Como aprender a ler e como ensinar a ler Não se descobre aquilo que teve de ser inventado e, em particular, não se descobre individualmente o que a humanidade levou muito tempo a inventar. O nosso sistema de escrita o sistema alfabético só foi inventado cerca de dois milénios depois de terem aparecido as primeiras representações escritas das ideias e da linguagem. Nem a escrita nem a leitura no sistema alfabético se descobrem, elas aprendem-se! Três condições são necessárias a esta aprendizagem: ser-se exposto regularmente aos seus símbolos, estes serem apresentados em sequências espaciais e temporais seleccionadas e organizadas de maneira a representarem validamente a linguagem, e alguém (chamemos-lhe professor, seja-o profissionalmente ou não) saber fazer compreender o que os símbolos simbolizam e quais são as chaves da sua estruturação. Pois, tal como não se descobre, também não se aprende espontaneamente o que teve de ser inventado. Aprende-se sendo ensinado e tanto melhor quanto se é mais bem ensinado. Apesar do seu título, elegantemente conciso, este livro não trata apenas de como se aprende a ler, mas também, e muito, de como se ensina a ler e escrever. O ensino da leitura e da escrita é um tema comum aos seus três capítulos. Um deles o de Roger Beard vai mais longe e trata igualmente da influência das políticas educativas no ensino e na aprendizagem da leitura e da escrita; ele mostra a importância de os currículos nacionais serem razoavelmente exigentes e precisos quanto aos objectivos, conteúdos e métodos; de se realizar sistematicamente avaliações consequentes e pormenorizadas das habilidades constituintes; de se proceder a 5
JOSÉ MORAIS inspecções construtivas das escolas; e, sobretudo, de se definir uma estratégia susceptível de elevar rapidamente o nível de leitura e de escrita até metas que coloquem o país acima da média dos países desenvolvidos e pelo menos a um nível consistente com o grau de transparência do código ortográfico da língua (que, acrescentamos, é relativamente elevado em português, sobretudo para a leitura). Os materiais de ensino são também objecto de análise no capítulo de Roger Beard e, de maneira mais focalizada, no capítulo de Isabel Leite e Ana Bragança. Estas autoras analisaram quantitativamente, em relação a critérios fixados segundo as recomendações da literatura científica, os conteúdos e a sua progressão de três manuais de Língua Portuguesa para o 1.º ano, entre os mais adoptados no ano escolar findo. Este trabalho permitiu pôr em evidência insuficiências e até erros flagrantes (como a confusão entre som e letra num manual que apresenta a palavra aranha como contendo o som correspondente à letra a), e deveria conduzir o Ministério da Educação a tomar as medidas necessárias, junto de autores e editores, para que sejam publicados bons manuais. A pobreza dos manuais actuais é reflexo de orientações curriculares demasiado genéricas e de falta de fundamentação científica. Em todos os manuais analisados, o treino das habilidades fonológicas e em particular das habilidades fonémicas é manifestamente insuficiente (é o caso da identificação de palavras que contêm um fonema-alvo, que não exige a representação consciente e isolada deste), não impõe um trabalho sistemático e a sua progressão é quase caótica (sem relação com qualquer variável considerada na literatura científica, como a ordem de dificuldade na sua apreensão ou o número de correspondências possíveis). Outras anomalias são, no que respeita ao treino da identificação das palavras, a enorme proeminência dos exercícios de discriminação visual; no quadro da compreensão, a quase inexistência das actividades 6
Como aprender a ler e como ensinar a ler? consagradas ao enriquecimento do vocabulário e à consciência sintáctica e morfológica, consequência provável de uma obsessão com a identificação da informação literal; e, no que respeita à escrita, o escasso recurso ao ditado e à escrita autónoma em comparação com as actividades de cópia. De modo geral, faltam muitas actividades necessárias à compreensão de textos, estes são pouco variados, e não há indicações de livros para a prática da leitura fora da escola. Todos os capítulos deste livro são, obviamente, fundamentados no conhecimento científico e apelam para que os programas de ensino recorram aos métodos que a ciência e a experiência têm indicado serem os mais adequados para a aprendizagem: os métodos fónicos. Ao mesmo tempo, visto que a aplicação de tais princípios constitui em si mesma um problema susceptível de várias soluções e tendo em atenção a diversidade das populações, Roger Beard mostra a importância de uma investigação avaliativa das práticas pedagógicas. O mesmo autor insiste fortemente na necessidade de melhorar o nível de formação dos professores, indispensável para o aumento da qualidade do ensino, em particular no que respeita à compreensão e ao conhecimento dos métodos fónicos, à capacidade de fazer ler e discutir vários géneros, incluindo a poesia, e também ao uso de técnicas como a leitura e a escrita partilhadas e a leitura e a escrita guiadas, de utilização recente no Reino Unido e que se revelam muito eficazes. Enfim, o capítulo de Linda Siegel trata mais especificamente da aprendizagem da leitura e das dificuldades com que esta é confrontada (designadas, de maneira global, como dislexia, sem aprofundar a questão da individuação desta no quadro mais geral dos fracassos e dos atrasos). A autora examina as dificuldades em referência às competências de linguagem (fonologia, morfologia, sintaxe) e também a capacidades cognitivas como a memória de 7
JOSÉ MORAIS trabalho. Linda Siegel insiste na importância de uma identificação precoce das crianças em risco de se tornarem disléxicas, sabendo - -se que a dislexia pode estar associada a problemas sociais, emocionais e comportamentais potencialmente comprometedores para o seu futuro e prejudiciais para a sociedade. Linda Siegel dedica a maior parte da sua contribuição presente à descrição de um estudo longitudinal em que a utilização de um programa de ajuda precoce às crianças que na pré-escola demonstraram encontrar-se em dificuldade no que respeita às habilidades básicas (discriminação do sons da fala, consciência fonológica e vocabulário) permitiu, através do treino destas habilidades e depois também de estratégias de compreensão em leitura, que no 7.º ano de escolaridade poucas crianças tivessem maus desempenhos. Um aspecto notável dos resultados foi o facto de que, embora à entrada na escola se tivesse observado uma alta correlação (0,60) entre o nível socioeconómico e as habilidades básicas de literacia, esta correlação diminuiu progressivamente e deixou de ser significativa a partir do 3.º ano de escolaridade. Assim, o ensino, quando é apropriado às dificuldades das crianças, pode, ao longo do tempo passado na escola, reduzir e acabar por anular os efeitos das desigualdades socioeconómicas no desenvolvimento da linguagem e da literacia. Esta é uma excelente notícia! Más são, porém, as notícias que nos chegam de outros estudos, estes realizados em Portugal. Um estudo psicolinguístico que está a ser efectuado no quadro do Plano Nacional de Leitura revelou, a partir do 1.º ano de escolaridade, desempenhos em leitura e escrita muito modestos em escolas consideradas como de médio a alto rendimento segundo as avaliações oficiais, e maus desempenhos numa escolha considerada de baixo rendimento, sem que, ao fim de seis anos, as crianças desta escola tivessem atingido o nível das crianças das outras escolas. 8
Como aprender a ler e como ensinar a ler? Outro estudo 1, este comparando crianças espanholas, portuguesas e francesas, mostrou que, no fim do 1.º ano, embora elas fossem, em média, capazes de identificar aproximadamente a mesma percentagem de letras e grafemas (89,8%, 92,8% e 88,7%, respectivamente), na leitura de palavras complexas as portuguesas foram as piores (81,4%, 71,4%, e 78,7%), sobretudo em termos da latência da resposta de leitura em voz alta (1116, 2758 e 2371 milésimos de segundo). A dificuldade das portuguesas deve-se sobretudo a uma falta de domínio da descodificação: 91,6%; 73,2% e 97,6%, na leitura de pseudopalavras. Quanto à escrita (dados de Fevereiro-Março), se a vantagem esperada das portuguesas relativamente às francesas foi observada no sentido da fonologia para a ortografia, o código do francês é muito mais complexo, a sua inferioridade relativamente às espanholas é assustadora: as percentagens de respostas correctas na escrita de palavras complexas foram, respectivamente, de 60,9%, 26,3%, e 14,4%. Como aprender a ler, como ensinar a ler em português: o desafio é enorme e mais do que urgente, ele tem de ser afrontado imediatamente sob pena de condenação de uma grande parte da actual geração de crianças portuguesas à pobreza socioeconómica e à miséria cultural. O presente livro merece ser meditado. Ele contém informações e ideias preciosas para os responsáveis pela aprendizagem da leitura e da escrita que de alguma maneira nós todos somos. JOSÉ MORAIS Universidade Livre de Bruxelas (ULB) 1 Serrano, F., Genard, N., Sucena, A., Defior, S., Alegria, J., Mousty, P., Leybaert, J., Castro, S. L., & Seymour, P. H. K. (no prelo). Variations in reading and spelling acquisition in Portuguese, French and Spanish: A cross-linguistic comparison. Journal of Portuguese Linguistics (special issue edited by J. Morais & S. L. Castro). 9