URGÊNCIAS ABDOMINAIS NÃO TRAUMÁTICAS NA CRIANÇA



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Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: CIRURGIA DE URGÊNCIA 1995; 28 (4): 619-24, out./dez. Capítulo VI URGÊNCIAS ABDOMINAIS NÃO TRAUMÁTICAS NA CRIANÇA NON-TRAUMA TIC ABDOMINAL EMERGENCIES IN CHILDREN Yvone Avalloni de M. V. A. Vicente 1, Roberto de Oliveira Cardoso dos Santos 2, Luis Donizete da Silva Stracieri 2, Maria de Fátima Galli Sorita 3, Flávio de Oliveira Pileggi 4 1 Docente, 2 Médico assistente, 3 Pós-graduando, 4 Médico residente. Departamento de Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Correspondência: Departamento de Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - Campus Universitário - CEP - 14.048-900 - Ribeirão Preto - S.P. VICENTE, Y. A.de M. V. A. et al. Urgências abdominais não traumáticas na criança. Medicina, Ribeirão Preto, v. 28, n. 4, p. 619-24, out./dez., 1995 RESUMO: As urgências abdominais não traumáticas da criança apresentam características próprias, relacionadas às diferentes faixas etárias. Discutem-se, neste artigo, a orientação diagnóstica e os cuidados pré-, intra- e pós- operatórios de algumas dessas urgências, tais como apendicite aguda, hérnia inguinal encarcerada, estenose hipertrófica de piloro, intussuscepção intestinal, divertículo de Meckel e obstrução por bolo de áscaris. UNITERMOS: Abdômen Agudo. Peritonite. INTRODUÇÃO O diagnóstico e o tratamento cirúrgico das urgências abdominais na criança exigem a conscientização das peculiaridades da criança, especialmente nas crianças pequenas nas quais tanto as particularidades anatômicas e metabólicas, como as condutas diagnósticas e exames subsidiários assumem características próprias. As diferentes respostas ao trauma e aos agentes farmacológicos, assim como os aspectos psicológicos, familiares e sociais devem ser adequadamente avaliados para cada faixa etária. O cirurgião, responsável pelo tratamento de uma criança, deve ter em mente as diferenças existentes na manifestação de uma mesma afecção. O simples diagnóstico de apendicite ou mesmo cirurgia para a correção de hérnia inguinal encarcerada em recém-nascidos são apenas alguns dos exemplos de características especiais que podem levar a dificuldades inesperadas. Destacam-se aqui algumas das urgências abdominais (não traumáticas) mais freqüentes em Cirurgia Pediátrica, dando ênfase à orientação diagnóstica e cuidados pré-, intra-, e pós-operatórios. 619

Urgências abdominais não traumáticas na criança Medicina (Ribeirão Preto) 1995; 28 (4): 619-24, out./dez. HÉRNIA INGUINAL ENCARCERADA A hérnia inguinal, manifestação clínica da passagem de vísceras abdominais, em geral alças intestinais, através do conduto peritônio vaginal persistente, ocorre com maior freqüência no primeiro ano de vida, principalmente até o sexto mês. Meninos são acometidos de 8 a 10 vezes mais que meninas. A hérnia situa-se à direita em 60% dos casos, à esquerda em 30% e bilateral em 10% 5. Apesar do conduto encontrar-se obliterado em 90% dos recém-nascidos, os fatores contribuintes para seu fechamento, ainda, não são completamente conhecidos. O diagnóstico clínico decorre da constatação de abaulamento inguinal ou espessamento do cordão espermático (sinal da seda), embora a ausência de abaulamento às manobras uni ou bidigitais de palpação do anel inguinal externo não exclua o diagnóstico. A hérnia inguinal na criança pode apresentar encarceramento intermitente, com sofrimento de alças ou mesmo do testículo herniado. Diversamente do adulto, em que a hérnia pode permanecer encarcerada por longo tempo, na criança esse quadro evolui rapidamente para o estrangulamento. O encarceramento cursa, em geral, com irritabilidade, dor abdominal, massa palpável no canal inguinal e vômitos, enquanto que o estrangulamento se caracteriza por manifestações inflamatórias locais, aumento da dor abdominal, vômitos biliosos ou fecalóides e presença de sangue nas fezes, impondo o diagnóstico diferencial com torção testicular ou da hidátide de Morgani, cisto de cordão (meninos), cisto de Nuck (meninas) e linfadenite inguinal e/ou femural. O tratamento da hérnia é sempre cirúrgico, pois além de não ocorrer cura espontânea, complicações, dentre as quais o encarceramento, ocorrem em até 69% dos casos, durante o primeiro ano de vida. Atualmente, tem-se preconizado correção cirúrgica mesmo nos recém-nascidos prematuros, ainda durante a permanência no berçário. Nos casos de encarceramento, consegue-se, em 80% dos casos, a redução do conteúdo do saco herniário por meio de manobras não intempestivas, de modo a postergar a operação realizando-a em condições eletivas, cerca de 24 a 48 horas após a redução manual. Esse interstício de tempo é, em geral, suficiente para possibilitar o desaparecimento dos sinais inflamatórios locais, tornando mais fácil e seguro o manuseio do saco herniário, com menor risco de complicações intra-operatórias. Entretanto, se a redução não é obtida, impõe -se à exploração cirúrgica imediata. O estrangulamento, com sinais de sofrimento e obstrução intestinal, caracteriza uma emergência cirúrgica. Durante a operação, deve se cuidar em não permitir que ocorra redução espontânea das alças intestinais necrosadas, pois nesta eventualidade há necessidade de realizar uma mini-laparotomia para inspeccionar-se as alças intestinais. Caso se identifiquem alças isquêmicas, aparentemente viáveis, devese reintroduzi-las na cavidade abdominal e aguardar cerca de 5 a 10 minutos para reavaliar o pulso arterial mesentérico, o peristaltismo e a coloração a fim de se certificar da viabilidade, antes de proceder-se à herniorrafia. A enterectomia seguida de anastomose primária é empregada nos casos de necrose de alça, com bons resultados. ESTENOSE HIPERTRÓFICA DO PILORO A estenose hipertrófica do piloro acomete, em geral, crianças com 3 a 5 semanas de vida, sendo 4 vezes mais freqüente em meninos primogênitos de raça branca. A etiologia é obscura, aventando-se como fatores predisponentes tanto a hereditariedade como certas alterações anatômicas e/ou funcionais dos plexos nervosos pilóricos. O sintoma predominante é o vômito que se acentua com o decorrer do tempo, levando à desidratação, à desnutrição, à diminuição do volume das fezes e à alcalose metabólica hipoclorêmica. Ao exame físico, nota-se peristaltismo visível, da esquerda para a direita, no hemi-abdômen superior. Entre 70% a 90% dos casos, a palpação de uma massa semelhante a uma azeitona, no do quadrante superior direito, é patognomônica. No estudo radiológico do trânsito digestivo proximal, com contraste baritado, observa-se o estômago dilatado, com afilamento do canal pilórico, em forma de bico de seio. Quando o contraste ultrapassa o piloro estreitado e alcança o duodeno, a imagem radiológica assemelha-se a um guarda-chuva ou ao número três invertido. O tratamento é cirúrgico, depois de reparadas as alterações hidroeletrolíticas e ácido-básicas. O procedimento clássico consiste na piloromiotomia a Fredet-Ramstedt 4. A evolução pós-operatória é excelente, muitas vezes com alta hospitalar precoce, 48 horas após a operação. 620

Medicina (Ribeirão Preto) 1995; 28 (4): 619-24, out./dez. Urgências abdominais não traumáticas na criança INTUSSUSCEPÇÃO INTESTINAL A intussuscepção intestinal consiste da invaginação de um segmento intestinal no interior de um da alça, proximal ou distal, adjacente, obstruindo a luz intestinal. A afecção pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas o pico de incidência encontra-se no período entre os 4 e 11 meses de idade, mais freqüente mente em crianças bem nutridas. Na grande maioria dos casos, a invaginação inicia-se no íleo terminal próximo da válvula ileocecal. As intussuscepções que aparecem no lactente têm como causa principal a hipertrofia de placas de Peyer, muitas vezes em conseqüência de infecção vias aéreas superiores ou de outras regiões que não o abdômen 1. Em crianças maiores, algumas anomalias préexistentes como divertículo de Meckel, pólipos e cistos enterógenos podem induzir a invaginação. O primeiro sintoma é, o mais das vezes, dor abdominal de início súbito, com cólicas intermitentes, de forte intensidade. Vômitos reflexos logo sobrevêm, seguidos horas mais tarde de vômitos secundários à obstrução intestinal. A evacuação, quer espontânea quer após toque retal, de fezes gelatinosas misturadas com muco e sangue se faz presente em quase todos os casos. Apatia, prostração e até mesmo coma traduzem, em geral, necrose do segmento invaginado. Ao exame físico, nos casos ainda sem grande distensão abdominal, pode-se palpar uma massa de forma cilíndrica, dolorosa, móvel, na projeção do cólon ascendente, transverso ou descendente, correspondente à intussuscepção. Mais raramente, a cabeça da invaginação pode ser sentida ao toque retal. Outro sinal característico, embora menos evidente, é a ausência do ceco à palpação da fossa ilíaca direita. À medida que o tempo passa o diagnóstico clínico toma-se mais difícil, pois os sintomas inespecíficos de obstrução intestinal passam a predominar. A radiografia simples de abdômen, em decúbito dorsal e em posição ortostática, mostra distensão de alças intestinais, níveis líquidos e, às vezes, opacidade correspondente à massa abdominal da intussuscepção. O enema opaco evidencia a progressão do contraste pelo cólon até a cabeça da invaginação, em redor da qual o bário se espalha entre as paredes interna e externa do intestino, lembrando o formato de um cálice, confirmando o diagnóstico (Figura 1). O tratamento inicial deve incluir a passagem de sonda nasogástrica para descompressão abdominal e a hidratação venosa para reposição das perdas hidrosalinas. A resolução do quadro requer, habitualmente, um de dois tratamentos: a redução hidrostática ou cirúrgica. A redução hidrostática, realizada por meio do enema opaco empregado no diagnóstico, é indicada nas crianças abaixo de dois anos de idade, nas quais a incidência de anomalias anatômicas é menor, desde que o diagnóstico seja precoce e não se suspeite de necrose intestinal. O procedimento deve ser realizado, sob acompanhamento radioscópico. A qualquer sinal de extravasamento do contraste para a cavidade peritoneal deve se interromper, imediatamente, o procedimento e submeter à criança a uma laparotomia exploradora. Jamais se deve elevar a coluna líquida de contraste a uma altura de mais de um metro acima do paciente, e nem aumentar a pressão de infusão pela compressão do frasco de contraste ou do abdômen. Considera-se completa a redução quando se verifica passagem livre de contraste através do íleo. Se o procedimento falhar, ou se houver dúvida quanto ao resultado, o paciente deve ser operado. O tratamento cirúrgico é recomendado para as crianças com mais de dois anos de idade, nos quais é mais freqüente ocorrência de patologias associadas; nos casos de diagnóstico tardio ou quando o tratamento conservador falhar. Uma incisão transversa, no Figura 1 - Intussuscepção. Enema opaco com parada de progressão do contraste ao nível do cólon transverso. 621

Urgências abdominais não traumáticas na criança Medicina (Ribeirão Preto) 1995; 28 (4): 619-24, out./dez. quadrante inferior direito do abdômen, permite abordagem da intussuscepção e tratamento das áreas de perfuração ou necrose. O intestino deve ser manipulado com delicadeza enquanto se procede a redução manual, empurrando-se a cabeça da invaginação ao longo da alça externa. Deve-se evitar tanto a compressão excessiva, quanto à tração da alça interna, para evitar-se a laceração do intestino isquêmico. Após obter-se a redução da invaginação, não se faz necessária a fixação das alças intestinais. Encontrando-se alguma anomalia intestinal, como divertículo de Meckel, pólipos, etc., indica-se a ressecção da alça envolvida, seguida de anastomose primária términoterminal. Nos casos de necrose, perfuração ou na impossibilidade de se reduzir a invaginação, a enterectomia com anastomose se impõe. Se não houver peritonite avançada o prognóstico é bom e a mortalidade, mínima. São muito raros os casos de recidiva da intussuscepção nas crianças abaixo de um ano. DIVERTÍCULO DE MECKEL O divertículo de Meckel ocorre em cerca de 2% da população. Pode passar despercebido, constituindo achado casual intra-operatório ou de necrópsia, ou então, manifestar-se por meio de complicações, em cerca de 25% dos pacientes 3. A falha na regressão do conduto onfalo-mesentérico deixa persistente um pequeno segmento intestinal, localizado na borda antimesentérica do íleo distal. Muitas vezes, este segmento contém tecido heterotópico, principalmente mucosa gástrica, em mais de 80% dos casos. Essa mucosa anômala secreta ácidos causando ulcerações e hemorragia gastrointestinal Menos comum é a presença de tecido pancreático, encontrado de 2 a 6% dos casos. As manifestações clínicas mais comuns são sangramento intestinal baixo, obstrução intestinal e dor abdominal. O sangramento ocorre em cerca de 25 a 56% dos pacientes com divertículos sintomáticas. Na maioria das vezes, é de discreto a moderado, causando evacuações escuras e anemia. Figura 2 - Divertículo de Meckel. Embora muitas vezes cesse espontaneamente, em alguns casos pode ser profuso, a ponto de determinar choque circulatório. A persistência da artéria vitelina, nutriente do divertículo, pode comprimir alças intestinais ou induzir hérnia interna. Essas complicações, também, ocorrem devido à persistência de um cordão fibroso que prende o divertículo à parede abdominal, e que pode ocasionar torsão intestinal com quadro obstrutivo, em 30 a 35% dos casos. A diverticulite, como causa de dor abdominal, surge em cerca de 25% dos pacientes. Quando o quadro é muito intenso pode ser confundido com apendicite aguda. Daí, nos pacientes com abdômen agudo inflamatório ou obstrutivo, o diagnóstico se confirma, em geral, durante a laparotomia. Sangramento intestinal impõe a pesquisa de divertículo de Meckel por meio de cintilografia, a fim de detectar-se captação anormal no quadrante inferior direito do abdômen, na topografia do íleo, devido à presença de mucosa gástrica ectópica no divertículo. A sensibilidade deste exame varia, entre tanto, de 50 a 80%. O tratamento cirúrgico pode ser eletivo ou de urgência, dependendo do quadro clínico. A enterectomia com anastomose íleo-ileal é preconizado uma vez que a diverticulectomia pode implicar na ressecção incompleta da mucosa ectópica junto à base do divertículo ou, ainda, no íleo adjacente, com conseqüente recidiva do sangramento. Figura 2. o o 622

Medicina (Ribeirão Preto) 1995; 28 (4): 619-24, out./dez. Urgências abdominais não traumáticas na criança APENDICITE AGUDA A apendicite aguda representa a urgência cirúrgica mais comum na criança. Pode ocorrer desde o período neonatal até a adolescência, embora seja mais comum entre os 6 e 10 anos 3. Dor abdominal, queixa freqüente em consultórios de pediatria, quer decorrente de simples dispepsia ou de infecção gastrointestinal, pode também ser decorrente da apendicite aguda. O reconhecimento dos sinais e sintomas, bem como das complicações da apendicite aguda na infância, requer o diagnóstico diferencial com outras doenças que cursam com dor abdominal. O diagnóstico, se tardio, predispõe a graves complicações como peritonite, abscessos pélvicos ou subfrênico e obstrução intestinal. Nas crianças maiores, o quadro clínico da apendicite é semelhante ao observado em adultos, mas nas crianças menores, principalmente recém-nascidos e lactentes, muitas vezes o quadro é incaracterístico. Deve-se insistir com a criança e, também, com a mãe, em tentar definir o início e características da dor. A localização e a tentativa de relacionar a dor com alguns fatos ocorridos no dia a dia da família podem dar idéia do início do quadro. Nesse sentido, é útil relacionar o início do quadro com atividades escolares, brincadeiras preferidas, alimentação, hábitos intestinais e horário de sono. Muitas vezes, em crianças pequenas, os únicos dados que atestam a doença são a recusa alimentar e o abatimento. Deve-se atentar para as meninas em idade menstrual e pré-menstrual, pois os primeiros ciclos menstruais causam dores incaracterísticas no quadrante inferior direito, além da dor da ovulação que, muitas vezes, se apresenta com mais intensidade. Por outro lado, é importante afastar parasitoses, infecções intestinais ou respiratórias e ainda reações alérgicas. São importantes os sinais gerais, tais como o modo como a criança sobe à mesa de exame, a posição escolhida para ficar deitada, além da observação atenta de sua expressão facial. Aquecer as mãos e o estetoscópio antes do exame pode ser útil. A inspecção cuidadosa do abdômen pode detectar sinais de peritonite localizada. A palpação, sempre iniciada por local não doloroso, deve evitar movimentos bruscos e manobras que causem desconforto ou medo da dor. Um ponto de rigidez no quadrante inferior direito é sinal muito significativo, pois os músculos do quadrante inferior direito permanecem em espasmo, enquanto o restante do abdômen se conserva flácido. A pesquisa da descompressão brusca pode ser extremamente dolorosa e assustadora para a criança, por isso deve ser realizada por último. Nos casos de peritonite generalizada, a rigidez abdominal é global. Deve-se distinguir a rigidez voluntária do choro, da rigidez involuntária da peritonite. É preciso tempo e paciência, para se obter as informações necessárias. O uso do estetoscópio pressionando levemente todo o abdômen, em lugar da palpação, pode ajudar. Em crianças pequenas o toque retal não tem muita valia, pois representa um procedimento doloroso e gera confusão com o quadro de dor abdominal. Portanto, este exame, se indicado, deve ser realizado com a máxima delicadeza. Se o exame físico for difícil porque a criança se mantém muito irritada e não coopera, a solução é sedála e examiná-la assim que se acalme. Os sinais e sintomas, em lactentes e recém-nascidos, são geralmente inespecíficos, podendo ocorrer distensão abdominal, febre, vômitos não biliosos ou mesmo diarréia. Pode, também, aparecer massa palpável no quadrante inferior direito. O diagnóstico diferencial deve ser feito com crise nefrótica, peritonite primária ou com o uso de drogas, tais como corticosteróides, antibióticos e quimioterápicos. Quando a história e o exame físico são típicos, pouco ajuda os exames de laboratório. Contudo, em casos duvidosos, um exame de urina mostrando piúria, hematúria ou mesmo glicosúria e cetonúria pode auxiliar no diagnóstico. O exame radiológico demonstrando fecalito no quadrante inferior direito pode ser taxativo em diagnosticar quadro apendicular. O tratamento da apendicite aguda não é diferente daquele dispensado aos adultos. Entretanto, uma das maiores diferenças reside na escolha da incisão, que é transversa infra-umbilical direita ou de Davis, ao invés da paramediana ou da clássica incisão de Mc Burney. OBSTRUÇÃO INTESTINAL POR BOLO DE ÁSCARIS A obstrução intestinal, na ascaridíase, ocorre nos casos de infestações maciças. A obstrução situa-se, mais freqüentemente, no intestino delgado, principalmente no jejuno terminal e íleo. Episódios de suboclusão caracterizados por vômitos e eliminação de áscaris precedem o quadro de obstrução intestinal completa. A intensidade dos sinais e sintomas está relacionada ao grau de obstrução intestinal. O quadro clínico mais comum caracteriza-se por distensão abdominal, vômitos, massa abdominal móvel e toxemia. Esta última é grave nas crianças em mau estado geral e desnutridas Nos antecedentes há relatos freqüentes de infestação e eliminação de áscaris. 623

Urgências abdominais não traumáticas na criança Medicina (Ribeirão Preto) 1995; 28 (4): 619-24, out./dez. A radiografia simples do abdome é útil para o diagnóstico quando evidencia imagem típica caracterizada por aréas de opacificação com textura semelhante à de vidro moído (Figura 3). O tratamento é, inicialmente, conservador. Deve-se instalar sonda nasogástrica descompressiva se houver vômitos biliosos. Segue-se com a administração, por via oral ou por sonda nasogástrica, de 60 a 160 ml de óleo mineral, até notar-se sua eliminação pelo ânus quando, então, administra-se píperazina. Não se deve, entretanto, administrar ascaricidas se houver sinais de obstrução intestinal. O tratamento cirúrgico se indica quando houver falha no tratamento clínico ou aparecimento de complicações como necrose, perfuração intestinal, volvo ou invaginação intestinal. A laparotomia deve ser realizada por meio de incisão transversa supraumbilical. Se houver volvo, deve-se desfazê-lo. Havendo perfuração intestinal, realiza-se estomia. A reconstrução do trânsito intestinal depende da ausência de infecção ou da presença ou não de áscaris na cavidade peritoneal. Na ausência de lesões de alça intestinal, deve-se proceder à malaxação dos áscaris para porções mais distais do intestino, até o cólon. Algumas vezes torna-se necessária uma enterotomia para retirada dos áscaris. Figura 3 - Radiografia característica da obstrução intestinal por bolo de áscaris com níveis hidro-aéreos e a imagem de vidro moído. VICENTE, Y. A. M. V. A. et al. Non-traumatic abdominal emergencies in children. Medicina, Ribeirão Preto, v. 28, n. 4, p. 619-24, Oct./Dec., 1995. ABSTRACT: Acquired, non-traumatic abdominal surgical emergencies in children present some particularities concerning the patient age. We herein discuss the diagnostic work up as well as pre, intra and postoperative care of some of the most common of these affections, including appendicitis, incarcerated inguinal hernia, hypertrophic pyloric stenosis, intestinal intussusceptions, Meckel s diverticulum and ascaris obstruction. UNITERMS: Abdomen, Acute. Peritonitis. Child. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 - AMOURY R. A. Meckel s diverticulum. In: WELCH, K. J.,RANDOLPH J. C., RAVITCH, M. M., O NEIL J. A.; ROWE M. I., eds. Pediatric surgery. Chicago, Year Book Medical Publishers, 1986. p. 859-67. 2 - FERREIRA, C. S., VIEIRA, J. N. M.;NAVES, I. L. Exames radiológicos convencionais. In: SAVASSI ROCHA, P. R., ANDRADE, J. I.; SOUZA C, eds. Abdômen agudo - Diagnóstico e Tratamento. Rio de Janeiro, MEDSI Editora Médica e Cientifica, 1993. p. 83. 3 - LUND, D. P.; MURPHY, E. V. Management of perfurated appendicitis in children: a decade of aggressive treatment. J. Pediatr. Surg., v. 29, p. 1130-4, 1994. 4 - RAMMSTEDT, C. Zur operation der angerborenen Pylorusstenose. Med. Klin., v. 8, p. 1702,1912. 5 - WEBER, T. R.; TRACY JR, T. F. Groin hernias and hydroceles. ln: ASHCRAFTK & HOLDER T,eds.Pediatric surgery. Philadelphia, W. B. Saunders, 1993. p. 562-70. Recebido para publicação em 27/12/95 Aprovado para publicação em 29/01/96 624