológicas. O lazer vagabundo como meio para a des/reconstrução fenomenológica Enquanto fenômeno historicamente constituído, o campo do lazer possui relação dialética com a sociedade, ou seja, a mesma sociedade que exerce influência sobre o seu desenvolvimento (pelas disputas entre atores sociais) também pode ser questionada na vivência de seus valores (em práticas que refletem os ideais constituintes do campo do lazer). Enquanto campo de disputa, não conforma um conjunto homogêneo de conhecimentos, e a multiplicidade de interesses evidencia-se em suas matrizes discursivas. Além das reivindicações pelo lazer enquanto direito para uso efetivo de um tempo e espaço passível de escolha e que não estejam predeterminados pela condição social, as diferentes maneiras de consumo associadas às manifestações de lazer aparecem entre as principais evidências da valorização desse campo nas últimas décadas, considerando o consumo de objetos e bens culturais (shows, livros, CDs, filmes, brinquedos), de equipamentos (academias, centros de compras, parques temáticos, clubes) e de serviços (internet, viagens, passeios) (DE PELLEGRIN, 2006). Nas primeiras décadas do século XX, quando o desenvolvimento cultural dava os primeiros passos em direção a uma consolidação nacional, fortalecia-se uma sociedade de produção industrial. Assim, sem praticamente nenhuma tradição cultural, entramos vulneravelmente na fase da produção e do consumo, situação que explica o rápido crescimento da indústria do lazer (indústria do entretenimento) e a dependência do ser humano pelo consumo do produto lazer (RODRIGUES; STEVAUX, 2010). Essa dependência histórica e cultural à indústria do entretenimento se alicerça, sobretudo, à capacidade de adaptação desse mercado diante de novos fenômenos sociais, sempre garantindo, com a indispensável força da propaganda, novos espaços de atuação. Um exemplo disso é a propaganda bastante convincente direcionada à aquisição de equipamentos para práticas de lazer. A fetichização da mercadoria comprada e consumida 486

diante de uma necessidade criada por uma sociedade cuja essência está emaranhada às relações capitalistas permite, de maneira geral, uma valorização maior dos produtos utilizados do que da própria experiência vivida. Este ciclo gera um estilo de vida emblemático, ligado a um determinado grupo social que tem em seu universo a possibilidade de adquirir/consumir determinados produtos/serviços que não estão ao alcance de todos. Aliás, esta é uma das expressões da grande contradição existente em nossa sociedade contemporânea, um estilo de vida acessível a poucos, mas que se torna a referência para muitos (RODRIGUES; SILVA, 2011). No mesmo sentido constata-se nas últimas décadas um grande crescimento da procura pelas práticas de lazer que de alguma forma estão associadas ao ambiental (sobretudo fora do meio urbano). No entanto, quando associadas à indústria do lazer, essas práticas são geralmente oferecidas como mercadoria ou como elemento compensatório para a vida estressante do meio urbano, fortalecendo a ideia de uma natureza como um espaço alternativo, geralmente ligado a um ideal de beleza e bem-estar. Consequentemente cria-se uma ideia de fuga (espacial e simbólica) da realidade cotidiana, consolidando um ideal preservacionista alicerçado num apelo de sensibilização ambiental que, no geral, não está associado às raízes dos problemas ambientais, afastando-se do significado maior da sustentabilidade, da transformação de uma realidade que é complexa, e de um contexto que é mais amplo, o da coletividade. Em outras palavras, um ideal que dissocia as raízes dos problemas ambientais das questões socioculturais, ao mesmo tempo solidificando as diferenças entre aqueles que podem comprar fugas do cotidiano e os que sofrem diariamente as consequências da desigual distribuição de capitais (materiais e simbólicos) (RODRIGUES; FREITAS, 2011). No entanto, ao mesmo tempo em que o lazer é susceptível às relações de produção e consumo que, ao não questionar os paradigmas sociais dominantes, os legitima, por outro lado práticas de lazer podem gerar questionamentos aos postulados que sustentam a própria estrutura da relação de produção e consumo que alicerça a indústria de lazer (RODRIGUES, 2012). Nesse sentido, a intencionalidade 1 do indivíduo envolvido na prática de lazer tornase elemento fundamental, e podemos compreender o lazer enquanto prática social, ou seja: [...] dimensão da cultura capaz de promover a conscientização dos indivíduos através de suas vivências e experiências (lúdicas ou não lúdicas) de diversos conteúdos culturais em um tempo e espaço próprios, tendo como dimensão fundamental a intencionalidade do ser (SILVA, 2008, p.20). 1 Comportamento corpóreo-mundano e existencial, no qual se constitui e reconstitui o mundo significado (FIORI, 1986, p.4). 487

Esse movimento pode ser identificado, por exemplo, em pesquisas que analisam as sinergias entre atividades de lazer e processos educativos (inclusive associados à educação ambiental). Pois é nessa perspectiva que a proposta de um lazer vagabundo 2 pode ser interessante como estratégia pedagógica para intermediar o complexo processo de des/reconstrução fenomenológica. A proposta de lazer vagabundo é fundamentada pela vivência perceptiva/sensorial com o ambiente por meio de uma concepção fenomenológica de tempo e de espaço dentro de uma proposta de aprendizagem experiencial. Para tanto, a ideia não se baseia apenas em se despir dos objetos/equipamentos materiais usados para trazer mais conforto e melhor desempenho numa vivência corporal com o ambiente, mas principalmente se despir ou por em suspensão a ideia de conforto e desempenho (performance) nessa vivência, permitindo certa estranheza diante de diferentes ambientes. O desconforto num ambiente estranho e a construção de relações que se distanciem dos objetivos de desempenho criam um espaço com claras aberturas para se discutir diferentes aspectos estéticos, éticos e políticos (LEOPOLD, 1987) que envolvem as relações ser humano(sociedade)-mundo(natureza). Aliás, a escolha pelo termo lazer vagabundo justifica-se exatamente pelos aspectos estéticos, éticos e políticos associados a noções temporais/espaciais de vagabundagem (vagabonding), envolvendo significativas questões sobre as relações entre seres humanos sendo-uns-com-outros-ao-mundo. No campo do lazer, por exemplo, põe em questão a noção do tempo ocioso (vagabundo) enquanto tempo não produtivo, colocando em evidência problemas históricos do campo, como a industrialização/mercantilização do tempo de lazer e a utilização produtiva do tempo livre diante da globalização da vida corrida (fast life). Ao mesmo tempo, uma abordagem vagabunda traz à tona manifestações de diferentes movimentos sociais que se fundamentam em princípios como justiça social/ambiental em busca de viradas paradigmáticas que possivelmente proporcionem elementos para o desenvolvimento de sociedades mais justas e igualitárias, como, por exemplo, os movimentos feministas e ambientalistas. No entanto, considerando a natureza práxica (teórico-prática) dos processos educativos, para que a proposta de lazer vagabundo possa potencialmente contribuir para a des/reconstrução estética, ética e política de relações ser humano(sociedade)- mundo(natureza), há necessidade de regar constantemente a experiência com 2 A ideia de lazer vagabundo é baseada no termo vagabonding, utilizado pelo professor Phillip Payne em suas aulas do ano de 2012 na disciplina Experiencing Australian Landscape, oferecida pelo curso de Bacharel in Sport and Outdoor Recreation da Universidade de Monash (Melbourne, Austrália). 488

discussões/práticas que tragam ao conhecimento dos participantes os importantes desenvolvimentos teóricos/práticos que cercam a construção histórica dessas relações. Isso pode ser realizado por um conjunto de estratégias, como um período de preparação prévio ao programa experiencial com leituras, grupos de discussões e atividades de familiarização envolvendo a práxis do lazer vagabundo; atividades realizadas durante o programa experiencial que estimulem vivências reflexivas/perceptivas/sensoriais/criativas em torno dos aspectos estéticos, éticos e políticos das relações ser humano(sociedade)-mundo(natureza), que podem ser propostas/desenvolvidas por qualquer um dos participantes do programa; um período de reflexão pós-programa experiencial, com críticas/autocríticas do desenvolvimento geral da proposta, e possivelmente retomando algumas das leituras iniciais para possíveis reinterpretações. Considerações finais Em primeiro lugar, é importante destacar que a proposta de um lazer vagabundo não tem como objetivo substituir outras/diferentes atividades esportivas e recreativas de lazer (inclusive na natureza), até porque essas podem desenvolver diferentes questões que estão fora do alcance de um lazer vagabundo. No entanto, compreendendo que, no geral, há um histórico processo de esportivização 3 das práticas de lazer, juntamente com uma forte associação dessas práticas à indústria do lazer, a proposta de um lazer vagabundo busca, especialmente pela des/reconstrução fenomenológica, colocar em evidência as relações de força envolvidas nesse processo, assim questionando certos paradigmas socialmente naturalizados que dificultam/impossibilitam um desenvolvimento crítico por meio das atividades de lazer. Como expresso em momento anterior, compreender o lazer enquanto prática social significa reconhecer a intencionalidade do indivíduo envolvido na prática como elemento fundamental para sua significação. No entanto, considerando a natureza social do ser humano, as vivências socioculturais do indivíduo constituem grande parte do pano de fundo no qual sua intencionalidade se apoia, ou seja, os limites da intencionalidade de um indivíduo dependem, em grande parte, de sua experiência sociocultural. Nesse sentido, talvez a maior contribuição da proposta de um lazer vagabundo seja a potencial ampliação desse pano 3 Supervalorização da competição e do elemento espetacular-visual costumeiro no âmbito do esporte de rendimento, vinculado ao interesse da exibição de performance para outrem ou de busca estética compulsiva ao aspecto físico massificado e padronizado pelos meios de comunicação, em detrimento da realização de práticas corporais autônomas e significativas, desenvolvidas pelo prazer desencadeado por elas mesmas, com satisfação pessoal intrínseca (RODRIGUES; GONÇALVES JUNIOR, 2009, p.988). 489

de fundo, permitindo ao indivíduo incorporar, pela aprendizagem experiencial (corporal), ou seja, pela vivência perceptiva/sensorial com o ambiente, uma concepção de tempo e de espaço que possa possivelmente des/reconstruir certos elementos socialmente naturalizados. Por outro lado, há de se reconhecer que a (im)possibilidade de transformar/transcender elementos socialmente naturalizados aparece também como principal possível limitação da proposta. Os processos de naturalização são corporais/corpóreos, e a ideia de que um conceito ou ideia está naturalizado(a) significa que, no geral, o indivíduo não questiona ou nem mesmo percebe que pensa ou age de acordo com esse conceito ou ideia. Nesse sentido, assumir que a apresentação ou mesmo a vivência de novas ideias necessariamente causarão mudanças em comportamentos sociais pode ser um perigoso caminho ao encontro do idealismo. Por outro lado, reconhecer essa limitação e desenvolver a proposta a considerando pode ser um interessante passo no caminho oposto. Referências: BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil,1989. DE PELLEGRIN, A. Lazer, corpo e sociedade: articulações críticas e resistências políticas. In: PADILHA, V. (org.). Dialética do lazer. São Paulo: Cortez, 2006. FARIAS, C. R. O. A produção da política curricular nacional para a educação superior diante do acontecimento ambiental: problematizações e desafios. 2008. 215 p. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008. FAY, B. Critical social science: liberation and its limits. New York: Cornell University Press. 1987. FIORI, E. M. Conscientização e educação. Educação e Realidade, v.11, n.1, p.3-10, 1986. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2006 HART, P. Transitions in thought and practice: links, divergences and contradictions in postcritical inquiry. Environmental Education Research, v.11, n.4, p.391-400, 2005. LEFF, E. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. LEOPOLD, A. A sand county almanac: and sketches here and there. New York: Oxford University Press, 1987. PAYNE, P.; WATTCHOW, B. Phenomenological deconstruction, slow pedagogy, and the corporeal turn in Wild Environmental/Outdoor Education. Canadian Journal of Environmental Education, v.14, p.15-32, 2009. 490

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