GEOGRAFIA COMERCIAL E INFLUÊNCIA PLATINA NO RIO GRANDE DO SUL NA TRANSiÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX MARCELO HENRIQUE



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Transcrição:

GEOGRAFIA COMERCIAL E INFLUÊNCIA PLATINA NO RIO GRANDE DO SUL NA TRANSiÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX MARCELO HENRIQUE DIAS RESUMO Analisamos a dinâmica do comércio de importação e exportação rio-grandense no período indicado, dando ênfase à geografia dos fluxos comerciais, à influência dos portos platinos e ao conflito que se estabeleceu entre os comerciantes das praças do litoral (Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas) e os grupos estabelecidos nas zonas fronteiriças, com destaque para o de Santana do Livramento. Caracterizamos a tensão projetada a partir da demanda das vias platinas pelo comércio do interior e uma política estadual cujo objetivo era interceder na geografia comercial, interrompendo os fluxos platinos e ampliando a participação das praças litorâneas (Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas). o tema das relações comerciais que se estabeleceram entre o Rio Grande do Sul e as repúblicas platinas durante o período imperial e a 1a República tem sido freqüentemente reduzido à questão do contrabando. As redundantes afirmações de que as atividades de introdução e exportação praticadas à margem do fisco dominaram a quase totalidade dos intercâmbios que se processaram através das fronteiras platinas acabam por encobrir uma realidade econômica mais complexa. onde a integração regional significava não apenas uma possibilidade de burlar o sistema fiscal e tirar vantagens comerciais, mas uma necessidade comercial vital para as POpulações da Campanha e do Planalto rio-grandenses. Partindo dessa última perspectiva, apresentamos, neste artigo, algumas breves considerações sobre a geografia comercial rio-grandense no oertoco correspondente à última passagem de séculos, destacando a amplitude espacial da influência platina nos mercados do interior riograndense. Na órbita de Montevidéu e Buenos Aires, desenvolveram-se, na fronteira gaúcha, importantes praças comerciais, como Uruguaiana, Jaguarão e Livramento, que rivalizaram os mercados do interior com as Professor substituto do Dep. de Biblioteconomia e História e coordenador do Centro de Documentação Histórica - FURG; Mestre em História - UNISINOS BIBlas, Rio Grande. 10: 97-106, 1998. 97

tradicionais praças do litoral rio-grandense (Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre). No desenvolvimento deste trabalho procuramos dar ênfase à contradição que emergia entre as vantagens concretas que o comércio da Campanha e do Planalto rio-grandenses encontravam no circuito comercial platino, situação esta que promovia a defesa dessa integração pelos grupos diretamente envolvidos neste intercâmbio, e o projeto econômico do governo estadual, o qual visava a hegemonia das praças do litoral sobre os fluxos de importação e exportação. Nas últimas décadas do século XIX, ocorreu no Rio Grande do Sul uma mudança quanto à hegemonia econômico-regional. A Campanha, até então a principal zona produtora rio-grandense, enfrentou uma crise de mercados para a pecuária. O consumo do charque, restrito às classes pobres e à escrava ria brasileiras, não oferecia perspectivas de expansão. A indústria frigorífica estrangeira, por sua vez, investia no Prata, devido à melhor qualidade de seus rebanhos, maior facilidade de escoamento pelos portos platinos e incentivos fiscais oferecidos pelos governos do Uruguai e da Argentina. Diante desse quadro, a partir do final da década de 1880, a produção pecuária gaúcha não mais se expandiu, e essa estagnação refletiu-se na Campanha, que, desse período em diante, manteve baixos índices de crescimento econômico e demográfico. Na serra, porém, a situação se invertia. O processo de imigração, que havia se iniciado em 1824, quando os primeiros imigrantes alemães instalaram-se no Vale do Rio dos Sinos, intensificou-se na segunda metade do século. Após a década de 1870, começaram a chegar os italianos, que ocuparam as áreas serranas ao norte das colônias alemãs, que por sua vez também se expandiam numa ampla área ao longo dos rios Taquari e dos Sinos, assim como em direção ao Planalto. Sendo a base econômica das colônias a pequena propriedade de produção agrícola, não tardou a advir um significativo incremento deste setor, já que, coetaneamente, se expandia o mercado consumidor de produtos alimentícios nas demais regiões do Brasil. Outros fatores que contribuíram para o crescimento da produção agrícola e conseqüente ampliação da participação econômica das áreas coloniais na economia rio-grandense foram, segundo Elmar M. da Silva (1979, p.68), o desenvolvimento do ensino técnico profissional, que possibilitava a substituição dos processos rotineiros por outros mais racionais, a importação de modernos instrumentos agrários e, sobretudo, a multiplicação das vias de comunicação nas áreas coloniais. Lembremos que a primeira via férrea da Província do Rio Grande do Sul foi inaugurada em 1874, e ligava Porto Alegre ao município de São Leopoldo, chegando, dois anos mais tarde, a Novo Hamburgo. 98 BIBlOS. Rio Grande, 10: 97-106, 1998. A conseqüência paul Singer: imediata deste fenômeno foi assim analisada por Resultou daí que a região serrana, mal aflorada em meados do século, passou por um intenso processo de ocupação e nos últimos anos do século passado já ameaçava a hegemonia do sul pastoril. É o que se comprova, examinando-se as transformações na composição da pauta de exportações do Rio Grande do sul. [...] O Rio Grande do Sul, que durante a maior parte do século passado se notabilizara como exportador de produtos animais (carne e couros), assume no fim do século as suas feições atuais de grande exportador de produtos da lavoura. Essa transformação, do ponto de vista geográfico, significou a passagem da hegemonia econômica do sul para o norte, da pecuária para a lavoura. Obviamente as cabeças de zona - Rio Grande e Porto Alegre - sofrem as conseqüências da mudança. A capital volta a tornar-se o grande centro econômico do Estado (1969, p.164). A praça comercial de Porto Alegre beneficiou-se duplamente com o desenvolvimento das áreas coloniais. No que diz respeito à exportação da produção agrícola colonial, a praça de Porto Alegre exercia um verdadeiro monopólio. Além disso, as importações de bens de produção, a princípio destinados à lavoura e, mais tarde as incipientes indústrias, também alimentaram o alto-comércio da capital. Nesse sentido, Rio Grande também se beneficiou, como único porto marítimo do Estado. Jean Roche (1949) mostra a influência dos elementos teuto-brasileiros nesse comércio. De acordo com o autor, ao final do século XIX, boa parte das casas comerciais de Porto Alegre estavam em mãos de alemães e descendentes. A presença alemã na diretoria da Associação Comercial de Porto Alegre também foi destacada. As estreitas ligações da elite comercial teuto-brasileira com empresas germânicas favoreceu, sobretudo, a importação de maquinários. Isso fez com que, segundo Roche, na última década do século XIX, os alemães dominassem o alto-comércio da cidade do Rio Grande. Esse porto, cujas rotas tradicionalmente sofriam intermediações da praça do Rio de Janeiro, passava, a partir da influência alemã, a estabelecer linhas de navegação diretas com a Europa, principalmente através de empresas germânicas. O quadro comercial apresentado por Jean Roche para o final do século passado, com relação às praças do litoral, foi assim por ele resumido: Em 1890, Porto Alegre torna-se a primeira praça comercial do Estado. Apesar das dificuldades que apresenta a entrada do canal e a BIBLOS, Rio Grande, 10: 97-106.1998. 99

navegação da lagoa, sua prosperidade cresceu ao mesmo tempo que as colônias, com as quais se realiza o essencial de suas trocas graças ao comércio transoceânico, que está quase exclusivament~ nas mãos de elementos alemães. Desde 1890, os alemães dirigem, de modo mais ou menos exclusivo, a totalidade do alto-comércio, que continuam a gerir nos outros dois portos, Rio Grande e Pelotas, ao mesmo tempo que fundam as primeiras indústrias (1949,. p. 458). Nas palavras do autor, fica saliente que Porto Alegre, assim como as outras praças do litoral, constituíam-se nas principais praças do Estado ao final do século passado, devido, logicamente, ao montante de bens e capitais movimentados, frutos do amplo desenvolvimento das áreas coloniais. No entanto, como o próprio Rache afirma, é com as colônias que as praças do litoral realizavam o essencial de seu comércio. E o interior da Campanha e do Planalto rio-grandenses? Essas áreas faziam de Montevidéu e Buenos Aires seus portos, assim como das praças comerciais de Uruguaiana e Santana do Livramento seus principais mercados. A intermediação platina foi ainda mais estimulada a partir de 1892, ano em que se inaugurava a Ferrocarriles Central dei Uruguay, estabelecendo a ligação, em 24 horas, entre Rivera, junto a Santana do Livramento, e o porto de Montevidéu. Contudo, um problema se colocava frente às intenções de expansão das atividades comerciais do grupo de Livramento. O único posto alfandegário da fronteira gaúcha estava localizado em Uruguaiana, colocando, assim, duas opções para o comércio santanense: ou deslocavam as mercadorias até aquela localidade, o que era impraticável, ou aderiam ao contrabando A intensificação desta última pràtica promoveu não apenas uma avalanche de denúncias do alto-comércio litorâneo, mas uma intensa luta dos santanenses em prol da instalação de uma alfândega local. Segundo estes últimos, somente com esta medida se solucionaria o problema das introduções ilegais. No bojo deste processo reivindicatório, os testemunhos produzidos nos permitem reconhecer alguns aspectos da geografia comercial do período e identificar certos interesses que deram a tônica do conflito que envolveu os comerciantes daquela zona fronteiriça e seus opositores do litoral. O zoneamento comercial do Rio Grande do Sul foi o tema de um dos capítulos de uma Representação que a Praça do Comércio de Santana do Livramento enviou ao Ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, em 1900, tendo por finalidade conseguir o aval desta autoridade para a instalação da alfândega 1. Na ocasião, o Presidente Borges de Medeiros, pressionado pela praça do Comércio de Porto Alegre, já havia se posicionado contra a nova alfândega, convencido de que esta só faria aumentar o desvio dos fluxos comerciais para Montevidéu, favorecendo o acúmulo de capital pelos comerciantes daquela praça em detrimento da burguesia comercial do Estado. No documento, o representante do comércio santanense e autor da Representação, o jornalista e comerciante Albino Costa, apresenta o seguinte quadro, referente às zonas comerciais do Estado: 1.a zona - compreendia os grandes territórios banhados pelos afluentes do Guaíba, terminando ao norte nos afluentes do Uruguai, ao sul na Serra do Herval, a leste no Atlãntico e a oeste na Serra de São Martinho e Coxilha do Pau Fincado. Esta zona era tributária da praça de Porto Alegre. 2.a zona - englobava todo o litoral do sul, limitando-se ao norte pela foz do Camaquã e Serra do Herval, ao sul pela lagoa Mirim, a leste pelo Atlântico e a oeste pela serra de Batovi e pontas dos afluentes do Santa Maria ou Ibicuí-Guassu. Estas áreas eram tributárias dos mercados do Rio Grande e Pelotas. 3.a zona - abarcava os territórios próximos à fronteira. Para o autor, essa zona se limitava a uma tira de 20 léguas de largura, estendida de sul a oeste pela linha limítrofe do Uruguai, desde o Chuí, em Santa Vitória do Palmar, até a foz do Ouaraí, em Uruguaiana. Da foz do Ouaraí, a mesma faixa tomava o rumo de nordeste pelo Uruguai acima, costeando a Província de Corrientes até São Luis, no território das Missões. Essa grande área era tributária: ao sul, sobre a lagoa Mirim, de Jaguarão; ao centro, de Livramento; a oeste, de Uruguaiana. Tal divisão correspondia, segundo Albino Costa, ao comércio de importação. Com relação à exportação, é observada a afluência de produtos das localidades ao norte da Serra Geral, para duas praças: Porto Alegre e Livramento. As relações comerciais da fronteira, mais especificamente de Livramento com Porto Alegre, eram praticamente nulas. Já com Rio Grande, existia, no verão, um pequeno fluxo. Em compensação, as transações COmerCiaiscom o nordeste do Estado eram bem volumosas, o que gerava o descontentamento de Porto Alegre, que, com a construção da Ferrpcarriles Central dei Uruguay, perdera a hegemonia numa área que lhe era tradicionalmente tributária. Núm quadro apresentado pelo autor da Representação onde eram expostos os números do comércio de Livramento no ano de 1898, os produtos procedentes das áreas do Planalto (Cruz Alta, Soledade, Passo ---------------------------------1 BIBLOS. Rio Grande. 100 10 97-106. 1998 A alfândega foi concedida e inaugurada em 1.0 de outubro de 1900. liiblos. Rio Grande. 10: 97-106.1998. 101

... Fundo, São Martinho, São Vicente e outros municípios) somavam 3 013 200 kg, transportados em 2 082 carretas. Isso significa que, só em compras dessas áreas (serranas, na denominação da época), o volume das transações correspondia a aproximadamente 20% do total dos negócios na praça de Livramento em 18982 Não era sem fundamento que Albino Costa procurava destacar a extensão da esfera comercial de sua cidade: De cima da Serra, em distancia que varia entre 400 e 700 kilometros, recebe 2.082 cargas com 3.003.000 kllos, -aproveitando o transito terrestre de que seu mercado é séde. Da Republica Oriental, cuja capital, Montevidéo,' está a um dia de viagem, a 568 kilometros pela E F. Central dei Uruguay, recebeu el/a nesse anno (1899) 4 126000 kilos e remetteu em lãs, fructos bovinos e productos coloniaes de cima da Serra, cerca de 4 000 000. É o mercado que abastece os municipios vizinhos (Alfândega... 1900, p. 14). Os comerciantes de Livramento tiravam vantagens do dinamismo comercial de Montevidéu, para ampliarem sua influência econômica no Estado. Tanto o governo uruguaio como o argentino, interessados em manter suas principais praças como provedoras do comércio do interior do Rio Grande do Sul, procuravam oferecer vantagens, que iam desde redução de tarifas de fretes até a construção de ramais férreos que atendessem aos mercados da fronteira gaúcha. Ambas as nações praticavam o comércio de livre trânsito". Na guerra comercial entre Buenos Aires e Montevidéu", 2 o mesmo quadro nos informa que o volume total dos negócios em Livramento no ano de 1898 foi de 14.714.057 kg, sendo que de Montevidéu recebeu 3.425.857 kg e de Pelotas e Rio Grande, via Bagé, recebeu apenas 550 carretas e um volume de 625.000 kg. 3 Segundo as regras do livre trânsito, adotadas desde 1852 pela Argentina e pelo Uruguai, todas as mercadorias procedentes do exterior com destino aos países vizinhos poderiam ou fazer o trânsito direto ou ser intermediadas nos portos platinos e posteriormente reembarcadas para seu destino final, sem sofrer taxações referentes à importação e exportação enquanto estivessem em trânsito. Seriam taxadas, no Uruguai e na Argentina, apenas as mercadorias que se destinassem a ser consumidas nos respectivos países. Alérn disso, as tarifas de armazenagem e de fretes para o transporte fluvial e ferroviário, pelos preços relativamente baixos que apresentavam, incentivavam o mecanismo de intermediação pelo reembarque, promovendo a formação de um corpo comercial, tanto. em Buenos Aires como em Montevidéu, que se dedicava à lucrativa atividade de intermediar o comércio corn o sul do Brasil. 4 Sobre a "guerra de tarifas" e seus efeitos para o comércio de trânsito platina, sugerimos a obra de Oscar Mourat, La crisis comercial en Ia Cuenca dei P/ata, 1880-1920. Montevidéu: Ed. Banda Oriental, 1973. 102 BlBlOS. Rio Grande. 10: 97-106, 1998. ganhavam muito os comerciantes da fronteira rio-grandense, beneficiados pelas vantagens platinas oferecidas como atrativo. O principal fator da preferência por Montevidéu em detrimento do porto de Rio Grande era, sem dúvida, a facilidade do transporte ferroviário e OS melhores preços e serviços oferecidos pelo porto oriental. Sugerindo ao ministro que a promoção de vias de integração entre o Rio Grande do Sul e a capital uruguaia poderia favorecer, inclusive, aos comerciantes da praça de Porto Alegre, o autor da citada representação apresenta um projeto no qual propõe uma intensificação desses vínculos comerciais, mostrando as vantagens que um sistema integrado de vias férreas gaúchas e uruguaias poderia trazer, não só para o comércio do interior, mas também para a capital. De acordo com o projeto, Porto Alegre passaria a usufruir dos melhores serviços do porto uruguaio, uma alternativa interessante, frente ao problemático porto rio-grandino, cujas melhorias ainda não haviam saído dos discursos dos vârios governos que se alternavam desde o período monárquico. Vejamos a proposta do autor do documento: [...] estabelecido o ramal ferreo entre Cacequy e Livramento, ficará Porto Alegre ligada ao porto de Montevidéo por via de Sant Anna do Livramento em tres dias, sendo um dia da Capital a Cacequy, outro de Cacequy ao Livramento, pelo ramal já decretado pelo Congresso, o terceiro dia de Livramento a Montevidéo. Estando prompto este ramal do Cacequy ao Livramento, ficará a Capital do Estado coflocada a 19 dias da Europa. Suas mercadorias, de maior valor, aproveitarão a celeridade deste opulento e seguro transporte, evitando as longas estadias e descargas no porto do Rio Grande, os elevadissimos fretes maritimos e fluviais e os transbordos que estragam os envólucros e deterioram as mercadorias. Ninguem tem tanto a lucrar com a nova alfândega como a Praça de Porto Alegre: Poderá em 19 dias vêr entrar da Europa suas mercadorias na alfândega da Cspiiet, em vez de dois mezes de viagem que actualmente oneram suas encomendes européias. O que augmenta nos fretes pelas estradas de ferro, diminuirá no frete maritimo e no seguro, que para o Rio Grande é enormissimo, mais do dobro do frete e seguro para Montevideo (Idem, p. 16-17).. No entanto, a proposta do representante do comércio santanense s~9~ificava a perpetuação da dependência econômica em relação à nação VIZinha. Esse destino não convergia com a política econômica que o PRR, apoiado pelo alto-comércio das praças litorâneas, pretendia impor ao BIBLQS, Rio Grande. 10: 97-106, 1998 103

estado. Para participar do processo de expansão capitalista que progressivamente colocava o Brasil na divisão internacional do trabalho como área periférica, o governo gaúcho procurou, além de estabelecer relações diretas com o exterior, sem a intermediação platense, ampliar a participação do estado ao mercado interno. Abria-se a possibilidade de o Rio Grande do Sul se tornar o grande abastecedor de produtos alimentícios para as demais partes do país, onde se processava, mais rapidamente, a formação de um mercado consumidor urbano, como no sudeste. Nos limites do próprio estado operava-se a constituição de um mercado consumidor significativo, que, como bem observou Heloísa J. Reichel (1978), deu sustentação ao desenvolvimento das novas indústrias que foram se formando na zona da capital. Vista por esse ângulo, a diversificação setorial, com incentivo à agricultura e à indústria, aparece como prioridade no projeto econômico governista. Era necessário a condução do governo para promover a comercialização dos seus produtos e garantir a acumulação do capital que, de mercantil, passaria a ser aplicado em outros setores. Todavia, um dos principais empecilhos à realização do projeto governista, como decorrência da insuficiência viária do estado, era exatamente o desvio de parte dos fluxos comerciais rio-grandenses para os portos platenses, sobretudo o de Montevidéu. É o que demonstra a mensagem do Presidente Borges de Medeiros à Assembléia dos Representantes do ano de 1904: [...) o nosso comércio, excetuando do litoral, fez de Montevidéu o seu entreposto, tornando-se tributário da vizinha República, cujas vias férreas se dirigem para a nossa fronteira como outros tantos tentáculos destinados a sugar a seiva econômica do Rio Grande do Sul. Demais, como fator atrofiante do 'comércio lícito, o contrabando encontra ali toda a sorte de estímulos e facilidades, como as que provêm do livre trânsito, além das diferenças de fretes e seguros. Como se percebe, o Uruguai foi eleito o primeiro vilão da economia rio-grandense, e sua concorrência comercial deveria ser extirpada através de uma intervenção eficaz em duas frentes: na repressão ao contrabando e, principalmente, na melhoria da circulação de mercadorias no interior e para o exterior do Rio Grande do Sul. A fim de neutralizar as vantagens viárias do Uruguai, o presidente Borges de Medeiros insistia em apontar a necessidade de nutrir o estado de um porto marítimo funcional e de estradas de ferro que tivessem como finalidade o desenvolvimento ampliado do comércio dentro dos limites territoriais do Rio Grande do Sul. A intenção maior era a de favorecer o acúmulo de capital por uma burguesia local e não alienfgena, como a do alto-comércio uruguaio. Fica claro que o projeto viário proposto pelos comerciantes de Livramento, apesar de possibilitar a solução do problema do abastecimento e do escoamento da produção rio-grandense, colocava o estado numa condiçao de subordinação aos interesses do alto-comércio da capital uruguaia, o qual ficaria, assim, com a maior parcela da renda gerada nestas operações. A integração regional, nesse momento, não era vista como solução, mas, de acordo com o discurso do chefe de governo, como via de desvio de capital, da "seiva econômica" rio-grandense, que estava sendo absorvida através das vias férreas, de rodagem e fluviais, verdadeiros "tentáculos" com os quais o Uruguai tirava toda sorte de vantagens aos gaúchos. Contudo, o processo de desarticulação regional não se deu de forma consensual e homogênea no Rio Grande do Sul. Ao contrário, a desarticulação da Campanha rio-grandense com o Prata requeria a oferta de novas alternativas para o abastecimento e exportação do interior gaúcho. Além disso, os grupos de comerciantes interessados na permanência da via platina buscaram, por vários meios, pressionar o poder público para suas causas, como indica a Representação da Praça do Comércio de Livramento. O Governo do Estado, não obstante os objetivos de seu projeto econômico, tinha consciência sobre o que representava para a 3. a zona comercial do Estado e para as áreas por ela servidas a alternativa platina. Assim, buscou proporcionar ao Rio Grande do Sul um sistema de transportes que proporcionasse uma comunicação mais eficiente entre o interior e as praças do litoral. As pressões do comércio litorâneo foram sendo assimiladas pelo governo, que, vez ou outra, decretava alguma medida no sentido de conter o contrabando, principal argumento do litoral contra as praças da fronteira. Acreditava Borges de Medeiros que, encampada a Viação Férrea e o porto do Rio Grande, os fluxos comerciais verteriam naturalmente para o litoral gaúcho. A primeira República riograndense seria, assim, um palco de tensões projetadas na dicotomia entre a existência de um circuito comercial funcional e bem-estruturado, o circuito platino, responsável pela dinâmica econômica de amplas áreas do Estado Integradas a Buenos Aires e Montevidéu, e uma política voltada à desintegração dessa região econômica extrafronteiriça. Desarticulação ou permanência do Rio Grande do Sul no circuito comercial platino: eis uma questão que iria movimentar o Estado Borgista e os grupos mercantis-regionais no correr da República Velha." ---------------------------li 104 818LOS. Rio Grande. 10: 97_106.1998.. 5 Este assunto foi tema de nossa dissertação de mestrado, orientada pela Prof", Dr". elolsa J. Reichel, apresentada na UNISINOSem janeiro de 1997 (Dias, 1997). 818LOS, Rio Grande, 10: 97-106,1998. 105

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