Infância & Propaganda Percepção da questão sob a ótica dos direitos humanos especiais da criança. A Convenção sobre os Direitos da Criança e outros instrumentos normativos internacionais. As ações do Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Wanderlino Nogueira Neto Membro do Comitê das Nações Unidas para os Direitos da Criança I. APARENTES CONFLITOS ENTRE NORMAS JURÍDICAS E ENTRE PARADIGMAS ÉTICO- POLÍTICOS 1. A primeira questão que gostaria de destacar nesta minha fala refere-se à necessidade de se colocar o reconhecimento e a garantia dos direitos humanos gerais dos cidadãos e dos direitos humanos especiais da criança, na perspectiva maior da construção e do fortalecimento da democracia verdadeira e do desenvolvimento humano autossustentado; como defendia 50 anos atrás o Congresso de Viena, com sua Declaração sobre os Direitos Humanos, acolhida pelas Nações Unidas, ao determinar a necessária articulação entre esses três polos citados, entre esses três pilares. E por consequência, fazer lembrado que a questão referente às relações entre infância e propaganda precisa ser colocada preliminarmente na perspectiva tríplice dos direitos humanos, do desenvolvimento e da democracia. 2. Quando se tratar das relações entre a publicidade e o público infantil, questione-se: - Qual seria o regime mais adequado, ao favorecimento da formação integral - promocional e protetiva de direitos humanos de crianças e adolescentes, o regime ideal ao favorecimento da sua educação integral, no seu sentido verdadeiro e radical? 3. Seria razoável, por exemplo, a imposição de limites e restrições legais à publicidade infantil? Ou mesmo de proibi-la e elimina-la de maneira completa? Isto significaria uma restrição arbitrária à liberdade de opinião e expressão da população em geral, dessa liberdade de opinião e expressão do segmento infantoadolescente? Ou menos que isso, uma limitação ou restrição ao direito de comunicação mercadológica das empresas? Como equilibrar e harmonizar os aparentemente conflitantes direitos fundamentais da criança, com o direito de comunicação mercadológica das empresas, ponderando os valores embasadores de ambos? E mais aprofundadamente: há alguma possibilidade de vermos arriscada a liberdade de expressão, coisa diversa, nesse caso do aparente conflito entre direitos infanto-adolescentes e direitos empresariais de comunicação mercadológica? II. QUE É COMUNICAÇÃO MERCADOLÓGICA OU MARKETING? 4. Por comunicação mercadológica entendamos toda e qualquer atividade de comunicação comercial para a divulgação de produtos e serviços independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado, o que abrange a própria publicidade, anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites na internet, embalagens, promoções, merchandising e disposição dos produtos nos pontos de vendas. 5. Em primeiro lugar reconheçamos que a comunicação mercadológica ou marketing, quando dirigida às crianças e aos adolescentes, faz uso da fantasia, das cores, das músicas, de personagens infantis e de criança- modelos, protagonizando materiais publicitários, por exemplo. 6. Pesquisas idôneas comprovam a ocorrência de melhores resultados e maiores impactos e mais efetividade da propaganda endereçada à criança e ao adolescente, em certos aspectos: por exemplo. Desse modo, poderá ela contribuir de alguma forma para o crescimento da obesidade infantil no mundo de hoje (e outros distúrbios alimentares e doenças associadas como a subnutrição)? Poderá contribuir para a erotização precoce desse segmento populacional ou para o estresse familiar ou para a violência em geral? 7. No Brasil, por exemplo, dados de 2007 do Painel de Televisores do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística - IBOPE revelam que as crianças brasileiras, entre quatro e onze anos, passam em média cinco horas por dia em frente à TV mais tempo do que passam na escola (em média quatro horas). 8. Em países desenvolvidos com forte tradição ou pelo menos notada experiência democrática como a Suécia, Canadá e Alemanha, por exemplo a restrição à publicidade quando se dirige às crianças não contou com a resistência das empresas, como o nosso, sob a alegação de suposta afronta ao direito à
liberdade de expressão do setor econômico. Na Suécia não é permitida a propaganda direcionada ao público infantil. Já na Alemanha os programas infantis não podem ser interrompidos por publicidade. III. PUBLICIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO 9. Primeiramente, não há que se confundir o direito à disseminação da publicidade, com a liberdade de opinião e de expressão. Esta última abrange a livre formação e manifestação do pensamento político, filosófico, religioso ou artístico, sem recurso aos mecanismos de censura e de repressão. 10. Países como o Brasil e outros países da América Latina, por exemplo, que já sofreram sob cruéis regimes autoritários conservadores neofascistas estarão sempre irmanados com todo mundo civilizado na luta ferrenha contra a censura e outros instrumentos normativos e mecanismos censórios, repressivos e de facilitação da sempre deplorável descartabilidade da pessoa humana, nas palavras de Hanna Arendt. O acesso à verdade e seu desvelamento será sempre nosso remédio reparador das violências praticadas e nossa vacina contra novos episódios de sanha ditatorial. Por isso, de longe afasto a hipótese da defesa da negação do direito à livre opinião e expressão. 11. A liberdade de opinião e de expressão é um direito fundamental primacial consagrado no âmbito internacional e interno de cada país, enunciado em instrumentos de proteção de direitos humanos, como a maior parte das Constituições nacionais dos países verdadeiramente democráticos, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e como a Convenção Americana de Direitos Humanos. 12. O alcance de tal direito fundamental não compreende a publicidade atividade que utiliza meios, visando essencialmente à venda de produtos e serviços, por exemplo. Ao contrário de matérias jornalísticas, veiculadas em os mais diversos meios de comunicação, a publicidade não requer necessariamente um espaço na mídia tradicional para se alojar. A sua lógica é a mercantil, orientada pela equação de compra e venda de produtos e serviços. IV. O SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA E A NORMATIVA INTERNACIONAL 13. Os paradigmas éticos e políticos e mais os princípios jurídicos internacionais e nacionais constitucionais nos Estados Partes - ambos endossam a absoluta prevalência dos interesses superiores da criança, isto é, a garantia da promoção e da proteção dos seus direitos fundamentais da pessoa humana, na qualidade de sujeito de direito, mesmo que em peculiar condição de desenvolvimento. É preciso sempre chamar a atenção para a circunstância de que o reconhecimento da criança e do adolescente como pessoa em processo de desenvolvimento e de pessoa em processo de construção progressiva de suas competências e capacidades, essa circunstância de vida peculiar não pode negar jamais sua condição de sujeito de direitos. 14. Neste sentido, destacam-se a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em nível internacional e em nível nacional brasileiro a Constituição federal que acolheu como norma constitucional equiparada a citada Convenção, considerada como norma de direitos humanos e a lei de adequação à Convenção e à Constituição Federal, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente. 15. A Organização das Nações Unidas, suas agências e demais organismos internacionais têm uma série de normas jurídicas e de declarações políticas aplicáveis ao marketing para crianças e às tentativas de harmonização entre as normas jurídicas aparentemente conflitantes, como vimos atrás. 16. Essa normativa internacional inclui principalmente: a) Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança - CDC (United Nations Convention on the Rights of the Child UNCRC), b) Diretrizes das Nações Unidas sobre Proteção ao Consumidor (United Nations Guidelines on Consumer Protection UNGCP), c) Código Internacional para o Mercado de Substitutos do Leite Materno da OMS e d) Convenção Estrutural para Controle do Tabaco (Framework Convention on Tobacco Control FCTC). 17. O artigo 13 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) reconhece o direito da criança à liberdade de informação como titulares de direitos. Ela também reconhece que, em virtude da idade e maturidade, as crianças ainda são vulneráveis e necessitam de proteção especial adcional e concomitante. 18. Digno de nota, o artigo 17 afirma que os Estados Partes devem: Incentivar o desenvolvimento de diretrizes apropriadas para a proteção da criança contra informações e materiais prejudiciais a ela ou seu bem-estar, tendo em mente as provisões dos artigos 13 e 18.
22. Além disso, o artigo 18 enfatiza a importância do papel dos pais e responsáveis legais no desenvolvimento da criança. A Convenção determina que os Estados Membros tomem medidas administrativas para implementar os artigos contidos nela. Consequentemente, em função disso, alguns países aprovaram leis para promover e proteger os direitos infantis. 23. Vários países da América Central e do Sul, por exemplo, aprovaram um Estatuto da Criança e do Adolescente ou similar, adequando a sua normativa nacional fielmente ao texto da Convenção por eles ratificada. E outros o fizeram lamentavelmente com ressalvas, contra as quais ainda precisamos lutar em nível internacional, especialmente no nível do Comitê das Nações Unidas para os Direitos da Criança que integro como Membro-Comissionado desde o início deste ano. 24. Como exemplo de boas práticas, o artigo 22 da lei de proteção à infância da Costa Rica preciosamente adequa sua legislação interna ao artigo 17 da Convenção da seguinte forma: Os meios de comunicação de massas se absterão de difundir mensagens que sejam prejudiciais para o desenvolvimento físico, mental ou social da criança. Os programas, as propagandas e outras mensagens transmitidas por rádio e televisão devem seguir essa diretriz. 25. Por sua vez, as Diretrizes das Nações Unidas sobre Proteção ao Consumidor foram adotadas pela Assembleia Geral da ONU em 1985. E de acordo com a ONG internacional Consumers International, que trabalha para incentivar a implementação em nível nacional das Diretrizes das Nações Unidas citadas, esses parâmetros têm como objetivo fornecer uma estrutura para a proteção, aconselhamento e apoio aos consumidores. que possibilitaria a eles operarem de forma confiante e eficaz na economia de mercado. As Diretrizes citadas contêm várias cláusulas sobre marketing sob o título Promoção e proteção dos interesses econômicos dos consumidores. 26. As organizações de consumidores devem ser incentivadas a monitorar práticas adversas, como alegações falsas ou enganosas na propaganda. O marketing promocional e as práticas de vendas devem ser guiados pelo princípio de tratamento justo dos consumidores e devem cumprir as exigências legais. Isso requer a provisão de informações necessárias para permitir aos consumidores tomarem decisões informadas e independentes, bem como medidas para assegurar que as informações fornecidas sejam corretas. É interessante observar que o anteprojeto original dessas Diretrizes citadas anteriormente incluía uma provisão que exigiria a regulamentação do marketing de produtos inapropriados às exigências e hábitos alimentares dos países em desenvolvimento. Desconhece-se, no entanto, a dinâmica que levou à exclusão da cláusula na versão final das referidas Diretrizes. Embora essas Diretrizes da ONU não tenham estimulado discussões sobre a regulamentação da publicidade internacionalmente, alguns países incluem cláusulas sobre marketing em suas leis sobre proteção ao consumidor incluindo explicitamente o consumidor-infantil. Por exemplo, o Ato de Proteção ao Consumidor da Tailândia (1979) que lamentavelmente não faz referência expressa às crianças, as normas da Finlândia e da província autônoma do Quebec, no Canadá, com mais precisão, são outros exemplos. 27. O grau de implementação de leis nacionais sobre proteção ao consumidor varia consideravelmente em todo o mundo. De acordo com a citada ONG Consumers International, os países mais desenvolvidos e mais democráticos têm legislações bem estabelecidas sobre proteção ao consumidor. Assim, muitos países do centro e leste europeu aprovaram mais recentemente legislações sobre proteção ao consumidor. Em contraste, os países menos desenvolvidos na África, Ásia e no Pacífico raramente têm estruturas legais para proteção dos direitos do consumidor. 28. O aprofundamento do estudo das regulamentações técnicas e jurídico-legais existentes em inúmeros países se torna imprescindível (o que aqui proponho!) e deverá proporcionar uma visão global do cenário atual das regulamentações sobre o marketing para criança. 29. Os pontos principais que emergiram do estudo preliminar que levantei exemplificativamente na preparação desta minha fala podem ser resumidos na forma seguinte: Muitos países já possuem uma série de regulamentações em vigor aplicáveis ao marketing para crianças, mas há lacunas regulatórias significativas. Com relação aos países, a publicidade e promoção de alimentos para crianças são regulamentadas por uma ampla gama de leis, diretrizes estatutárias e códigos autorregulatórios. Há também regulamentações operando em níveis regional e internacional. As diferentes técnicas de marketing utilizadas para atingir o público infantil são regulamentadas por uma ampla variedade de mecanismos, alguns específicos para crianças, outros não. Internacionalmente, estabeleceu-se o princípio normativo e politico-institucional de que as crianças não devem ser exploradas ou prejudicadas por propagandas ou outras práticas publicitárias. Especificamente, o cenário de regulamentações sobre o marketing de alimentos para crianças está evoluindo rapidamente, por advocacy da OMS e do UNICEF.
V. SITUAÇÃO ESPECÍFICA DO BRASIL QUANTO À ADEQUAÇÃO DE SUA NORMATIVA INTERNA AOS DIVERSOS INSTRUMENTOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS 30. No Brasil, existe farta previsão legal constitucional e infraconstitucional a respeito da regulação jurídica da comunicação mercadológica, especialmente daquela propaganda dirigida direta ou indiretamente ao segmento infanto-adolescente. Todavia, a esse respeito especificamente na linha da vedação, na Câmara Federal dos Deputados, foi retomada a discussão a respeito do projeto de lei nº 5.921/2001, que proíbe qualquer comunicação mercadológica destinada a crianças. 31. De acordo com o projeto citado, (...) entende-se por comunicação mercadológica toda e qualquer atividade de comunicação comercial para a divulgação de produtos e serviços independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado, o que abrange a própria publicidade, anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites na internet, embalagens, promoções, merchandising e disposição dos produtos nos pontos de vendas. 32. Há mais de doze anos pendente no Legislativo, o resgate do projeto recentemente reacende a polêmica em torno da questão: de um lado, a defesa de um marco legal para a promoção e proteção dos direitos da infância e adolescência; por outro, o repúdio à intervenção estatal em nome da autorregulamentação do setor da publicidade dirigida ao público infantil. 33. Na falta de legislação específica, no Brasil, a fiscalização da propaganda endereçada às crianças e aos adolescentes cabe ao CONAR (Conselho Nacional de Auto Regulamentação Publicitária). 34. Mas as iniciativas de fazer prevalecer o melhor interesse da criança sobre a liberdade empresarial não se restringem, no Brasil, por exemplo, a iniciativas estatais via Estado, com a elaboração de leis restritivas à publicidade infantil, especialmente. 35. A própria sociedade organizada brasileira também se lança nessa luta e lançaram uma campanha social, por exemplo, a partir de uma entidade social que congrega mães, pais e responsáveis legais. Esse coletivo é tocado preferencialmente por um grupo de mães ativistas em defesa da infância e ele se apresenta assim: Somos um coletivo de mães, pais e cidadãos inconformados com a publicidade dirigida às nossas crianças. Não achamos que a autorregulamentação (ou seja, a regulamentação feita pelo próprio setor), do jeito que está sendo feita, seja eficaz, uma vez que atende aos interesses do setor, que não está preocupado com a saúde e o bem-estar das crianças. Acreditamos que o Estado deve, sim, intervir nessa questão. Não podemos responsabilizar somente os pais e as mães por um problema que afeta e compete a toda a sociedade (...). Queremos que as crianças tenham direito a uma infância mais consciente e menos consumista.. Este movimento nasceu em março de 2012, devido à indignação de alguns participantes do Grupo de Discussão Consumismo e Publicidade Infantil. Nessa época, alguns membros do grupo resolveram participar do debate proposto pela campanha Somos Todos Responsáveis, lançada pela ABAP (Associação Brasileira de Agências de Publicidade). Ao contrário do que seria de se esperar, rapidamente os pais e as mães presentes no evento puderam concluir que o verdadeiro intuito daquela campanha da ABAP era apenas o de culpabilizar exclusivamente os pais (sic), colocando-os como únicos responsáveis por controlar a exposição de seus filhos às propagandas abusivas veiculadas atualmente. Assim, a campanha mostrou-se - segundo esse movimento da sociedade - nitidamente parcial, na medida em que ela defendia a autorregulamentação e o bom senso dos anunciantes, como os únicos controladores da publicidade infantil. 36. Dentro dessa linha de empenho da sociedade organizada, por fim, registre-se o Projeto Criança e Consumo do Instituto ALANA que contabiliza os mais efetivos esforços em favor da proibição absoluta da propaganda direta dirigida a crianças e adolescentes ou em alguns casos da limitação da propaganda infantil; passando mesmo a liderar entre nós essa luta pela conscientização crítica da população, expondo-se inclusive aos ataques os mais virulentos de algumas instâncias empresariais de propaganda no Brasil. VI. CONCLUSÃO 48. Para assegurar a educação ou formação integral de crianças e adolescentes, na linha da promoção e da proteção de seus direitos fundamentais, contra o consumismo e a publicidade predatória - gostaria de propor algumas bandeiras: a) Mais espaços de diálogo direto entre os pais/familiares, os governos dos países e as atuais agências reguladoras da publicidade infantil, no que diz respeito à elaboração de novos marcos regulatórios;
b) É necessário regras mais claras que evitem a entrada da publicidade em espaços que são das crianças por excelência, como escolas e consultórios de pediatria, por exemplo; c) Instem-se os governos nacionais no mundo todo, a participarem ativamente dos debates internacionais acerca do tema e tragam para suas experiências administrativas, educacionais e legislativas, no que for relevante; e d) Reconheça-se a importância de se tornar o fomento a mais pesquisas na área da educação e da comunicação social (mídias) que incluam também os pais como atores fundamentais nessa relação. 49. Esta é a análise resumida do tema e as propostas que me permito fazer nesta atividade auto gestionária do Fórum Mundial de Direitos Humanos, promovida pelo Ministério da Justiça do brasil a respeito da regulamentação e limitação da propaganda infantil ou mesmo sua completa proibição. Brasília, dezembro 2013. Wanderlino Nogueira Neto