COMO JOGAR SUA RÉGUA E SEU COMPASSO NO LIXO Michel Spira 1
INTRODUÇÃO O objetivo desta apostila é mostrar que as construções básicas de geometria clássica, a saber, achar a interseção (caso exista) de (1) duas retas, (2) uma reta e um círculo e (3) de dois círculos podem ser executados apenas com (A) um compasso ou (B) uma régua. Para (B) exige-se também que tenha sido dado um círculo e seu centro, após o que (e somente então) pode-se jogar o compasso fora. Temos então o que chamamos de geometria do compasso e geometria da régua, respectivamente. Na primeira deve-se mostrar como executar (1) e (2), e na segunda os problemas são (2) e (3). Usualmente a geometria do compasso é atribuída a Lorenzo Macheroni (1797) mas é de fato devida a Georg Mohr (1672); a geometria da régua é trabalho de Jakob Steiner (1833). Vamos agora definir o que entendemos por régua e compasso. Uma régua (Euclidiana) é um instrumento ideal que nos permite, dado dois pontos quaisquer no plano, traçar a reta que passa por eles. A palavra ideal é usada acima para chamar atenção para o fato de que pensamos na nossa régua como tendo comprimento infinito. Além disso, ela não é graduada, ou seja, não podemos usá-la para marcar ou transportar comprimentos. Um compasso (Euclidiano) é outro instrumento ideal que nos permite, dados dois pontos A e B, traçar o circulo de centro A que passa por B; suas habilidades acabam aí. O leitor(a) deve pensar em um compasso moderno com um defeito que faz com que suas pernas se fechem assim que ele é levantado do papel, e que tem a capacidade de traçar círculos de raio arbitrário. Para enfatizar: dados três pontos distintos A, B, C o nosso compasso não nos permite, a priori, traçar o círculo de centro A e raio BC, pois para isto teríamos que carregar BC até A. Uma última observação sobre os objetos geométricos com os quais vamos trabalhar. Na geometria do compasso, uma reta é considerada conhecida desde que sejam dados dois de seus pontos; isto corresponde a dois pontos determinam uma única reta. Analogamente, na geometria da régua, um círculo será considerado uma vez dados seu centro e seu raio, ou seu centro e um de seus pontos. 2
NOTAÇÃO A, B, C,... - Pontos do plano a, b, c,... - Números reais positivos AB - Reta que passa por A e B AB - Comprimento do segmento determinado por A e B O(a) - Círculo de centro O e raio a O(P) - Círculo de centro O e passa por P S(P, l) - Simétrico do ponto P com relação à reta l. 3
A GEOMETRIA DO COMPASSO 1. Achar a mediatriz do segmento AB. Sejam C e D os pontos de A(B) B(A); CD é a mediatriz procurada. 2. Dados A, B e C distintos, achar S(C,AB). Em geral, C =S(C,AB) é determinado a partir de A(C) e B(C) como na figura. Caso A, B e C estejam em uma mesma reta, então A(c) e B(c) serão tangentes, isto é, C = C.Isto nos dá um teste prático para decidir se três pontos distintos estão alinhados ou não. EXERCÍCIO: Dados três pontos colineares, decidir qual está entre os outros dois. 4
3. Dados O e a = AB, construir O(a). Basta construir a mediatriz l do segmento AO e B = S(B,l). O(B ) é o círculo procurado. 4. Dados A, B, X e Y não alinhados três a três, decidir se X e Y estão em um mesmo semiplano com relação a AB. Se X = S(X,AB) então X e Y estão no mesmo semiplano com relação a AB se Y(X) é interior a Y(X ), e em semiplanos opostos caso contrário. PERGUNTA : Por que Y(X) e Y(X ) não coincidem? 5. Dados a = AB e n NATURAIS, construir um segmento de comprimento na. Traça-se B(A); por meio de A(B) determina-se A 1, por meio de A 1 (A) acha-se A 2 e C é encontrado usando-se A 2 (A 1 ). Temos AC = 2a. Repetindo-se a construção com B e C em 5
vez de A e B obtemos o ponto D, e temos AD = 3a, etc. O fato importante a lembrar nesta construção é que o lado do hexágono regular inscrito em um círculo é igual ao raio. 6
6. Achar O(a) AB. Seja O = S(O,AB). Se O O então basta traçar O (a) e verificar a interseção de O(a) e O (a); as possibilidades são dois pontos, um ponto ou uma interseção vazia que correspondem aos possíveis casos de O(a) AB. Se O = O a construção não se aplica de vez que A, B e O são colineares. Tomemos P arbitrário em O(a) e seja P = S(P,AB). Se P = P então P AB, ou seja, P é um dos pontos de O(a) AB; o outro é então achado por um processo idêntico ao usado na construção 5. Se P P então os pontos procurados são os pontos médios dos arcos determinados por P e P em O(a); este é o assunto da próxima construção. 7. Achar o ponto médio do arco ÂB em O(r). Vamos supor que os pontos O, A e B não são colineares. (Exercício: o que fazer caso eles sejam colineares?) Seja C um dos pontos de A(r) O(a), escolhido de modo que A e C estejam no mesmo semiplano em relação a OB; construímos D de maneira semelhante. Seja Π o semiplano determinado por A com relação a OC; a partir de agora todos os nossos pontos serão achados em Π. Nosso objetivo é achar M, o ponto médio de ÂB em Π. Seria muito conveniente se construíssemos algum segmento de comprimento CM pois neste caso M seria achado como a interseção de O(r) com o círculo de centro C e o raio igual ao comprimento do segmento construído. O teorema de Pitágoras nos dá uma expressão algébrica para CM: CM 2 = a 2 + r 2 CM = a 2 + r 2 Vamos começar nossa perseguição a CM olhando para o paralelogramo OBCA. Temos, no triângulo PBO: 7
BP 2 = r 2 a 2 4 donde olhando para triângulo PCB CB 2 = (a + a 2 ) 2 (r 2 a2 4 ) = 2a2 + r 2 Determinamos agora o ponto E como a interseção de C(B) e D(A); temos então ou seja, OE 2 = (2a 2 + r 2 ) a 2 = a 2 + r 2 OE = a 2 + r 2 Construímos então um segmento de comprimento exatamente CM. Nosso problema está pronto: M é a interseção de C(OE) e D(OE). 8. Dado A, B, C e D não colineares três a três, determinar se AB e CD são paralelas. Seja Π o semiplano no qual se encontra C em relação a AB, e seja E o ponto de C (AB) B(AC) que se encontra em Π. Então AB e CD são paralelas se C, D e E são colineares, e AB e CD são concorrentes caso contrário. 9. Dados A, B, C e D não três a três colineares, achar AB CD. Primeiro verificamos, com a construção de (8), se AB // CD. Vamos supor que este não é o caso, e também que C e D se encontram em um mesmo semiplano com relação a AB. Sejam C = S(C,AB) e D = S(D,AB); o ponto procurado é então E = CD C D. Seja F o ponto de C(C D ) D(CC ) que está em Π, então CC D F é um paralelogramo. Da semelhança dos triângulos CDF e EDD tiramos 8
DF = DC DD DE Essa equação mostra que o comprimento desconhecido DE é a quarta proporcional entre os comprimentos conhecidos DF, DD e CD. 9
Se conseguíssemos construir DE o nosso problema acabaria, pois E é um dos pontos de D(DE) D (DE) (qual deles?). Isto nos leva à nossa última construção. 10. Dados a, b, c > 0 construir x tal que a/b = c/x. Para começar notamos que sempre se pode supor c 2a, pois se este não for o caso trocamos a e b por na e nb para n N grande o bastante (construção 4). Tracemos O(a) e O(b). Seja L um ponto qualquer de O(a) e M um ponto de O(a) L(c); para garantir a existência de M é que precisamos de c 2a. Seja S um ponto de O(b) tal que O, L e S não sejam colineares, e seja t = LS. Finalmente, seja T um ponto de O(b) M(t) escolhido de modo que S e T estejam em semiplanos opostos com relaçao a OM, e seja x = ST. Temos OTM = OSL, donde os ângulos TÔM e SÔL são iguais; logo os ângulos TÔS e MOL são semelhantes. Então a/c = b/x, isto é, ST é o comprimento procurado. 10
A GEOMETRIA DA RÉGUA Como mencionado na introdução, para efetuar as construções básicas com uma régua é necessário que seja dado um círculo fixo e conhecido seu centro. No que se segue este círculos será sempre denotado por O(r). 1. Dados A, B, M, P onde M é o ponto médio de AB e P paralela a AB por P. NÃO PERTENCE AB, traçar a Seja T um ponto arbitrário de AP escolhido de modo que P esteja entre A e T. Seja S = TM BP e Q = AS TB; então PQ é a paralela procurada. Para mostrar isto, consideremos a paralela por S a AB, que determina pontos G e H em AT e BT respectivamente. Então TGS TAM GS AM = T S T M THS TBM SH BM = T S T M e como AM = BM segue que GS = SH. Agora PGS PAB P B P S = AB GS QSH QAB QA = AB QS HS donde P B P S QA -1 = QS SB -1 = SA P S QS Trocado em miúdos, (*) nos diz que ABS QSP. Mas então S ˆP Q = S ˆBA, isto é, PQ // AB. 11
2. Dados A, B, P com P NÃO PERTENCE AB, traçar a paralela a AB por P. Usando a construção anterior, vemos que só é necessário acharmos na reta AB um segmento qualquer do qual conheçamos o ponto médio. Para isto, seja Z AB qualquer e sejam M e N os pontos de ZO O(r). Seja U um ponto de O(r) distinto de M e N. Como O é o ponto médio do segmento MN podemos traçar por U uma paralela a MN; seja X a interseção desta paralela com AB. Se V é o outro ponto de UO O(r) traçamos por V outra paralela a MN que corta AB em Y. Então Z é o ponto médio de XY, e podemos alegremente proceder a traçar a paralela a AB por P. Exercício: Dados A e B, achar o ponto médio do segmento AB. 3. Dados A, B, C traçar a perpendicular a AB por C. Seja X um ponto de O(r) tal que OX não seja paralela a AB. Por X traçamos uma paralela a AB que determina outro ponto Y em O(r). Finalmente, seja Z = OX O(r). Então a paralela a ZY por P é a perpendicular procurada. Pergunta: e se X = Y, isto é, se a paralela a AB por X é tangente a O(r)? 4. Dados A, B, P AB e a = XY, marcar a em AB a partir de P (em ambas as direções). Por P e O traçar paralelas a XY, determinando U em O(r). Por X traçar uma paralela a YP, determinando Z. Por O traçar uma paralela a AB, determinando V. A paralela UV por Z intercepta AB em Q; então P G = a. Exercício: discutir todos os casos especiais não considerados acima. Por exemplo, 12
XY AB; X, Y, P colineares; etc. E como marcar a na outra direção? 13
5. Dados comprimentos a, b, c construir x tal que a/b = c/x. Em um par de retas concorrentes qualquer em um ponto A, marcamos (com a ajuda da construção anterior) AB = a, BC = c e AD = b como na figura. Por C traçamos uma paralela a BD, determinando E em AD. Então x = DE é o comprimento procurado. 6. Dados a e b construir ab. Marcamos A, B e C em uma reta qualquer tal que AB = a e BC = b (B entre A e C). Por O traçamos uma reta paralela a AC, determinando A e C em O(r) como na figura. Seja X = AA CC (pergunta: e se AA // CC?). Por B = BX A C traçamos uma perpendicular a A C, determinando o ponto D em O(r). Finalmente achamos o ponto D como a interseção de BX e a paralela a C D por C. Então X = DB é o comprimento procurado. Esta construção parece mais complicada do que realmente é. A chave é notar que ADC A D C e que o A D C é retângulo pois está inscrito no semicírculo. Logo D B é a média proporcional entre A B e B C ; por semelhança, BD é a média proporcional entre AB e 14
BC, como queríamos. 15
7. Achar X(a) AB. Seja P o pé da perpendicular de X a AB. Para achar X(a) AB basta marcar b a partir de P em ambas as direções em AB, onde b é como na figura. Como a 2 = b 2 + h 2 obtemos b = (a h)(a + h). Como sabemos construir a - h e a + h (construção 4) podemos achar b pela construção G e o problema está pronto. Pergunta: a minha figura foi desenhada de modo a que X(a) AB tivesse dos pontos, mas a interseção de uma reta com um círculo pode também consistir de apenas um ponto ou então ser vazia. Como estes casos aparecem no raciocínio acima? 8. Achar X(r) Y(s). Não há perda de generalidade se supormos r s. Seja d = XY ; usando a construção 4 podemos comparar d com r + s e r - s, obtendo a seguinte informação: Círculos tangentes d = r + s d = r - s Interseção vazia d < r - s d > r + s O leitor(a) fica encarregado(a) de determinar o ponto de interseção de X(r) e Y(s) no caso em que eles são tangentes; aqui vamos nos preocupar com o saco em que a interseção consiste de dois pontos. Seja A em destes pontos, conforme a figura ao lado; para determinar A é suficiente conhecermos a, b e h como dados numa visão ampliada do XAY. Interseção igual a dois pontos r - s < d < r + s 16
donde Os únicos elementos que temos para isto são r, s e d. Vamos fazer algumas contas. Temos r 2 a 2 = h 2 = s 2 b 2 r 2 s 2 = a 2 b 2 (r s)(r + s) = (a b)(a + b) Nesta última equação podemos construir r - s, r + s e d = a + b. Isto então nos permite construir a - b, pois a + b r s = r + s a b e basta aplicar a construção 5. Tendo a - b e a + b nas mãos sabemos então construir (a + b) = (a b) = 2a e como sabemos achar pontos médios de segmentos (exercício, construção 2) podemos construir a. Finalmente, de h 2 = r 2 a 2 = (r + a)(r a) vemos que h = (r a)(r + a); como sabemos construir r - a e r + a, temos h pela construção 6. Podemos assim determinar A, e o outro ponto de X(r) Y(s) é achado de maneira trivial. 17