Bisa Bia, Bisa Bel: a transformação da personagem feminina na literatura infanto-juvenil I Carine Fontanella Silvia Niederauer UNIFRA Por volta do século XVIII, surgem as primeiras expressões literárias dirigidas ao público infantil. Tal nascimento só é possível a partir do momento em que há um processo de ascensão da burguesia e uma significativa mudança nos valores da sociedade. Nesse contexto de modificação de valores cria-se o conceito de criança, que antes era vista como um adulto em miniatura e, conseqüentemente, emerge uma literatura voltada para ela. Para abarcar as necessidades do público infantil, nasce um modelo de narrativa, inicialmente com caráter pedagógico, com tom moralizante, a fim de educar, por meio da literatura, a nova classe que figurava na sociedade. Tal modelo de narrativa ficou conhecido como conto de fadas. Os contos de fadas, como primeira expressão literária voltada ao público infantil, apresentavam caráter moralizante, ou seja, tinham a intenção de educar por meio de exemplos e castigos presentes na narrativa. A presença do maniqueísmo era fortemente marcada. Os personagens bons eram muito bons, e tal bondade era recompensada, enquanto os personagens maus eram terrivelmente maus, recebendo castigos terríveis ao final da história. Dessa forma, o maniqueísmo ditava o tom moralizante da história. A mulher, na sociedade da época, exercia um papel secundário, extremamente dependente do homem, que era a base da família. Dessa forma, eram passivas às adversidades e desprovidas de iniciativas para a tomada de decisões. Tal falta de autonomia imposta às mulheres é refletida nos contos de fadas primordiais e pode ser percebida em suas representações, como a das princesas, que são as personagens centrais dessas histórias. Toma-se por exemplo o conto Cinderela, dos Irmãos Grimm. Também conhecida como Gata Borralheira, ela pode ser vista como a representante da mulher daquela época, pois sua passividade
2 diante dos problemas que enfrenta está em conformidade com a condição feminina daquele momento. A moça, mesmo sendo uma princesa, deixa-se abater por conta da inveja e ciúmes que a madrasta e suas filhas sentem dela. A submissão dessa personagem é significativa para atestar a realidade da mulher da sociedade em questão que, em geral, apenas aceita, de forma passiva, tudo que lhe é imposto. Cinderela somente poderá ter essa dura realidade alterada com a ajuda do elemento maravilhoso, que realizará seus desejos a fim de mudar seu destino e promover o final feliz, típico dos contos de fadas tradicionais. Com o passar do tempo, a estrutura da sociedade muda e, conseqüentemente, o papel da mulher que, no século XX, torna-se autônoma, ou seja, capaz de tomar decisões e agir por conta própria sem precisar da permissão do homem, opondo-se, dessa forma, ao modelo feminino que configurava a sociedade de séculos passados. Tais mudanças foram refletidas na literatura infanto-juvenil, sendo que as personagens femininas igualmente sofreram as modificações decorrentes da evolução da sociedade e, também, pelo novo espaço que a literatura destinada ao público jovem conquista. Um exemplo é a personagem Isabel, de Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado. Isabel é uma menina com vontades e ação e, no decorrer da narrativa, mostra toda sua autonomia e afirma sua identidade feminina no século XX. II Pode-se dizer que Isabel é o retrato da nova postura que a mulher assume na contemporaneidade, agora, não mais alienada do que se passa a sua volta, com consciência de seu papel no presente, sem descartar o passado e, ao mesmo tempo, com olhar no futuro. Tais evidências são representadas pela narrativa desenvolvida por Ana Maria Machado. No enredo de Bisa Bia, Bisa Bel há um entrelaçar de presente, passado e futuro, por meio da personagem Isabel, a partir da qual ressoam as vozes de sua bisavó já morta (passado) e de sua bisneta, que ainda não nasceu (futuro): Mas também tem horas em que, apesar de saber que é tão mais fácil seguir os conselhos de Bisa Bia, e que nesse caso
3 todos vão ficar tão contentes com o meu bom comportamento de mocinha, tenho uma gana lá de dentro me empurrando para seguir Neta Beta, lutar com o mundo, mesmo sabendo que ainda vão se passar muitas décadas até alguém me entender (MACHADO, 2000, p.53). A menina é autônoma, e não exerce posição de passividade, diferenciando-se de Cinderela, para continuarmos com o exemplo referido. Bel demonstra todos os seus anseios e os soluciona, sem a ajuda de elementos fantásticos, ou seja, é agente de seu destino. Para Sonia Khéde Isabel avalia sua identidade a partir dela mesma e a partir do confronto com outras vozes que são projeções de egos sociais incorporados ou rejeitados (Khéde, 1986, p.71). A partir de tal citação pode-se constatar que a menina, com a ajuda do entrelaçamento de vozes entre sua bisavó e bisneta, vai afirmando sua identidade no decorrer na narrativa: Dessa vez, a pesquisa do colégio não é só em livros nem fora de mim. É também na minha vida mesmo, dentro de mim. Nos meus segredos, nos meus mistérios, nas minhas encruzilhadas escondidas, Bisa Bia discutindo com Neta Beta e eu no meio, pra lá e pra cá. Jeitos diferentes de menino e menina se comportarem, sempre mudando. Mudanças que eu mesma vou fazendo, por isso é difícil, às vezes dá vontade de chorar (MACHADO, 200, p.62). Assim, segue a narrativa, com as três vozes formando um especial diálogo a partir da personagem Isabel, demonstrando as diferenças ideológicas que marcaram as concepções sobre o papel da mulher no decorrer de gerações. De acordo com as mudanças de valores da sociedade, as personagens femininas as acompanham, tornando-se mais nítida na narrativa quando há o confronto de pensamento e valores entre Bel, Bisa Bia e Neta Beta. A identidade feminina e constituída em Bisa Bia, Bisa Bel, não só pelas atitudes de Isabel, mas também na conjunção entre presente, passado e futuro, imprime uma transição de pensamentos e anseios entre as gerações, fazendo com que a personagem feminina cresça e seja representante de uma nova estrutura social. A respeito disso, pode-se considerar que Isabel é uma personagem contemporânea e com o qual nos identificamos imediatamente. Em qualquer idade (KHÉDE, 1986, p.71).
4 Ao expressar seus anseios, e resolvê-los de forma independente, ou seja, sem a ajuda do elemento fantástico, opondo-se, por isso, à Cinderela, Isabel torna-se agente da própria história, representando, através da literatura, as aspirações femininas de uma nova época. Segundo Regina Zilberman, as personagens femininas relacionadas antes [contos de fadas tradicionais] têm algumas particularidades que as tornam mágicas (ZILBERMAN, 2005, p.82). Seguindo esse pensamento, a mesma autora afirma que As jovens que, daqui para frente, passam para o primeiro plano, não têm qualquer atributo mágico, não dispõem de auxiliares capazes de ações sobrenaturais, e vivem a mesma realidade cotidiana e problemática experimentada pelo leitor (ZILBERMAN, 2005, p.82). Isabel é uma menina como outra qualquer, com vontades e dúvidas próprias de uma adolescente de sua idade; apenas, incorpora a sua vida presente, e de forma bastante incisiva e questionadora, a presença de atitudes aceitas no passado, do qual faz parte sua bisavó. O conflito de posicionamentos enfrentados por Isabel coloca em confronto direto atitudes de comportamento pretéritas e atuais, fazendo com que a menina tenha que resolver esse impasse por conta própria, isto é, cabe a ela a posição de agente das alternativas e das escolhas a serem feitas. O conflito ganha novas proporções quando entra em cena uma terceira voz, a da bisneta da personagem central, Neta Beta. Então o jogo temporal se intensifica, a partir do momento em que há o choque de visões de mundo entre as três gerações passado-presente-futuro: Do diálogo entre a bisavó e a bisneta, nasce o cotejo entre dois tempos e duas visões da mulher, a antiga e convencional, representada por Bia, e a moderna e descontraída, encarnada por Bel. (...) Assim, nenhum ponto de vista seja o do passado, o do presente ou o do futuro é definitivo, conclusão a que chega Bel, após a experiência tridimensional do tempo (ZILBERMAN, 2005, p.85). Em Bisa Bia, Bisa Bel há a incorporação de um novo olhar para a mulher, no que tange ao seu modo de ser e de atuar na sociedade. É isso
5 que o faz diferente de Cinderela. Enquanto no segundo, tem-se a sombra da mulher, uma vez que a personagem central não tem voz e nem efetiva participação na solução de seus impasses, no primeiro, mote central desse trabalho, tem-se a figura de uma mulher que busca construir o sentido de sua vida. O confronto estabelecido entre as gerações, provocado por Isabel, aponta para essa significativa mudança de cenário no campo do feminino: ela é o elo entre situações distintas formadas pelo revisitar do passado, mas que já indica, como outra possibilidade de vida, um futuro projetado em sua bisneta. Assim, ao mostrar um novo modelo de posicionamento feminino frente às diversas situações do cotidiano (leia-se condutas comportamentais, principalmente), a obra em estudo de Ana Maria Machado traduz a voz feminina contemporânea. Tendo como contraponto o conto Cinderela, a obra em questão evidencia a modificação do comportamento da mulher que, agora, assume as mudanças de conduta diante dos impasses da vida. A voz feminina que conduz a narrativa é outro ponto de dissonância entre o conto de fada tradicional e Bisa Bia, Bisa Bel. As alterações de ponto de vista também se constituem em uma nova maneira de enfrentar as mudanças: Isabel modifica seu comportamento e resolve seus problemas diferentemente de Cinderela: a primeira reconhece as adversidades e as resolve de maneira natural, isto é, ao compreender seus impasses, processa-os internamente. Dito de outra maneira, as atitudes de solução passam pelo entendimento e reflexão das questões, o que se traduz em um comportamento autônomo e crítico em relação às experiências confrontadas durante o percurso de vida. Cinderela, por outro lado, conforma-se com sua condição de subalterna, esperando pela intervenção de um elemento mágico para resolver seu problema. Nos dois textos aqui abordados, mantidas as devidas distâncias temporais, percebe-se uma nítida alteração no processo de solução dos impasses de cada uma das personagens. Enquanto Cinderela apresenta-se como uma (quase) figurante das ações empreendidas naquela narrativa, Isabel define-se como agente de suas próprias atitudes, mostrando que sua identidade se forma a partir de seu interior. Dessa forma, por meio da imaginação, capacidade de criação tão própria do jovem leitor ao qual se
6 destina as narrativas em estudo, ativa-se o processo de solução dos problemas enfrentados por Isabel a ponto de a personagem, por ela própria, encontrar o equilíbrio entre as experiências do passado, em conjugação com o presente e projetando tais vivências para o futuro. Referências KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986. MACHADO, Ana Maria. Bisa Bia, Bisa Bel. 2. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 2000. ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.