Reforma Agrária: Aspectos Jurídicos da Desapropriação da terra. Abstract

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Transcrição:

Reforma Agrária: Aspectos Jurídicos da Desapropriação da terra Antonio Goulart Filho 1 ; Felipe Miguel de Souza 2 1 Pesquisador UFPR, antonio.ufpr@yahoo.com.br ; 2 Pesquisador, UFPR, felipepaixaum@yahoo.com.br Abstract Nada obstante exsurgir desde longa data, a Reforma Agrária, no Brasil conserva sua atualidade. Vale dizer, a Reforma Agrária conserva sua pujança e contemporaneidade no que diz respeito a sua tensão face ao direito de propriedade. Na medida em que o sistema econômico capitalista exacerba os instrumentos de lucro, a pessoa humana vivencia a desigualdade e a exclusão na sociedade hodierna. De modo que a Constituição Federal de 1988 vem (re)construir a sociedade brasileira a partir de princípios e valores de grande carga social e de dignificação da pessoa humana. Neste sentido, o acesso à terra através da Reforma Agrária tenta superar a concentração e a marginalização na posse e na propriedade agrária no Brasil. Isso posto, com fundamento e limite no ordenamento jurídico brasileiro, constitucional e infraconstitucional, investigam-se as condições de possibilidade à consecução da Reforma Agrária no Brasil. Desse modo, a análise do direito positivo vigente e da jurisprudência dos tribunais delineiam sua efetividade, visto que sua eficácia é reconhecida. Por um lado, a grande propriedade, via de regra, pode ser desapropriada para fins de Reforma Agrária, mas, por outro, também aquela propriedade que não cumpre sua função social nos termos da Constituição Federal, a qual indica os parâmetros de verificação desse conceito aberto. Especialmente, nesse ponto, função social, cabe algumas considerações mais pormenorizadas, se se deve considerar em uma interpretação restrita, ampla ou amplíssima, de modo a trazer desde o cotejo da jurisprudência o entendimento dos tribunais que vem concretizando a desapropriação para fins de Reforma Agrária com fundamento no descumprimento da função social da propriedade, no desrespeito e degradação do meio ambiente, inclusive. Desse modo, sopesando o parâmetro normativo e a jurisprudência delineiase, sobretudo, o dimensionamento dado ao conceito normativo da função social da propriedade. Neste ínterim, conclui-se pela necessidade de uma hermenêutica mais progressista, com compreensão holística do sistema jurídico-constitucional, no enaltecimento da pessoa humana e na proteção aos recursos ambientais, os quais dão suporte à realização dessa mesma dignidade. 1. Introdução O Iluminismo, para se afastar da estrutura social medieval, traz uma série de concepções novas. Para criar um ser humano autônomo, distinto daquele preso ao feudo, dividiu a sociedade em duas esferas, regidas por normas distintas. De um lado, temos a esfera pública e política, a qual vai ser exercida em um âmbito estatal, esfera de decisões sobre a coletividade. De outro, temos a esfera privada e, principalmente, econômica, na qual se pode fazer tudo que não for proibido. Liberdade formal, de iniciativa, portanto.

Essas concepções vêm da profunda ligação entre Iluminismo e a burguesia da época. Vinham privilegiar a autonomia individual para que a economia de troca pudesse ser realizada sem os empecilhos advindos da estrutura feudal. Vem daí a noção de um indivíduo proprietário, livre para realizar o comércio que depende daquilo que se troca e daquele que troca. Neste condão é formulada a figura do Estado. Tendo por mote permitir o acesso (para quem tinha poder econômico) às instâncias decisivas, de modo que se consagrasse também a mínima interferência do Estado na esfera privada. Neste sentido, criou-se um direito positivo, único a ser considerado, originado do Estado, a fim de se ter segurança jurídica para haver realização das trocas econômicas. Na esfera do indivíduo autônomo cria-se a figura do sujeito de direito, ligado à idéia de pessoa. Para complementar esta figura, lhe é imputado o direito subjetivo. Temos uma pessoa abstrata dotada de um direito que deve ser cumprido por alguém e assegurado pelo Estado, molde vindo da relação contratual, portanto consagração do contrato. Ainda, neste modelo simplista faz-se uma adaptação para que se encaixe um elemento fundamental às relações econômicas: tem-se também o direito subjetivo de propriedade, capacidade de usar, gozar e fruir uma coisa, oponível erga omnes, absoluto. Assim, consolida-se o valor burguês, no direito estatal, do indivíduo proprietário, aquele ser abstrato, sem base no caso concreto, que só existe em torno da propriedade privada. A lei, supostamente vontade popular por ser manifestação da esfera pública vinda dos representantes do povo, vai consagrar o um caráter individualista e liberal, culminando nas codificações civis, consideradas constituições da vida privada. 2. Desenvolvimento O Brasil vai receber este modelo europeu do código do indivíduo proprietário, de interesse a nossas elites rurais locais. No entanto, há também um combate feito contra este individualismo em prol da valorização do social e do coletivo. Na nossa Constituição de 1988 transparece este embate individual versus social, que poderia ser demonstrado em várias passagens, mas nosso escopo é em um ponto específico: a função social da propriedade, mais especificamente da propriedade rural e de sua desapropriação. A função social, como o próprio nome indica, diz respeito aos benefícios que a propriedade deve gerar para a coletividade. Percebe-se aqui a superação do individualismo estrito que informou a codificação. Não basta que se gerasse benefícios do uso, gozo e fruição apenas para o proprietário, faz-se necessário que a sociedade como um todo receba um impacto positivo da utilização desta propriedade. Dito isto, coloca-se uma questão de suma importância para o seguimento da exposição: cabe saber se a função social é um limite ao direito de propriedade ou se é elemento constituinte e intrínseco deste. Fazer tal distinção é de fundamental importância. Se entendemos que é um limite, a propriedade pode ser usada da forma que o proprietário bem entender, desde que não gere dano a outrem, sendo mera abolição do direito de abusar da coisa vindo do direito romano. Se compreendemos que é intrínseca, a própria utilização deve ser voltada para que a sociedade receba benefícios. Parece-nos que o segundo entendimento é o mais adequado, por corresponder mais adequadamente as normas programáticas sociais constitucionais sem que haja desrespeito aos direitos e garantias individuais. Além do mais, parece ter sido esta a opção do legislador constitucional e do infraconstitucional, ao colocar inclusive restrições ao modo de uso que aparentemente em nada atrapalha a outrem, como, por exemplo, a necessidade de haver produtividade no imóvel rural e na hipótese de IPTU progressivo conforme houver menos área construída em certas regiões de cada cidade.

Se é esta a opção do legislador constitucional, parece legítima a hipótese de desapropriação por descumprimento da função social. Se fosse a função social mero limite externo, o proprietário que infringisse norma referente à função social apenas não poderia mais contar com a tutela jurídica, o que não é o caso. Sendo a função social elemento pressuposto ao exercício do direito de propriedade, a pessoa que não a cumpre perde este direito, cabendo ao Estado fazer com que a coisa tenha os efeitos sociais que dela eram esperados sejam efetivamente realizados. Para tanto, deve o Estado retirar deste proprietário infringente da norma o seu poder que não foi bem exercido e exercê-lo diretamente ou ceder-lhe a algum outro disposto a fazê-lo corretamente. A necessidade de que quem receba este direito seja alguém que não conte com outra propriedade decorre da necessidade de distribuição de riquezas, com vistas a chegar a uma maior igualdade material entre as pessoas. Dito isto, fecharemos nossa análise na função social da propriedade rural e nas hipóteses de sua desapropriação. Nossa Carta Magna, em seu artigo 184, consagra quatro pontos que devem ser observados para que haja cumprimento da função social da propriedade rural, a saber: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, observação das normas trabalhistas e exploração do imóvel com vistas a benefícios para proprietários e trabalhadores. Tais pontos são pressupostos do direito à propriedade rural e, portanto, devem ser cumpridos simultaneamente. Não sendo algum deles cumprido, conforme o artigo 186 da Constituição, cabe a desapropriação. Na esteira do professor Carlos Frederico Marés, tem-se a crítica a esse modelo: Note-se que a exigência legal é pequena: basta cumprir as normas ambientais e trabalhistas, produzir adequadamente e gerar harmonia entre os trabalhadores, isto é, não se exige nem o cumprimento de políticas agrícolas, espécie de produção, espécies de produção, nem sustentabilidade da área plantada. 3 Sendo assim, ponto polêmico em nossa Carta Magna reside no artigo 185, inciso II, que diz que a propriedade produtiva não será desapropriada, o que gera uma antinomia com os artigos 184 e 186. Como pode a propriedade não cumpridora da função social estar assegurada contra a desapropriação, bastando para tanto apenas que ela seja produtiva? Para resolver esta antinomia, cabe uma interpretação sistemática da Constituição, uma vez que os critérios tradicionais de hierarquia, temporalidade e especificidade das normas não cabem aqui. Tal interpretação demandará levantamento de vários pontos importantes acerca do tema. Nossa Constituição consagra valores sociais, que devem prevalecer acima do egoísmo individual. Ao consagrar quatro pontos que devem ser observados para que haja cumprimento da função social, o fez para que estes fossem observados simultaneamente. Não sendo algum destes, qualquer um, a função social não é cumprida e deve ocorrer a desapropriação. Se houver alguma modalidade de descumprimento da função social que seja privilegiada, haverá um descumprimento do princípio da igualdade. Pior do que isto, nossa Carta Magna estaria tutelando um abuso de direito, o que é uma interpretação absurda. Partimos do pressuposto de que o sistema constitucional deve ser uma unidade coerente e coesa. Conflitos de princípios e regras podem até ocorrer no caso concreto, mas de jeito nenhum podem estar presentes na própria esfera normativa. Aliás, a questão deve ser tratada num nível anterior, que inclusive descaracteriza a própria antinomia. Estamos falando aqui do próprio conceito de produtividade. Quando falamos nela, pensamos apenas no aspecto econômico, nos índices de GUT e GEE. Mas produtividade tem 3 MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.p. 124

como elementos pressupostos, conforme o texto constitucional, a racionalidade e a adequabilidade. Não se tratando de uma produtividade que respeite normas trabalhistas e/ou ambientais, não é racional e nem adequada. Produtividade não deve ser considerada apenas no seu aspecto quantitativo. Uma propriedade que atinge os níveis adequados de produção, mas polui o rio que é usado na cidade vizinha para abastecimento de água está sendo mais improdutiva do que a fazenda que não faz nenhum dos dois, pois, embora não produza o suficiente, ao menos não prejudica a condição de vida de várias pessoas. Assim, temos que o artigo 185, inciso II da Constituição visa tutelar apenas a propriedade que cumpre a sua função social. Não protege, portanto, aquele que meramente atende a índices quantitativos, mas ignora a parte qualitativa. E esta é uma concepção que nosso Judiciário ainda tem que apreender, pois as desapropriações por danos ambientais e por desrespeito a normas trabalhistas ainda engatinham no nosso país. O que acontece é que a grande maioria das desapropriações feitas pelo INCRA (único órgão que pode fazer desapropriação para fins de reforma agrária) obedece apenas o critério da improdutividade. Discorreremos como se dá o processo. Apenas grandes fazendas (com mais de 15 módulos fiscais; o valor do módulo fiscal varia em cada região) podem ser desapropriadas, embora proprietários que possuam mais de uma fazenda possam ser desapropriados de fazendas menores. A desapropriação pode ocorrer ainda que a fazenda esteja parcial ou integralmente em área urbana, pois o que a caracteriza como tal é o fim no setor primário (extrativismo, agricultura etc.). O proprietário NÃO tem que concordar para que ocorra a desapropriação, embora tenha que ser indenizado. A CF, art. 184, estabelece que ele receberá títulos da dívida agrária, resgatáveis a partir de dois e em até vinte anos, com devidas correções e pagamento de juros. Benfeitorias são indenizadas em dinheiro. O procedimento para desapropriação para fins de reforma agrária é um processo um pouco longo. Comumente começa com a ocupação da terra, denunciada por trabalhadores como improdutiva e não-cumpridora da função social. Ocorre no INCRA uma reunião do CDR (Comitê de Decisão Regional) para decidir se a fazenda será objeto de vistoria. O INCRA comunicará ao proprietário a data da vistoria. Só a fará se o proprietário assinar a notificação. Ou então, publicará em jornal de grande circulação por três dias seguidos. De qualquer modo, a visita deve ocorrer a partir de três dias úteis da comunicação ou do último dia. Esta vistoria verificará a produtividade, o cumprimento da função social e a viabilidade de assentamento de família. É feito um laudo de vistoria, que deve conter data, nome(s) do(s) proprietário(s), nome de quem acompanhou os técnicos e informações corretas da produção. Há três laudos possíveis: fazenda improdutiva e não-cumpridora da função social, que pode ser desapropriada para fins de reforma agrária; fazenda produtiva mas não-cumpridora da função, que pode ser desapropriada para reforma agrária ou para interesse social; fazenda produtiva e cumpridora da função social, que ainda pode ser desapropriada para interesse social, mas não pelo INCRA, devendo ser por outras esferas de governo. O INCRA utiliza dois critérios para calcular a improdutividade, o Grau de Utilização da Terra (GUT) e o Grau de Eficiência na Exploração (GEE), tendo a fazenda que atingir certos resultados em AMBAS. Ainda, o laudo deve trazer a possibilidade de assentar famílias. Em caso de negativa, pode-se recorrer na Câmara Técnica do INCRA, que opina e envia o processo para o CDR decidir. O proprietário deve ser comunicado do laudo, podendo recorrer em até 15 dias no caso de opinião favorável à desapropriação. O recurso é levado ao CDR e, julgado que o proprietário não tem razão, leva-se o procedimento adiante. O proprietário pode recorrer à Justiça, pedindo que o INCRA pare o procedimento. Muitos alegam erros na vistoria, na notificação e/ou nos prazos. Por várias vezes, são alegações falsas,

que causam danos a famílias sem-terra. No caso de morte do proprietário, discute-se o que fazer, havendo duas possibilidades: desapropria-se de qualquer forma; ou passa a ser pequenas propriedades divididas entre os herdeiros, não podendo desapropriar-se. Se houver danos à produtividade da fazenda antes da vistoria, não pode haver desapropriação, cabendo ao proprietário o ônus da prova desta força alheia, natural ou humana. Invasões antes da ou durante a vistoria incorrem neste risco, especialmente se tomarem grandes proporções da fazenda. Invasões posteriores não impedem a desapropriação. Se, apesar disso, o CDR aprovar o laudo, este irá para Brasília com os documentos principais. O INCRA nacional analisará o processo técnica e juridicamente, encaminhará para o Ministro do Desenvolvimento Agrário, que analisará novamente a parte jurídica e encaminhará para a Presidência. Avaliado o processo, o Presidente assina e publica o decreto de desapropriação para fins de reforma agrária. Então, o INCRA local entra com a ação de desapropriação e pede a posse da fazenda ao juiz para fazer o assentamento, o que deve levar 48 horas. Além da desapropriação para fins de reforma agrária, a Lei nº 4.132/62 autoriza desapropriação por interesse social. Aqui, indenizar-se-ia benfeitorias e terras com dinheiro. Qualquer governo pode fazer esta desapropriação, não apenas o federal. Mas o consentimento do fazendeiro ainda não é obrigatório. O Decreto 433, de 23/01/1992, autorizou ao INCRA adquirir por compra terras de fazendeiros, para se evitar o conflito social. Mas aqui o fazendeiro negocia o preço a ser recebido. 3. Conclusão Em que pese a consagração de valores progressistas da nossa Constituição e o estabelecimento de quatro critérios para que haja o cumprimento da função social exigido, o que ocorre na prática é uma hierarquia que coloca o art. 185, II em posição superior aos art. 184 e 186. Faz-se, portanto, necessário repensar tal posição. Nosso ordenamento jurídico tem revelado um esforço no sentido de superar o individualismo proprietário enquanto valor absoluto e é necessário que tal concepção seja absorvida pelos aplicadores do direito. 4. Bibliografia CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio Mínimo. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. PINTO JÚNIOR, Joaquim Modesto; FARIAS, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2005.